Alcatéia
Capítulo 42 – Alcatéia
Harry olhou para Guilherme em busca de uma pista do que deveria fazer. Guilherme arrumava um boneco no meio da sala. Harry sequer viu de onde ele saíra. Era um boneco surrado e roto, e marcado de pancadas e feitiços. Depois de arrumá-lo no meio da sala, B.K. se aproximou de Harry e disse:
-Ataque-o.
-Com o que?
-Qualquer azaração que quiser. – disse Guilherme cruzando os braços.
Harry ergueu a varinha e parou para pensar. A sala estava cheia de artefatos que pareciam ser extremamente delicados e suscetíveis a acidentes, por isso um feitiço de dano estava fora de questão. Acabou se decidindo por uma Azaração do Empurrão. Respirou fundo e ergueu a varinha:
-Expendia! – o feitiço voou em linha reta, atingindo o boneco em cheio. O boneco foi lançado com força para trás, para no segundo seguinte voltar à posição em que estava, em pé, imóvel. Parecia uma espécie de João-Bobo.
Harry olhou para Guilherme, se perguntando se devia atacar de novo, mas Guilherme balançou a cabeça e lhe estendeu outra varinha. Harry estranhou aquilo e isso deve ter transparecido em seu rosto, pois Guilherme disse:
-Faça de novo, usando essa varinha. Você verá a diferença.
Harry entregou sua própria varinha e pegou aquela que o amigo lhe estendia. Era estranhamente desconfortável, como se não se encaixasse à sua mão. Aquela sensação lhe incomodava de uma maneira que Harry não acharia possível antes. Ergueu a varinha que não era sua e pronunciou o feitiço:
-Expendia! – para a surpresa de Harry, o que aconteceu foi uma onda de choque que o lançou para trás com força, fazendo com que suas costas batessem contra uma delicada mesinha de madeira, estilhaçando-a e a tudo que se encontrava sobre ela. Se levantou com a ajuda de Guilherme e espanou as lascas de madeira e estilhaços da roupa. Estava surpreso por não ter se machucado nenhum pouco com aquilo.
-O que houve? – perguntou Harry.
-Você usou uma varinha que não é a sua. Isso é o que acontece. Eu queria te mostrar o porquê você não deve usar isso a menos que seja uma emergência. – apontou para o boneco e Harry se surpreendeu ao ver que havia uma grande marca nova no boneco, que, aliás, estava pegando fogo – Em compensação, apesar de ter sido o efeito errado, seu feitiço saiu muito mais forte do que normalmente. Isso é por causa da varinha. É uma excelente varinha para feitiços. – Guilherme pegou a varinha que Harry acabara de usar e começou a girá-la entre os dedos, comentando distraidamente. – Sequóia, 28 centímetros, corda de coração de dragão. Excelente para feitiços. Foi por isso que mandei fazer outra idêntica sob encomenda. – Guilherme tirou outra varinha idêntica do bolso e ficou girando-as, cada uma em uma das mãos. – A segunda saiu mais cara do que a primeira. Aqui... – Guilherme tirou mais uma varinha do bolso, a varinha de Harry, e a entregou. – Pode guardar. Não vamos usar mais varinhas hoje.
-Certo. – Harry embolsou a varinha, ligeiramente preocupado com o que estava por vir.
Guilherme arrumou duas poltronas, uma de frente para a outra, ao lado do boneco de treinamento. Estavam bem próximas. Fez um movimento para Harry se sentar em uma e se sentou na outra, relaxadamente. Seus joelhos quase se tocavam de tão próximas que estavam as poltronas de couro escuro.
-Certo, Harry. O problema é o seguinte. O primeiro passo para dominar magia sem varinha é limpar sua mente.
-Entendo.
-Não, não entende. Não apenas momentaneamente como quando usa Legilimência ou Oclumência. Limpar completamente. Você tem que se livrar de tudo. Todos os preconceitos e conceitos em que acredita ou que pensa serem certos. Essa é a pior parte do treinamento e existem duas maneiras de fazer: a primeira é totalmente através de meditação. É lenta e totalmente maçante, e exige um trabalho mental moderado. Você teria que meditar umas 18 horas por dia e dormir o resto do tempo para se preparar para no dia seguinte meditar mais. Mais da metade do tempo do treinamento é gasto só nessa parte. Mas há uma segunda maneira: o problema é que ela é totalmente invasiva. Consiste na invasão mental e na destruição desses conceitos e preconceitos e exige um trabalho mental extremamente alto de ambas as partes.
-Infelizmente, estamos sem tempo para a primeira alternativa, certo? – perguntou Harry vendo onde o garoto queria chegar.
-Certo. – disse Guilherme feliz por ele ter entendido.
-Quer dizer que você tem que invadir minha mente?
-Exato.
-Por quanto tempo?
-O tempo que for necessário.
-Quão longe você vai?
-O quanto for necessário.
-Não há outra opção?
-Não.
-Nenhuma?
-Nenhuma.
Harry sabia que aquilo tinha que ser feito com extremo cuidado. O processo básico de invasão mental era o mesmo utilizado durante a Legilimência e Dumbledore já tinha lhe explicado aquilo: se algo saísse errado, ou estariam ligados pelo resto de suas vidas numa ligação mental mágica ou ambos morreriam. Nenhuma dessas alternativas parecia atraente para Harry.
-Você sabe o que pode acontecer se algo sair errado? – perguntou Harry.
-Sei.
-E tem certeza absoluta que não há outra forma, qualquer que seja? – Guilherme suspirou antes de responder.
-Tenho.
-Entendo. – Dumbledore tinha lhe explicado aquilo também. Numa briga de legilimentes, o mais apto em invasão e em defesa mental venceria, isso porque invadir a mente de outro bruxo era algo extremamente complicado. O exemplo que Dumbledore lhe dera tinha sido o seguinte: imagine-se entrando em uma loja de cristais. Têm copos, taças, pratos e vasos para todos os lados e espalhados em enormes prateleiras, deixando apertados corredores por onde se passar. Agora imagine que quando você adentra essa loja, você está vestindo uma pesada armadura de metal, com um enorme escudo e uma espada bastante pesada. Nessa metáfora, a loja de cristais é a mente a ser invadida e a pessoa armada com objetos grandes e pesados é o invasor. Qualquer mínimo erro ou movimento para o lado errado pode causar um desastre, tanto para a mente a ser invadida quanto para o invasor. E muito mais complicado ainda é ter de destruir algo dentro dessa mente. Seria quase como se tivesse que vencer uma luta de espadas na mesma loja cheia de cristais sem quebrar nada. – Certo, se não há outra escolha... o que devo fazer?
-Ok. Eu vou invadir sua mente e fazer o que deve ser feito. Você provavelmente vai perder a noção de tudo, mas não tente me bloquear. Já terei muito trabalho sem você tentando me repelir, entende? Não use Oclumência, não importa o quão exposto ou vulnerável se sinta, certo?
-Certo.
-Você fala isso agora, mas vai se sentir tentado assim que eu entrar. Não tente me repelir, Harry, isso é muito importante. Se Dumbledore lhe explicou o trabalho que eu tenho que fazer, você faz uma idéia do quão complicado é, não preciso de mais um empecilho, entendeu?
-Sim.
-Ok. Apenas recoste na poltrona e tente relaxar.
Harry pousou as costas no encosto e tentou relaxar, como se fosse possível quando sabia que Guilherme ia invadir sua mente e ver tudo lá dentro, memórias, pensamentos, tudo. Até mesmo os detalhes mais íntimos estariam à disposição do garoto. Guilherme permaneceu sentado, mas se debruçou na direção de Harry, colocando as mãos ao redor de sua cabeça, sem, no entanto, toca-la. Os dedos do garoto estavam próximos da têmpora de Harry e ele ouviu o garoto sussurrar de leve:
-Legilimens. – Imediatamente Harry sentiu sua barreira mental se erguendo automaticamente. Guilherme que ainda estava na mesma posição, e de olhos fechados, não disse nada, mas mesmo assim Harry se forçou a baixar sua defesa mental. Então ele sentiu a curiosa sensação de ter a mente invadida. Era parecida com a sensação já sua conhecida de quando fazia contato mental com Voldemort através de sonhos, mas ali era diferente. Tinha a impressão de que quando sua mente tocava a de Voldemort, se tornavam uma só, mas não era o caso ali. Sentia como se um invasor adentrasse sua cabeça. Um ser estranho que precisava, e devia, ser repelido a todo custo. Tinha que tirar aquilo de sua cabeça. Não podia permitir. Quase ergueu sua barreira de Oclumência novamente, mas se segurou. Era apenas tentador demais, mas não podia. Precisava daquilo para enfrentar Voldemort. Mas era apenas insuportável. Quase como uma coceira dentro de sua cabeça, num local onde não conseguia alcançar. Harry se sentia tentado a bater sua cabeça contra o objeto mais próximo apenas para acabar com a aquela sensação, não importava como. Foi então que sentiu algo se estilhaçar dentro dele. Seus olhos se abriram ao máximo, mas nada além de um suspiro escapou de seus lábios entreabertos. Seus olhos lacrimejaram levemente, embaçando sua visão do rosto concentrado de Guilherme. Sentiu que o garoto penetrava cada vez mais fundo. A sensação de exposição atingiu o ápice, era como se Harry estivesse nu andando pelo meio de um bosque ou algo assim, se sentia vulnerável à mais frágil das criaturas ao mais fraco dos homens e então acabou. Harry piscou e olhou para a frente. Guilherme o encarava, mas tinha algo de diferente. Seu rosto parecia diferente. Harry sequer notou que não estava mais usando óculos.
-Já acabou? – perguntou Harry e sua voz soou estranha aos seus próprios ouvidos.
-Sim. – disse Guilherme enxugando o suor da testa. Sua voz tinha uma entonação estranha. Era quase como se nuca tivesse ouvido a voz do garoto antes.
-Foi bem rápido. – disse Harry se mexendo desconfortável: suas roupas o estavam incomodando.
-Não, não foi. Demorei quase três horas para terminar, mas finalmente consegui.
-Três horas?
-Duas horas e meia, pra ser mais exato. Como se sente?
-Estranho para dizer a verdade. – Era verdade. Estava sentindo uma estranha variedade de cheiros que não estavam ali um segundo antes. Da mesma forma, agora estava ouvindo uma sinfonia de sons lá fora que até o segundo anterior não ouvia: podia ouvir o farfalhar das folhas na floresta lá embaixo, assim como o vento balançando as folhas da grama e o piado de dezenas de passarinhos, numa algazarra quase ensurdecedora embora estivessem no segundo andar da casa. O cheiro da terra úmida e dos galhos quebrados e das folhas maceradas atingiu seu nariz como um soco. A parte de dentro de seu nariz ardia com a intensidade dos aromas. O volume dos sons estava ensurdecedor, levando Harry a tapar os ouvidos com as mãos. Encarou Guilherme. O que ele fizera? Mas Guilherme não era mais ele mesmo. Seu rosto estava diferente: a cicatriz que cortava sua bochecha direita na horizontal estava brilhando tão intensamente quanto o sol numa cor perolada, seu rosto tinha uma estranha textura e até mesmo a cor de sua pele estava diferente. Apenas seus olhos estavam iguais. Apenas pareciam mais inteligentes e calmos. E tinham uma esperteza estranha. Mas porque tinham tudo aquilo? Eram apenas olhos...
-O que você fez? – perguntou Harry em pânico.
-Acalme-se, Harry. – disse Guilherme, mas como Harry ainda tapava os ouvidos, teve de fazer leitura labial. Harry olhou à volta e quase desmaiou: à medida que moveu a cabeça, a sala girou como se estivesse tonto; à medida que seus olhos encontravam os objetos da sala, Harry passou a ver cores que nunca havia visto antes e mesmo à distância podia ver a textura de tudo, desde o couro velho de um livro à superfície mecânica e imperfeita de uma pequena máquina sobre uma mesinha. Harry sentiu seu estômago embrulhar, ia vomitar. Sua pele ardia pelo contato com as roupas. Então Harry sentiu algo quente tocar dos dois lados de seu rosto. Uma onda elétrica percorreu seu corpo partindo daquele toque. As duas mãos viraram o rosto de Harry, fazendo-o encarar Guilherme.
-Acalme-se, Harry. – leu Harry nos lábios do amigo. – Apenas acalme-se. Tudo vai ficar bem. Respire fundo e concentre-se em mim. Harry começou a respirar fundo, tentando acalmar seu coração que martelava em seu peito, mas mesmo assim sua mente trabalhava freneticamente. Harry pensava em milhares de coisas ao mesmo tempo, numa velocidade que nunca pensara existir. Tudo o que conseguia era encarar o amigo nos olhos e respirar. Ficou nisso por algum tempo até que sentiu todas aquelas sensações diminuírem lentamente até um nível tolerável. Estava tolerável, mas ainda incomodava de forma singular.
-O que foi que houve? – perguntou Harry, retirando as mãos dos ouvidos. – O que deu errado?
-Nada deu errado, Harry. Eu fiz exatamente o que devia fazer e isso te libertou. Libertou seus poderes.
-Como assim “libertou”?
-O processo pelo qual você acaba de passar ajuda a magia a fluir pelo seu corpo com facilidade e isso afeta seus cinco sentidos, tornando-os mais apurados. Você irá ver coisas que nunca viu; ouvir sons que nem imaginava existirem; sentir sensações de que nunca ouviu falar; provar sabores inacreditáveis; e sentir aromas inesquecíveis. Você evoluiu com isso Harry e agora está pronto para usar magia sem varinha, só depende de você.
O que Guilherme lhe dizia fazia todo o sentido, mas ele estava omitindo alguma coisa. Harry tinha certeza, embora não soubesse o porquê, mas aquela certeza estava presente.
-Entendo. E o que mais?
-Como assim? – perguntou Guilherme que parecia já estar esperando aquela pergunta.
-Tem algo mais, não tem?
-Na verdade, sim. Sua percepção de mundo estará diferente daqui para a frente.
-Como assim?
-Não me entenda errado. Você não ficará mais inteligente ou algo assim. Mas sua mente está mais veloz. Seus pensamentos estão mais rápidos, sua capacidade para ver o óbvio e para compreender coisas complexas aumentou. E, da mesma forma, suas reações estão mais rápidas. Você pode perceber algo e reagir muito mais rapidamente do que antes.
-Entendo. – e Harry entendia mesmo. Embora nunca tivesse imaginado aquilo ou pensado ser possível, fazia pleno sentido para Harry. Seus cinco sentidos estavam em um nível superior agora, assim como sua mente que estava mais veloz e lógica do que nunca. – Essas coisas tornam qualquer pessoa um guerreiro melhor, certo?
-Exatamente. – Guilherme parecia satisfeito. – Agora, sei que seus sentidos estão aguçados no momento e isso pode incomodar bastante, mas demorará apenas um ou dois dias até que você se acostume. Até lá, tenho de lhe dizer algumas coisas. Pode ser extremamente perturbador começar a sentir essas sensações intensas de uma hora para a outra, por isso, se não estiver conseguindo conciliar tudo isso, me procure. Pode ser a qualquer hora da noite ou do dia, ok?
-Certo.
-Ótimo. Com o passar do tempo, você vai perceber que pode controlar esses super cinco sentidos que agora possui. Com um pouco de concentração, poderá ignorar cada um deles, tornando os restantes ainda mais aguçados. Isso é recomendável apenas em certas situações. Por exemplo, se você for ser torturado, pode ignorar o tato e não irá sentir dor nenhuma, mas lembre-se de que a dor é um mecanismo de aviso do corpo. Seu corpo ainda sentirá a dor, apenas a sua mente não sentirá, de forma que os danos ao seu corpo em um caso como esse podem ser catastróficos, entende? – Harry concordou com a cabeça, maravilhado com as implicações daquele dom. – Se você estiver em uma perseguição, por exemplo, perseguindo ou fugindo, eu recomendo que ignore seu paladar. Em uma situação de perigo é o sentido menos útil, mas lembre-se que se ignorar o paladar não conseguirá falar ou fazer qualquer som. E assim por diante. A cada sentido que você ignorar descobrirá pontos positivos e negativos, mas à medida que se acostumar com essa nova intensidade sensorial conseguirá controlar cada sentido com perfeição, aguçando ou ignorando cada um em milésimos de segundos.
Harry ainda ouvia a voz do amigo, mas estava concentrado. Estava tentando ignorar a sensação do tato: sua pele ardia devido ao atrito causado pelo contato de suas roupas com sua pele. Num segundo simplesmente parou de sentir. Não sentia mais nada, era quase como se estivesse flutuando no espaço. Nada o tocava. Sequer sentia seu próprio corpo. Devia ser assim que fantasmas se sentiam. E então tudo voltou. Bastou se desconcentrar minimamente e a ardência voltou a dominar sua pele.
-Estava ignorando o sentido do tato, não é? – perguntou Guilherme no que Harry concordou com a cabeça. – Sim, eu me lembro. Foi a primeira coisa que eu tentei também. O atrito entre a pele a as roupas é extremamente incômodo, certo?
-É... quanto tempo irá demorar até que eu me acostume?
-Temo que um ou dois dias, Harry. – Harry não acreditou. Parecia uma eternidade. – Mas venha. Venha apreciar esse dom que você agora possui. – Guilherme ajudou Harry a se levantar e quando suas mãos se tocaram, Harry sentiu uma corrente elétrica percorrer seu braço.
-Guilherme... o que é esse choque que eu sinto?
-Choque? Como assim? – ele parecia não entender.
-Quando você me tocou, senti uma energia percorrendo meu braço. Parecia um choque elétrico, vindo de você.
-Ah, isso. O corpo humano produz energia elétrica, Harry. É assim que as sensações são transmitidas por todo o corpo: estímulos nervosos em forma de choques elétricos. O seu corpo sempre sentiu isso. Sempre que você entra em contato físico com alguém você sente isso, mas normalmente é tão fraco que seu cérebro não interpreta, mas agora que você está com uma super-percepção sensorial consegue sentir. Às vezes até mesmo pessoas comuns sentem esses choques quando há um desequilíbrio entre as cargas elétricas de ambas as pessoas e isso causa um pequeno choque que é perceptível. – Harry entendeu. Conhecia a sensação de às vezes tocar em algo metálico ou em outra pessoa e sentir uma carga elétrica percorrendo seu corpo. – Entendeu?
-Sim. Obrigado. – disse Harry, se levantando sem a ajuda do amigo. Aqueles choques não chegavam a doer, mas lhe incomodavam. Guilherme pareceu notar porque disse:
-Se quer um conselho de alguém que já passou pela experiência que você está passando, eu te digo: evite contatos físicos por pelo menos dois dias. Com qualquer pessoa, mas principalmente Hermione.
-Por que principalmente Hermione? – perguntou Harry rispidamente.
-Apenas acredite em mim. Você não ia querer saber, de qualquer forma.
-Certo. – disse Harry de má vontade, ficando de pé. A sala girou ao seu redor por um instante e depois parou. Harry abriu os braços levemente, tentando se equilibrar. Parecia uma criança aprendendo a andar. A sensação era muito esquisita. Harry tinha a impressão de que não conseguia calcular bem as distâncias, o que fazia com que ficasse desequilibrado. Guilherme estava ao seu lado, os braços esticados ao seu redor, sem tocá-lo, para segura-lo caso fosse cair.
-Tente se concentrar em diminuir o poder da sua visão, Harry. Não tudo, ou ficará momentaneamente cego, apenas um pouco para que consiga se estabilizar ao aproximar sua nova visão da antiga.
Harry fez o que o amigo sugeriu. Respirou fundo algumas vezes para se concentrar e tentou diminuir o novo poder de sua vista. Teve a impressão de que a luz do ambiente diminuiu gradativamente, assim como a sua capacidade de enxergar texturas à distância e novas cores. Pareceu a Harry que estava com sua antiga visão, embora ainda não precisasse de seus óculos.
-Consegui. – disse em tom de comemoração.
-Muito bom. Agora vamos até ali olhar aquele vaso. – Guilherme guiou Harry até uma mesinha perto da parede onde havia um vaso de porcelana azul e branco. A pintura parecia feita à mão com extrema delicadeza e cuidado demonstrando que o artista era excepcional. – O que você vê?
-Um vaso. – disse Harry simplesmente, observando cuidadosamente as curvas graciosas do ornamento, assim como os desenhos que se formavam na sua superfície lisa. O vaso era simplesmente perfeito. – Um lindo vaso, na verdade. Foi feito com magia? – perguntou Harry se virando para o amigo.
-Concentre-se no vaso, Harry. – Harry voltou a olhar para o vaso. – E respondendo à sua pergunta: não. Não foi feito com magia. Foi feito artesanalmente na China. Na Dinastia Wing, Ming, ou algo assim. Mas concentre-se no vaso. O que você vê?
Harry encarou o vaso e começou a enxergar pequenas linhas que se espalhavam por toda a extensão da porcelana intocada. À medida que a visão de Harry se aguçava, as linhas iam ganhando destaque e brilhando como uma teia feita de luz.
-Você consegue ver, certo? Você está enxergando magia.
-Mas você disse... – começou Harry ainda encarando as teias de luz, impressionado. Era lindo.
-Isso que você vê é uma magia de restauração. Quando eu era menor eu quebrei esse vaso e meu tio o concertou com o Feitiço Reparo. Entende?
-Então eu estou... enxergando magia? – perguntou Harry atônito. Aquilo era surreal.
-Está. E não é só isso que pode fazer agora. – apontou para o boneco em que treinaram feitiços. – Lance um feitiço.
-Com varinha, certo? – perguntou Harry que ainda não sabia como fazer sem usá-la.
-Ah, sim. Com varinha. – concordou Guilherme como se aquilo não houvesse lhe passado pela cabeça. Harry tirou a varinha do bolso e disse:
-Expendia. – o raio azul disparou da ponta da varinha de Harry e acertou o boneco em cheio. Mas embora tenha parecido um feitiço normal, Harry sentiu-se extremamente estranho. Pôde sentir uma estranha corrente elétrica percorrendo todo o seu corpo, partindo de seus pés, subindo pelas suas pernas, tronco, ombro, braço, se juntando em sua mão e disparando da varinha na forma de feitiço. Era como se cada célula de seu corpo liberasse uma grande energia que ia se juntando até chegar ao seu braço e se transformar no feitiço que ele proferira. Harry olhou para Guilherme à procura de uma feição de entendimento e mesmo sem ter dito nada Harry a encontrou no rosto do amigo, exatamente como Harry sabia que aconteceria.
-Você sentiu, então? – perguntou B.K.
-Eu... senti. O que foi isso? – perguntou Harry que estava sem fôlego.
-Você acaba de sentir a magia percorrendo seu corpo. Isso sempre acontece quando você lança um feitiço, a diferença é que seu corpo nunca conseguiu sentir isso tão claramente quanto agora. É assim que você vai fazer magia sem varinha, Harry. Agora, guarde a varinha e tente reproduzir a sensação que acabou de sentir. – Harry guardou a varinha no bolso e levantou uma mão na direção do boneco, se sentindo completamente idiota. Olhou para Guilherme em dúvida, mas o garoto não disse nada, apenas concordou com a cabeça. Harry respirou fundo e disse, com a mão apontada para o boneco:
-Expendia. – nada aconteceu. Harry sequer sentiu a magia em seu corpo. Se virou para Guilherme e disse: - Tem certeza que isso vai dar certo?
-Tenho, tudo o que você tem que fazer é se concentrar, Harry. – Guilherme foi em direção ao piano e pegou o buquê de flores brancas que havia ali. – Continue tentando. Eu volto em algumas horas. – E depois disso, Guilherme saiu da sala. Harry ainda pôde ouvi-lo descendo as escadas e saindo para o gramado lá embaixo.
Harry suspirou, resignado. Estava um lindo dia lá fora, ele tinha cinco super-sentidos que nunca usara, e era obrigado a ficar dentro de casa tentando fazer uma coisa que para ele parecia impossível. Talvez em teoria fosse possível, mas na prática a história era outra. Mas não custava tentar mais algumas vezes. De má vontade e ainda se sentindo um idiota ao fazer aquilo, Harry ergueu a mão direita e apontou para o boneco. Fechou os olhos e se concentrou. Ficou ali, parado, tentando sentir a sensação que sentira antes, tentando encontrar a magia que estava espalhada pelo seu corpo e então sentiu aquilo. Não sabia o que era. Sabia apenas que aquele formigamento estranho estava espalhado por cada centímetro do seu corpo. Tinha a impressão de que se se mexesse aquela sensação se perderia, desapareceria. Abriu a boca e disse:
-Expendia. – toda aquela energia que estava espalhada por seu corpo, de repente, começou a se acumular em sua mão. Harry sentiu sua mão começar a queimar e arder e ficou com medo do que aquilo poderia ser. Quando não estava mais agüentando a dor, gritou: - EXPENDIA!
Harry caiu de joelhos. No último instante a dor o desconcentrou e quando gritou não houve feitiço. Tudo o que sentiu foi aquela energia sendo drenada de seu corpo sem nenhum efeito além da fraqueza que agora sentia. Estava segurando o pulso direito, sentindo a mão formigar levemente ainda. Estava exausto. Decidido a tentar aquilo novamente uma outra hora, Harry se levantou com dificuldade, se apoiando ao batente da janela. Sentiu a brisa fresca bater em seu rosto, convidativa. Talvez um passeio lá fora o ajudasse a se recuperar.
Demorou quase dez minutos para conseguir descer. Teve que fazer várias pausas pela escada devido ao imenso desgaste que sentia. Era como se não dormisse ou comesse há dias. Por fim, conseguiu chegar às escadas de pedra que davam no jardim. Parou, apoiado ao batente das portas duplas, sentindo a brisa e olhando o imenso gramado e o bosque à sua esquerda e sentindo a quente luz do sol sobre sua pele. Já se sentia melhor, mas queria mesmo era se sentar à sombra e descansar um pouco. Finalmente estava livre. Harry ouvia agora a algazarra que os pássaros faziam e sentia os fortes aromas que vinham das árvores próximas. Caminhou em direção ao bosque e adentrou a trilha que se abria por entre as árvores. Os cheiros se tornaram mais fortes e Harry teve que se esforçar um pouco para conseguir diminuir o poder de seu olfato. O cheiro das flores, das folhas maceradas sob seus pés, da seiva das árvores, da terra. O som do vento, do bater de asas dos pássaros e insetos, das folhas sendo sacudidas ou das mesmas caindo no chão, o estalar rítmico de seus próprios passos na trilha coberta de folhas e galhos secos. Olhou para cima e tudo o que viu foi a cobertura das folhas sobre sua cabeça, protegendo-o dos fortes raios do sol, quase como um teto verde criado pela natureza, onde alguns poucos raios de luz conseguiam penetrar, criando desenhos brilhantes na semi-penumbra da trilha. Por fim chegou até uma clareira coberta de flores selvagens e coloridas. Era uma bela visão. As flores balançavam ao vento, lançando seu perfume no ar, numa dança belíssima com as borboletas coloridas.
Harry adentrou a clareira, se embrenhando por entre as flores multicoloridas que chegavam até seus joelhos. Ficou simplesmente passeando ali, sentindo o sol quente e o vento fresco. Foi quando ouviu um barulho atrás de si. Seu instinto básico foi se virar para encarar o que quer que fosse, mas achou que não era uma boa idéia. O modo como a criatura andava, seus passos eram silenciosos e felinos. Passos de um predador. Harry pensou se deveria correr, mas descartou logo essa possibilidade, não tinha energia suficiente para ganhar no quesito velocidade. Estava com sua varinha no bolso, mas não achou que conseguiria lançar um feitiço poderoso o suficiente para derrotar o animal, isso, supondo que conseguisse sacar a varinha. Ouviu o animal se aproximar silenciosamente. Fechou os olhos, tentando se concentrar: se havia uma boa hora para lançar um feitiço sem varinha, a hora era aquela. Pelo som, conseguiu contar quatro patas amassando a grama lentamente e se dirigindo na sua direção. Estava perto. Harry sentia o suor frio escorrer pelo pescoço. Respirou fundo e se virou.
Todos os acontecimentos a seguir se passaram em uma velocidade assustadora: Harry localizou o animal a poucos metros de distância, estava abaixado e pronto para saltar em cima do garoto. Assim que o animal viu que Harry o notara, começou a rosnar baixo, mostrando os dentes pequenos e pontiagudos, eriçando o pêlo das costas, a baba pegajosa escorrendo da boca entreaberta. O lobo saltou pra cima de Harry, a boca escancarada, os dentes ameaçadores se aproximando perigosamente. Harry simplesmente congelou. Não conseguiria pegar a varinha antes dos dentes do animal se enterrarem em sua garganta.
E então, quando a boca do animal estava a centímetros de seu rosto e Harry já sentia o hálito podre do lobo, uma mão surgiu do nada e agarrou o lobo pelo pescoço, impedindo que chegasse a Harry. Harry sequer precisou olhar para saber a quem pertencia aquela mão. O anel dourado com a pedra vermelha e as letras B.K. brilhava num dos dedos que apertava a garganta do bicho.
Guilherme segurou o lobo pelo pescoço, apertando fortemente e depois o jogou para trás com uma facilidade absurda. O animal caiu no meio das flores e rolou em meio a ganidos de dor. Por fim se levantou, se preparando para atacar e foi quando viu Guilherme. Tudo que o garoto disse ao animal foi:
-Ele está comigo. Se atacá-lo de novo, terei que matá-lo. – Não houve discussão, o animal deu as costas e correu bosque adentro. Guilherme se virou para Harry: - Você demorou mais do que eu esperava.
Harry não se surpreendeu, apenas sorriu fracamente. Guilherme sabia que ele viria e por isso o esperara. Harry sabia que Guilherme saberia que ele viria e que o esperaria. Guilherme certamente sabia que Harry saberia que ele sabia que ele viria, de forma que o esperara e assim por diante.
-Vamos indo? – perguntou B.K. – Tenho que levar essas flores a um túmulo. – disse apontando para o buquê que trazia.
-Vamos sim. – e começaram a caminhar em direção ao bosque. Na exata direção para onde o lobo que o atacara correra. Ao entrar na trilha novamente, Harry pôde sentir mais do que viu os olhos o cercarem. Ouvia os passos leves e silenciosos de predadores à sua volta, cercando-os. E foi então que lhe ocorreu: Guilherme era um animago e seu animal era um lobo. Olhou para Guilherme que lhe sorriu tranquilamente na trilha mal-iluminada. Então Harry soube: haviam adentrado uma alcatéia. E estavam se dirigindo para a toca do lobo, literalmente.
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N/A: Já tava na hora né?? Enfim, espero que aproveitem esse cap... É razoavelmente longo e tem coisas muito importantes. Cap novo sabe-se-lá-quando. See you later, folks. I'm gone.
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