Mudança
Capítulo 7. Mudança
Marlene mirou-se no espelho. Mas não era seu rosto. Era uma caveira branca, com brilhantes olhos azuis se sobressaindo. Suspirou, sentindo o odor adocicado de flores. Já estavam quase na primavera.
Era demais para ela pensar que, novamente, a primavera chegava sem que a guerra se aproximasse de uma resolução. Sem que o mundo voltasse aos eixos certos.
Mas não era isso que deveria estar fazendo. Suspirou novamente. Precisava limpar os pensamentos antes de sair, deveria jogar para o fundo da mente suas preocupações com a guerra, com a Ordem e com todos. Não podia arriscar que um desses pensamentos emergisse quando estivesse entre comensais da morte.
Abaixou os olhos para a penteadeira sob o espelho. Lá estava sua velha varinha, descansando sobre uma caixa. Já fazia um bom tempo que não a usava. Marlene tocou seu cabo de madeira lustrosa. Não era a mesma coisa. Mas, de todo modo, ela sabia desde o início que nunca seria.
Não era só o fato ter de usar luvas o tempo todo e perder grande parte do tato do mundo que a incomodava. Aquele tipo de magia também... não era bom, não como a magia comum, feita com varinha. A magia para ela sempre tinha sido intuitiva, delicada, algo que vinha de dentro para fora. Mas aquela magia era, de alguma forma, muito grosseira, como se tivesse que estar sempre controlando sua força para não causar algum estrago. Nunca acontecera nada de grave, mas isso não era suficiente para que deixasse de sentir que carregava uma arma potencialmente mortal ao menor descontrole.
Segurou a varinha entre os dedos. Não havia nada diferente, ao menos aparentemente. Era como se nunca tivesse estado machucada. Girou a varinha, admirando os efeitos da luz na madeira. Então voltou a pousá-la no lugar. Agora era apenas uma lembrança. Voltou a mirar o espelho, que refletia a disposição dos móveis no quarto. Tudo tão arrumado, iluminado, com as paredes cobertas de quadros de bailarinas e pôsteres de quadribol do Holyhead Harpies de 1978 – o último ano em que realmente acompanhara o andamento do campeonato nacional. Tinha toda leveza do quarto de uma adolescente. O aspecto dela quando era adolescente. Não era só a varinha, o quarto inteiro parecia ter saído de uma lembrança distante.
Ou talvez fosse ela que tivesse se distanciado muito daquela realidade.
Certo, não estava funcionando. A idéia era esvaziar a mente e se concentrar para não deixar emergir nenhum pensamento inconveniente. Mas essa parecia ser uma tarefa impossível quando ela se sentia tocada até mesmo por um pôster de quadribol velho. Daqui a pouco, ia ficar igual à Sirius Black, carregando um pergaminho velho, comido de traças, dentro do baú quando fugiu de casa.
Inclinou o corpo para frente, até encostar a testa na superfície gelada do espelho. Era estranho, de repente, se lembrar de Sirius. Quando passara as últimas semanas se policiando para não pensar nele. Afinal, ela era bastante controlada. Não estaria fazendo aquele trabalho para a Ordem se não fosse. Ninguém como Sirius poderia cobrir o rosto com aquela máscara e agir como se não se importasse. Havia algo de profundamente vil em fazer aquilo, porque no fundo sabia que não se importava nem um pouco com o fato de estar entre comensais da morte. No o fundo, não era tão diferente assim de estar nas masmorras da Slytherin.
Ele, é claro, jamais entenderia. Nobre demais para aquela guerra. Guerras não são para pessoas nobres, são para pessoas vis, que não se importavam em sujar um pouco as mãos. Sirius jamais sujaria as mãos. Ele achava que era possível vencer a guerra sendo bom.
Ela sorriu. Talvez fosse isso que ela gostasse em Sirius, afinal. Desde criança, ele se recusava a aceitar as coisas erradas que via. Não era apenas vontade de desafiar os pais. Ele apenas sabia, instintivamente, que algumas coisas eram certas e outras eram inaceitáveis. Não era à toa que tinha ido para a Gryffindor.
E agora estava com a sensação desagradável de não conseguir se controlar. Estava pensando em Sirius quando deveria estar se esforçando para não pensar em nada. Claro, os comensais adorariam saber que ela um dia alimentara uma paixonite por ele, mesmo que isso tivesse acontecido quando eram crianças. Não havia por que ser otimista e achar que ninguém ia perceber para onde estavam fluindo seus pensamentos. E, se começasse a pensar na quantidade de vezes que tinham se encontrado nos últimos tempos então...
Apertou as mãos com força na borda da mesa, impaciente com a própria incompetência. Quando era mais jovem, costumava dizer que Sirius era fraco por se ligar tão facilmente às pessoas. Mas, no fundo, ela também era assim. E a falta de contato humano nos últimos meses a torturava. Era por isso que estava obcecada por Sirius. Era a única explicação.
Marlene desabotoou a luva da mão direita e, vagarosamente, puxou o tecido, que deslizou sobre sua pele, revelando primeiro um pulso prateado, depois uma mão inteira de prata lustrosa, movendo-se ativamente esticando e dobrando os dedos.
Perguntava-se o que Sirius achava que acontecera com sua mão. Será que tinha deduzido?
Ergueu a mão prateada diante dos olhos, então a levou à testa, fechando os olhos com força. Depois, voltou a afastá-la, agora coberta por uma fina camada esbranquiçada, como um pequeno pedaço de nuvem. Ela abriu uma gaveta na penteadeira, encontrando uma bacia de mármore. A lateral fora cuidadosamente toda entalhada com runas. Estava vazia e coberta com alguma poeira. Não sabia há quanto tempo não a usava. Depositou com cuidado o fiapo de nuvem no fundo, que imediatamente se agitou, formando pequenas ondas que subiam e desciam rapidamente.
Fechou a gaveta. Cobriu o rosto com a máscara. Mirou novamente o espelho e, dessa vez, reconheceu-se naquela caveira. Algo seco e morto que estava determinado a se esquecer da vida.
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Sirius sacudiu a cabeça e puxou o travesseiro para cima do rosto. Quem diria que era preciso tanta capacidade de concentração para dormir. Atirou o travesseiro no chão e sentou-se na cama, esfregando o rosto. Não conseguia se desligar. O fluxo de pensamentos era constante, e piorava quando ele tentava parar de pensar.
Correu os olhos pelo quarto escuro. Estava montando guarda na sede da ordem naquele dia. E estava acordado há muitas horas. Deveria estar morrendo de sono. E, no entanto, era como se simplesmente não pudesse parar de pensar.
Levantou da cama e tateou o chão até encontrar as botas. A noite estava clara e a luz entrava pelas frestas do teto. Deixou o quarto, tonto, correndo a mão pela parede para se orientar no caminho.
O alçapão de entrada no sótão dava para um amplo vão central, do qual partiam corredores que levavam a quartos, uma cozinha improvisada – apenas uma bacia de metal sobre uma mesa e um montinho de pedras sobre o qual se acendia um fogo – e uma saleta usada para pequenas reuniões. A maior parte das atividades da Ordem da Fênix, entretanto, acontecia naquele vão central, mobiliado com poltronas, sofás e uma ampla mesa com cadeiras.
Sirius viu, projetando-se da lateral de uma das poltronas, um par de pernas, que ele soube que eram de Peter. O rapaz tinha se sentado atravessado na poltrona e pegara no sono, o pescoço estendido para trás, a boca levemente aberta. E Peter deveria estar vigiando. Obviamente, a iminência de um ataque à sede da Ordem não era um motivo forte o bastante para que ele abdicasse de sua noite de sono.
Sirius pensou em sacudi-lo, mas mudou de idéia. Não estava querendo companhia. Queria... bem, não sabia o que queria. Não sabia mesmo. Talvez quisesse apenas um pouco de entendimento. Mas não tinha muita convicção de que isso pudesse ajudar de alguma forma. De que ia servir descobrir o porquê? Se do que ele tinha medo era de encontrar o que estava procurando?
E ele sabia, as pessoas podem ter motivos que só elas mesmas compreendem. No fim, ninguém era realmente capaz de entender ninguém.
Sirius puxou a varinha de dentro das vestes e acenou em direção à lareira. Chamas alaranjadas surgiram. Peter ressonava, mexendo-se lentamente, sua posição ficando ainda mais estranha.
Sirius arrastou uma poltrona para perto da lareira e deixou o corpo cair na almofada. Uma névoa de poeira subiu ao seu redor. Girava a varinha entre os dedos, produzindo faíscas douradas.
Não é que estivesse assim por causa do que Marlene tinha dito. Ela provavelmente não estava em seu estado perfeito quando dissera aquilo. Ou talvez estivesse apenas brincando. Afinal, não era como se tivessem estado juntos algum dia. A não ser nas brincadeiras. Quando ela deixava de ser a Marlene geniosa e impaciente para se tornar sua pequena noiva, usando um lenço no lugar do véu e um vestido velho que ultrapassava em vários centímetros seus pés. Mas isso logo era seguido por um episódio em que os dois se estapeavam furiosamente e trocavam insultos como pequenas feras.
Gênios parecidos demais. A mãe de Marlene não se preocupava com as brigas deles. Dizia que era porque tinham gênios muito parecidos. Tão parecidos que, às vezes, pegavam-se olhando um para o outro, compartilhando um pensamento único, como fossem capazes de se comunicar pelo ar.
“Brigam tanto que um dia vão acabar se casando.” Ele não se lembrava quem tinha dito isso, mas se lembrava da careta que Marlene fez ao ouvir. Ele não fez careta, apenas guardou aquelas palavras, eventualmente deixando que transitassem por seus pensamentos. Porque ele não suportava ficar perto de meninas, a não ser que a menina fosse Marlene. Então, no fim das contas, ele ia acabar tendo que se casar com ela. Pelo menos assim talvez não fosse tão chato.
Marlene nunca pareceu realmente dar atenção a isso, sempre o olhava atravessado quando fazia comentários sobre o “casamento” e se comportava estranhamente quando ele, tomado pela curiosidade ou pela simples necessidade de estar mais perto de Marlene do quer jamais estivera de outra pessoa, colava os lábios aos dela.
E ele nunca considerou que aquilo significava que gostasse dela.
Sirius pulou na poltrona quando as chamas da lareira cresceram e se projetaram sobre ele, como uma enorme língua de fogo esverdeado. As chamas recuaram no instante seguinte, como uma onda que se recolhe novamente ao mar, deixando um vulto espalhado no chão.
Sirius ergueu a varinha, que imediatamente se acendeu, iluminando um corpo caído no chão, com o rosto coberto pelo capuz da capa negra. A pessoa gemeu baixinho, e Sirius suspirou aliviado. Afinal, não era um cadáver. Observou a pessoa erguer o tronco apoiada nos braços e então erguer o rosto para ele.
A visão fez com que Sirius apertasse a varinha. Uma mascara em forma de caveira, branca como porcelana, parecendo brilhar no escuro.
Mas ele não teve tempo de reagir, pois a pessoa puxou a máscara para cima, revelando o rosto fino e delicado de Marlene McKinnon.
- Será que eu nunca vou conseguir vir aqui sem encontrar você? – ela resmungou, batendo nas mangas das vestes para tirar a fuligem.
Sirius engasgou com as palavras. Tinha os olhos ainda presos na máscara que Marlene tinha na mão, enquanto ela se levantava, sacudindo o tecido da saia repetidamente.
- Eu sei, você não gosta da máscara – ela falou, num tom de pouco caso, ao perceber o olhar de Sirius.
- Você... – fez ele, ainda incapaz de escolher uma pergunta prioritária.
- Eu vim encontrar Dumbledore – Marlene guardou a máscara dentro das vestes. Então, caminhou em direção à cozinha.
Sirius a seguiu, ficando parado na porta, observando, enquanto Marlene tocava uma enorme bacia de metal com as pontas dos dedos, fazendo com que se enchesse de água. Então, mergulhou as mãos lá dentro, sem tirar as luvas, esfregando-as compulsivamente. Depois, arrancou a capa dos ombros e molhou o rosto.
- Dumbledore só vai vir amanhã de manhã – comentou Sirius.
Marlene parou. Sacudiu as mãos para se livrar do excesso de água e fez um gesto com a varinha para que a bacia se esvaziasse. Respirava rápido e parecia de algum modo, mal equilibrada sobre os pés, como se um vento mais forte fosse capaz de fazê-la tombar.
A garota deu três passos para trás, e suas costas encontraram a parede. Ela se deixou escorregar para o chão, os olhos fechados. Seu corpo inteiro tremia.
Sirius se aproximou. Marlene tinha o rosto contraído.
- Eu preciso contar a Dumbledore o que aconteceu aos Prewett – murmurou ela.
- O que aconteceu? – Sirius se abaixou diante dela.
Marlene se inclinou para frente e pegou a capa, atirando-a para Sirius. No primeiro momento, ele não entendeu. Então percebeu que a capa estava úmida em alguns pontos. E sentiu o inconfundível cheiro de sangue.
- Foi isso que aconteceu! – Marlene deixou a cabeça cair para frente, cobrindo a nuca com as mãos. – Eles nem tiveram tempo... eu não tive... quando cheguei não havia nenhuma parte do chão que não estivesse coberta de sangue.
Sirius olhou para ela, em parte chocado, em parte desconfiado.
- Você chegou aqui usando aquela máscara, suja de sangue e dizendo que os irmãos Prewett morreram – falou ele, irritado – e eu não devo achar isso suspeito?
- O que você quer que eu diga? Foi você que perguntou o que aconteceu – Marlene ergueu os olhos. – Que os Prewett não morreram, apenas viraram o novo papel de parede da casa?
Sirius abriu a boca. Mas nenhum som saiu. Então, ele apenas se levantou e saiu, reencontrando a sala. Peter ainda dormia atravessado na poltrona, agora com o corpo perigosamente inclinado em direção ao chão.
O rapaz voltou para sua poltrona. Mirava o fogo com raiva. Não de Marlene, mas da vida que estava levando. Da guerra. Sentia ódio. Principalmente de si mesmo, por não conseguir deixar de agir como um cego, perdido no meio de tantas coisas para se perder. Por não poder, de algum modo, fazer alguma coisa – qualquer coisa.
Ele inclinou o corpo para trás, fechando os olhos. Aquilo era demais para alguém que não dormia há tanto tempo.
Ele não ouviu os passos de aproximação. Não percebeu nenhuma sombra diferente. Não sentiu nada que denunciasse o que estava para acontecer. Apenas sentiu um peso cair sobre seu corpo, suas mãos tatearem seu rosto no escuro e o contato de seus lábios com os dela, não suavemente, mas de um modo urgente, arrancando-lhe todo o ar dos pulmões, os pensamentos conflitantes, as dúvidas, a raiva. Sirius sentiu como se sua alma fosse sugada por ela, tão definitivamente, que ele jamais poderia recuperá-la.
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E no capítulo 8:
- Mas não somos mais crianças. Não podemos mais agir como se fosse uma brincadeira.
Sirius suspirou. Sentia-se subitamente frio.
- Você não precisa dizer isso para mim.Não fui eu quem fez aquilo ontem, se bem me lembro.
A garota deixou a cabeça cair no ombro dele.
- Não estou dizendo que foi você. Só estou esclarecendo as coisas.
- Pois para mim parece que está se despedindo – resmungou Sirius.
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