Miosótis



Capítulo 10. Miosótis


Sirius não soube quanto tempo permaneceu sentado na poltrona, com os olhos fixos nas chamas da lareira. Não sabia o que estava esperando. Tinha consciência de que Marlene demoraria a voltar, talvez dias. Viu a luz do dia surgir através das persianas fechadas. Sabia que havia comida na geladeira, mas não tinha vontade de sair de lá. Permaneceu de pijama, os pensamentos flutuando. Pegou o isqueiro prateado. A luz refletia nele exatamente como refletia na mão de Marlene.


Quanto tempo fazia que não fumava? Provavelmente mais que uma semana. Desistira depois que Marlene tinha resolvido que ia arrancar cada cigarro que ele colocasse na boca. "Eu não vou ficar beijando alguém que coloca essas coisas desagradáveis na boca", ela dizia. E Sirius a provocava dizendo que ela deveria parar de beijá-lo então. E ela saia resmungando e se vingava preparando uma lista de compras particularmente grande.


Ele não achava que estar casado com Marlene fosse muito diferente disso. Mas ela parecia achar que aquilo não passava de um arranjo provisório, que logo ia acabar. Talvez por isso ele a tivesse pedido em casamento. Porque sabia que era certo estar com ela, não importava se fossem namorados, noivos ou marido e mulher.


Viu as chamas da lareira ficarem verdes e levantou-se da poltrona com um salto. Não acreditava que ela fosse voltar tão rápido.


Mas não foi o corpo de Marlene que surgiu nas chamas, mas a face preocupada de James Potter, os óculos escorregando para a ponta do nariz enquanto ele falava rapidamente. E, à medida que as palavras fluíam da boca de James e se espalhavam pela sala, Sirius sentia algo dentro dele se contorcer e ficar frio.


o0o0o0o


- Essas eram as coisas que estavam com ela - Lily pousou a caixa sobre a enorme mesa de madeira escovada.


Não era muito grande e era ocupada quase completamente pelas roupas negras. Em cima de tudo, estava a máscara de comensal da morte.


- Ela não esperou por ninguém? - perguntou Sirius, sentado desajeitadamente em uma das cadeiras. Tinha a cabeça apoiada nas mãos.


- Não. Ela achou que conseguiria atrasá-los - falou Lily. Remexia as peças de roupa, parando às vezes para esfregar os olhos. - Foi uma coisa idiota. Mas eu... eu acho que agiria da mesma forma se fosse a minha família.


- Por que trouxe essas coisas para cá? - perguntou James. Era a primeira coisa que ele falava desde que haviam chegado à sede da ordem.


- Não restou ninguém da família para ficar com isso - falou Lily, sem erguer o rosto.


- Nos poderíamos simplesmente enterrar com ela - falou Sirius, fracamente.


Lily ergueu a máscara branca.


- Não acho que ela ia querer ser enterrada com isso.


Sirius apoiou a cabeça na mesa. Sentia-se fraco demais para discutir. Era demais para ele falar em enterro. Ele ainda tentava esquecer dos corpos - corpos espalhados por toda a mansão dos McKinnon.


"Os Black são todos covardes", ela tinha dito. Talvez nem todos fossem, mas era assim que se sentia naquele momento - sugado de toda a sua coragem. Era covarde o bastante para não conseguir esquecer tudo que vivera nas últimas horas. E muito covarde também para lembrar.


- Hum, acredito que queira ficar com isso - ouviu a voz de Lily.


- Não quero ficar com nada - resmungou.


- Sirius, por favor - reclamou James. - Nenhum de nós está bem.


Sirius levantou a cabeça. Começou a raspar uma mancha da mesa com a ponta do dedo. Ninguém entendia. James não poderia entender. Afinal, ele tinha Lily. E, logo, ia ter um filho. E não tinha perdido ninguém tão importante na guerra.


- Sirius - chamou Lily. Ela lhe estendeu um papel. - Tenho certeza que ela não ia querer que ninguém além de você ficasse com isso.


Ele pegou o papel a contra gosto. A data fora escrita em tinta verde esmeralda: "julho de 1961". Ele virou o papel. Seus olhos percorriam a superfície brilhante, sem cores. Uma menina posava séria, se balançando levemente sobre as pernas. Tinha um grande lenço na cabeça e usava um vestido branco comprido. Ela se abaixou para pegar um buquê de flores do chão. Então, sorriu levemente. Parecia uma pequena noiva. Seus grandes olhos claros brilhavam.


Ele voltou a olhar a parte de trás da fotografia e encontrou, logo abaixo da data, uma descrição: "Para nunca esquecer de você".


o0o0o0o


- Você amou essa menina - afirmou Elvira. Sirius tirou os olhos da janela e virou-se para ela.


- Eu não... - começou Sirius.


- Amou sim - Elvira sorriu.


- Ela está morta - encerrou Sirius, com aspereza.


Elvira fez uma careta.


- Você deveria abrir as cortinas - falou, caminhando pela sala escura.


- E você deveria ir embora - murmurou Sirius, sem prestar atenção no que dizia. Elvira o mirou com desprezo e saiu batendo os pés.


Num primeiro momento, Sirius achou que deveria chamá-la de volta. Mas não era como se fosse morrer por causa dele. Ou, pelo menos, foi o que achou quando percebeu que ela tinha ido embora e ele não se sentia mal.


O barulho metálico. A luz amarela se acendendo como uma estrela na escuridão e, logo em seguida, apagando-se. Sirius apertou com força o isqueiro na mão, sem saber por que o tinha pegado.


Acendeu novamente a chama, e o reflexo do fogo brilhou em seus olhos escuros. Ergueu o dedo do isqueiro. Novamente escuridão. Ao redor, apenas aquele estranho murmúrio do silêncio. Ele gostava de pensar que já tinha se acostumado com aquele som. Mas não tinha. Principalmente quando era dia, e ele não podia dizer que o mundo estava cinzento por causa da falta de luz. Mesmo as cores mais vivas eram opacas, como se tivessem sido apagadas. Todos os rostos eram pálidos. Todos os olhos eram negros.


Agora o azul daqueles olhos pertencia apenas ao um recanto confuso de sua mente, o mesmo que se ocupava em torturá-lo. Não havia um azul como aquele no mundo. Não podia dizer que eram azuis como o céu, porque o azul do céu era uma ilusão. A luz do dia o tornava azul, mas sua verdadeira face era negra. E também não eram azuis como o mar, porque o mar azul também era ilusão - ou pior, reflexo de uma ilusão.


Porque, afinal, era um masoquista, e nunca se permitiria descansar enquanto não fosse expurgado daquela culpa. Sirius queria ter tido tempo, queria ter impedido tudo. Mas querer não fora suficiente. Nunca é suficiente.


"Você já teve vontade de ir, e ao mesmo tempo de ficar?"


Agora ele entendia o que ela queria dizer. Sirius, naquela manhã, odiava o mundo com todas as forças que tinha. E, ao mesmo tempo, estava preso ali, pelo fio invisível de suas afeições, que o faziam fincar raízes naquele lugar de dor e sofrimento. E, às vezes, ele achava que era um perfeito masoquista por isso.


Aquele isqueiro, por exemplo. Ele deveria jogá-lo fora. Ou, se não tivesse força para tanto, deveria ao menos ter o cuidado de guardá-lo no fundo de uma gaveta, para na sucumbir à tentação de usá-lo. Mas não. Ele o carregava para todo lado no bolso da calça. E nem gostava de fumar. Talvez fosse apenas uma desculpa para continuar a ter o isqueiro. Como um castigo que ele inconscientemente determinara para si mesmo. Uma forma de nunca esquecer o quanto já perdera naquela guerra.


O fogo novamente, iluminando um pequeno globo no espaço, expulsando apenas daquele ponto a escuridão noturna. Mas não era como se aquele facho amarelo trouxesse as cores de volta. O pequeno trecho de espaço dentro daquela luz era de um monocromático tom doentio, como se o mundo tivesse sido desenhando num velho pedaço de pergaminho. E, no entanto, aos olhos dele não era muito diferente da percepção que tinha do mundo a todo momento, mesmo quando deixava a luz invadir a casa.


E, infelizmente para ele, dias de sol não faltavam ultimamente. O céu estava sempre tão claro e azul que o fazia se sentir terrivelmente fraco. Às vezes, pensava que sempre fora fraco daquele jeito, só não tinha consciência disso. E, agora, ele percebia que não tinha consciência de tantas coisas. No fim, Sirius se dera conta de que não sabia de quase nada. Não sabia que uma peça do jogo de bexigas de Andrômeda ia ficar presa dentro de seu ouvido e também não tinha pensado que fosse subir no telhado de casa e ficar sem coragem de descer até que anoitecesse e ele não agüentasse mais de frio. Caíra da escada naquele dia e acabara quebrando a perna. E ela tinha dito que ele merecera aquilo por ser tão idiota. Marlene sabia um pouco mais que ele que ele naquela época.


A chama se apagou. Preferia ficar no escuro. Assim poderia imaginar que estava dormindo, sonhando, e esquecer que estava de novo perdido em pensamentos confusos. Se ele pudesse trazer tudo de volta, se pudesse se forçar a concentrar a mente nisso, talvez a dor parecesse menor...


Não. Impossível revirar um baú de velhas lembranças sem topar com alguns retratos tristes. Ou com retratos enganosamente felizes, do tipo que exibe sorrisos e olhos intensamente brilhantes, mas, na verdade, traz uma aura de profunda angústia, um terrível sentimento de perda. Certa vez, ele ouvira que os momentos felizes também poderiam doer. E era mais fácil superar as tristezas do que se livrar da melancolia de algo que um dia fora tão bom.


E sentir aquilo por ela sempre lhe parecera tão estranho, tão assustadoramente fora do normal. Um desconhecimento que o assustava, um vazio que não poderia ser preenchido. A melancolia bizarra de ficar sentado, com os dedos pousados nas teclas brancas do piano, preso dentro de uma melodia inexistente, impossível de materializar. Um balanço de cabelos no vento, uma lágrima. Cheiro de madeira, poeira, velas acesas, amor, dor. Uma dor mansa, que ninguém conseguia ver pulsando dentro dele. Sentia tantas coisas, e não era absolutamente nada.


Sirius fez um movimento com a varinha, e as persianas da sala se ergueram. A luz intensa pareceu ferir seus olhos e ele piscou algumas vezes antes de olhar para a parede. O papel brilhava como novo, exibindo milhares de pequenas flores azuis. Era a estampa que Marlene escondera dele.


o0o0o0o


- É melhor não ser uma idiotice, Black - resmungava Marlene enquanto ele a guiava por entre os galhos de plantas, ainda úmidos do orvalho da madrugada. Ela tinha os olhos cobertos por uma venda verde.


- Ou o quê? - ele sorriu maroto.


- Ou a Senhora Black vai ter algo para realmente comemorar em breve - ela advertiu.


- Não vamos dar essa satisfação pra ela, certo? - ele segurou sua mão, e os dois se esgueiraram por sob a cerca viva, desviando dos espinhos, atingindo o bosque que havia além do quintal da mansão dos Black. - Não olhe.


- Isso parece uma ordem, Black - ela resmungou, andando pelos caminhos que Sirius indicava. - Está me dando ordens agora?


- Eu? Dando ordens a você? Eu nem sonharia com isso - ele disse debochado.


- É melhor que não - Marlene fez uma careta.


- É aqui - ele parou, posicionando Marlene no lugar certo e tirando a venda de seus olhos.


Ela olhou ao redor impaciente, então, baixou os olhos para o chão. Seu rosto imediatamente se iluminou. O chão estava coberto de pequenas flores azuis sobre uma vegetação rasteira.


- São as suas flores - falou Sirius, observando a reação da menina. Ela não conseguiu conter um sorriso.


Miosótis, assim se chamavam aquelas flores. Azuis como os olhos de Marlene. Por isso, ele tinha dito que eram suas. Algum tempo depois ele descobriu que as pessoas também se referiam a elas como "não-me-esqueças".



Nothing unusual, nothing's changed
Just a little older that's all
You know when you've found it,
There's something I've learned
'Cause you feel it when they take it away


Something unusual, something strange
Comes from nothing at all
But I'm not a miracle
And you're not a saint
Just another soldier
On the road to nowhere
- Amie, Damien Rice
-


Fim.

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