Felizes



Capítulo 6. Felizes

Marlene observava o perfil de Sirius contra a luminosidade que entrava pela janela. Ele estava abaixado junto ao malão que sempre levava para Hogwarts, tentando organizar os objetos lá dentro. Tinha um ar distraído. E Marlene tentava encontrar em seus gestos o motivo de ele tê-la chamado ali.

Sirius acabara de completar dezesseis anos e nunca lhe parecera tão deslocado na casa dos Black. Ainda usava cabelos compridos, desalinhados, a franja caindo sobre os olhos. Há muito tempo abdicara de usar vestes formais. Preferia as vestes negras, simples ou, quando decidia que já passara muito tempo desde a última vez em que chocara a família, aparecia vestido com roupas trouxas. Era assim que estava vestido agora, com velhas calças jeans e uma jaqueta de couro. Sirius, ela sabia, gostava de ser diferente do resto da família e sempre os desafiava pelo simples prazer de chocar.

Sirius nunca tivera os pés muito firmados no chão. Estava sempre flutuando, levado por sua imaginação, sua alegria, seus idealismos. Marlene admirava a forma como ele se deixava arrebatar pelos idealismos. Como a amizade. Sirius acreditava que a amizade era o mais alto degrau das relações humanas. Montara em torno de si uma barreira de pessoas a que era leal e em quem confiava completamente, e assim conseguira se isolar da família. Ela, às vezes, achava que Sirius tinha se convencido de que isso era suficiente. Que sempre seria suficiente.

- Ainda estamos no meio de agosto – comentou ela, examinando distraidamente os entalhes da coluna da cama do garoto. – Por que já está fazendo as malas?

- Gosto de me adiantar – justificou Sirius, sem tirar os olhos do interior do malão.

Marlene ergueu o rosto para a mesinha ao lado da cama. Havia um pequeno espelho, um pergaminho enrolado e um livro sobre táticas de quadribol, no qual haviam sido enfiados vários papéis.

- Por que me chamou aqui? – ela perguntou, impaciente com a aparente falta de justificativa para sua presença naquele quarto. Sirius parecia tão ocupado. Mal erguera o rosto para cumprimentá-la.

Sirius parou de mexer no malão. Apontou para a mesinha.

- Pode me trazer essas coisas?

Marlene bufou, inconformada. Então, pegou o pergaminho velho, o espelho e o livro e caminhou até o rapaz. Estendeu-os para Sirius. Ele pegou primeiro o pergaminho, que foi guardado num bolso lateral do malão. Depois o espelho, que ele colocou entre as roupas. Então, virou-se para pegar o livro, olhando para Marlene pela primeira vez desde que ela chegara. Ele estava abatido. Mas ainda assim, havia um lampejo de intensa determinação em seus olhos.

- O que está pretendendo fazer, Black? – ela perguntou, antes de conseguir se conter. Sirius puxou o livro com firmeza, mas Marlene não o soltou.

- Arrumar minha mala – respondeu ele, puxando o livro com mais força, mas ela não cedeu.

- Para quê? – insistiu Marlene.

- Não é da sua conta – ele se irritou.

- É sim, você me chamou aqui porque é – ela inclinou o corpo, usando o próprio peso para trazer o livro para si.

- Te chamei aqui para carregar coisas para mim – fez Sirius, sem se alterar.

- Mentiroso – sibilou Marlene, entre dentes. – E covarde. Covarde como sempre foi. Não sei qual foi a parte Gryffindor que aquele chapéu viu em você.

Sirius não respondeu, mas ficou visivelmente irritado. Arrancou o livro das mãos dela e o atirou dentro do baú, furioso. Então, levantou-se e caminhou até o armário, abrindo as portas duplas. Marlene o seguiu com os olhos.

- Vá embora – mandou ele, remexendo impaciente as roupas penduradas.

- Você é quem sabe – ela balançou a cabeça, derrotada. Virou-se para ir embora, mas nesse momento seu olhar recaiu no amontoado de objetos dentro do baú. Bem em cima de tudo estava o livro pelo qual haviam brigado, agora aberto, revelando a verdadeira identidade dos papéis guardados ali dentro. Eram fotografias em preto e branco.

De lá acenavam Sirius de várias idades, ora em Hogwarts com os amigos comemorando a vitória em um jogo de quadribol ou numa divertida visita a Hogsmeade, ora em casa, ainda criança, acenando do jardim ensolarado, segurando a mão do irmão mais novo.

A cabeça da garota pareceu se encher com um zunido anormal. Voltou a olhar para Sirius. Ele ainda remexia o armário, afastando cabides e, eventualmente, jogando alguma peça de roupa sobre os ombros.

- Para onde você vai, Sirius?

Ele parou. Suspirou longamente. Então fechou as portas do armário. Girou os pés e, parecendo terrivelmente interessado no piso do quarto, caminhou de volta para o malão. Marlene mordia o lábio inferior. Deixou que duas ou três vestes caíssem no malão, cobrindo as fotografias.

- Sirius... – ela insistiu.

- Vou embora – falou Sirius, fechando o malão com força. A tampa ficou presa pouco acima do fecho. Ele se sentou na cama e cruzou os braços de um jeito abatido.

- Embora? – Marlene riu, achando que ele fosse desmentir o que acabara de dizer. Mas, como Sirius não falou mais nada, ela perguntou: – Embora para onde exatamente?

Marlene se sentou ao lado dele. Sirius olhava fixamente para frente, onde estava a janela. Estava tenso.

- Vou para a casa de James. Por um tempo, depois vou procurar um lugar para mim.

Marlene olhou para o chão. Não era como se ela soubesse o que deveria dizer. Sirius sempre fora muito dono de si. Ainda assim, tinha apenas quinze anos. Não podia simplesmente sair de casa.

- Não vou deixar que me expulsem – murmurou ele. – Não como fizeram com Andrômeda.

- Ninguém vai tentar te impedir? – indagou a garota. Olhava para o chão, para seus pés e os de Sirius, lado a lado, sobre o desenho geométrico do tapete.

- Provavelmente – Sirius balançou a cabeça.

- E você me chamou aqui para dizer isso? – ela sorriu, mais porque era a única expressão que conseguia colocar no rosto do que por querer transmitir simpatia. – Mesmo sabendo que eu ia dizer que você enlouqueceu?

Sirius ergueu a mão e tocou os dedos da garota, num gesto lento e gradual, que terminou com seus dedos entrelaçados. No fim das contas, ele não era tão corajoso quanto quisera parecer com aquela atitude. Queria que ela o ajudasse a ser forte, como fizera no dia em que Andrômeda fora expulsa de casa. Marlene era sempre tão racional, tão cheia de certezas. Queria um pouco da confiança dela para si, nem que fosse apenas por um instante. Não podia ser apenas o Sirius Black sonhador querendo desafiar o mundo com sua coragem desmedida. Precisava da crença dela para acreditar que tudo ia dar certo.

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- Acho que agora posso dizer com toda a certeza que esse lugar é tão ruim por dentro quanto por fora – disse Marlene, com o corpo debruçado na janela, seus olhos perdidos em algum ponto da rua lá embaixo.

Sirius riu. Estava sentado no chão, brincando com uma garrafa de cerveja vazia, as costas apoiadas numa das poltronas da sala.

Não havia lareira, apenas um enorme e antigo aquecedor que, quando ligado, fazia barulho, como se os canos de metal estivessem trincando. Sirius já morava ali há alguns anos. E Marlene observou que ele ignorava completamente a existência de luz elétrica, espalhando tocos de vela por todo o apartamento, que ele ia acendendo à medida que mudava de cômodo com acenos de varinha.

O lugar não era propriamente sujo, mas tinha um aspecto velho e desgastado, com o papel de parede desbotado e cheio de buracos. O piso estava manchado em muitos pontos e o teto tinha um tom amarelado, como o de um pergaminho velho. Portas e janelas se abriam com dificuldade e os móveis, que já eram antigos, pareciam em estado ainda pior com a camada de poeira que se formara sobre eles. Sirius dissera que não parava em casa há uma semana, para justificar a falta de ordem. Mas Marlene não achou que o lugar fosse parecer muito melhor se ele tivesse estado ali no dia anterior – exceto pela parte da poeira.

- De todo modo, é apenas provisório – ele acrescentou. – Não vou ficara aqui para sempre. Apenas até... – ele se deteve, como se não tivesse muita certeza do que dizer.

- Até você resolver que não gosta tanto assim da convivência com os ratos? – falou Marlene, em um tom mordaz, ao mesmo tempo em que se virava para ele, ainda com os cotovelos apoiados na moldura da janela.

Sirius riu, sem lhe dar muita atenção, parecendo mais interessado na garrafa do que na conversa.

- Até toda essa loucura acabar – ele deu de ombros. – Aí, talvez, eu resolva morar em algum vilarejo bruxo. Entre os trouxas... bem, é preciso se contentar com um lugar desses para conseguir ter alguma privacidade.

- E sua... namorada não se incomoda com isso? – indagou a garota, deixando a janela e caminhando distraidamente pela sala.

Sirius parou de girara garrafa no chão e ergueu o rosto para ela.

- Não tenho namorada. Não tenho tempo para essas coisas.

- Claro que não tem – concordou Marlene, mirando o chão. – Entre suas tentativas de escandalizar sua família e as missões importantíssimas que a Ordem dá a você, não teria como sobrar tempo, não é mesmo?

Uma sombra de irritação perpassou o rosto de Sirius. Então, ele sorriu presunçoso e rebateu:

- Claro que as minhas missões parecem de pouca importância quando comparadas a andar por aí vestida como comensal da morte.

Marlene deixou o corpo cair num sofá longe de Sirius. Parecia cansada demais para brigar com ele. Ou talvez, como ele, estivesse farta de tudo aquilo. Não só da guerra, mas dos jogos de interesse, das mentiras, dos fingimentos. Talvez cansados demais, mesmo para acreditar que um dia a guerra fosse acabar e que Sirius fosse se mudar para um lugar descente.

- Eu é que não tenho tempo – murmurou ela. Mexia mais uma vez os dedos da mão que antes estivera ferida, como se estivesse testando seu movimento. – Não tenho nem mais um minuto para isso tudo.

Um som alto encheu a sala. Sirius tinha deixado que a garrafa tombasse no chão. Ele se levantou e andou até Marlene, indo se sentar ao lado dela.

- Marlene – ele disse o seu nome bem devagar, como fazia quando queria pedir alguma coisa. A maioria das pessoas com quem convivia preferia fazer rodeios, observar as reações, avaliar o terreno cuidadosamente antes de pedir qualquer coisa. Sirius, ao contrário, sempre fora direto, pedindo sinceramente o que queria, mesmo quando sabia que havia pouca possibilidade de ser atendido.

Era assim quando lhe pedia para trazer-lhe chocolate quente, nas vezes em que ele ficara escondido da família. Sirius sabia que ela nunca entendera completamente por que ele fazia aquilo. Ele mesmo não tinha certeza se entendia. Talvez fosse uma forma de punir seus parentes. Talvez apenas algo que ele fizesse para chamar atenção. Ou talvez, ele precisasse se distanciar deles às vezes.

Sirius se inclinou para ela e segurou sua mão direita, sentindo o toque macio da luva de lã. Os olhos negros dele passeavam pelo rosto de Marlene. Ela mordia o lábio inferior, e o gesto a fez parecer novamente uma adolescente. Então, num movimento brusco, Marlene afastou as mãos dele com um tapa e se arrastou para o lado no sofá, para ficar o mais longe possível de Sirius.

- Você não pode ganhar dessa vez, Black – murmurou ela, os olhos azuis fixos na janela. – E quanto mais cedo aceitar isso, mais cedo terminaremo.

Sirius ergueu as sobrancelhas, sem entender o que Marlene queria dizer.

- Terminaremos o quê? – perguntou ele.

- Você sabe.

O rapaz não insistiu. Enfiou a mão no bolso da calça e tirou um maço de cigarros e um isqueiro prateado. A pouca luz da sala se concentrou na superfície refletora do objeto, como se um fagulha de estrela tivesse se perdido ali.

Sirius colocou um cigarro na boca, mas não o acendeu, ficou olhando para o isqueiro, como se ali pudesse encontrar respostas para suas dúvidas.

- Marlene – ele repetiu, novamente usando aquele tom ameno e sincero. – Por que você aceitou vir comigo?

Ela sorriu.

- Eu não poderia resistir, não é mesmo? Nenhuma mulher resistiria a Sirius Black – seus olhos fizeram uma curva na direção dele.

- Bom, você acabou de provar que resiste sim – Sirius ergueu a tampa do isqueiro, produzindo uma chama amarelada.

Marlene observou enquanto o fogo se aproximava da ponta do cigarro, o papel branco se retraindo à medida que era carbonizado, os lábios de Sirius ficando tensos e a linha de fumaça que subiu em seguida. Ela tinha aceitado sair com ele apenas para dizer que não queria mais se lembrar, não queria mais escutar, que ele não se importasse, porque ela não era mais a menina de quem ele um dia roubara um beijo. Mas ela queria que ele se importasse. Quereria que ele fizesse alguma coisa definitiva, que destruísse a tensão que transbordava de dentro dela. E, ao mesmo tempo, queria nunca mais ter que olhar para ele.

- Eu sempre achei que ia ser feliz algum dia – falou Sirius. – Claro que tive momentos felizes, mas eu acreditava que ia chegar uma hora em que eu ia dizer “é isso aí, acabaram-se as dificuldades, daqui para frente eu vou ser feliz”.

- “E viveram felizes para sempre” – sorriu Marlene. Ela tomou o isqueiro da mão dele e o acendeu, seu rosto se tingindo de amarelo. – Conheço pessoas felizes, mas acho que elas mentem.

Sirius balançou a cabeça. Agora sim, era uma conversa de bêbados.

- O engraçado – ele falou – é que, pensando agora, acho que fui mais feliz quando morava com meus pais. E eu fiz tanto esforço para sair de lá...

Sirius ria baixinho e Marlene se deixou contagiar por aquela alegria trágica. Se esqueceu que estava encolhida num canto do sofá. Esqueceu que, poucos instantes antes, estava prestes a levantar e ir embora. Sua risada ecoou junto com a de Sirius, se erguendo no ar como ramos tortuosos de uma trepadeira até ecoar no teto e se espalhar em todas as direções.

Marlene se inclinou para frente, apoiado os braços nos joelhos. Seu rosto se escondeu nas palmas das mãos. E o som da risada se tornou mais fraco, espaçado, transformando-se em soluços. Ela tremia.

Sirius estendeu o braço sobre o ombro dela e, dessa vez, Marlene não tentou se afastar. Não falou nada. Ela estendeu a mão para ele a segurasse, e Sirius obedeceu à ordem silenciosa. Marlene fez força para apertar seus dedos entre suas delicadas falanges. Os olhos o fitavam, nenhuma palavra ameaçava emergir, apenas o vago som de choro. As lágrimas iluminavam o rosto dela.

Marlene fechou os olhos, como se estivesse tentando se concentrar para evitar um pensamento. Então ergueu o rosto. Observou Sirius através dos olhos azuis como que fazendo uma anotação mental dele.

- Ainda gosto de você – ele disse.

Marlene mordeu o lábio inferior. Então, como se estivesse descarregando algo que ficara muito tempo guardado dentro de si, falou simplesmente:

- Eu te amei.

Um som metálico ecoou na sala. Marlene estava de pé, e o isqueiro prateado tinha rolado de seus dedos para o chão.

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N.A.: Adoro fins de capítulos vagos n.n
Achei tão angustiante esse riso que se converte em choro da Marlene. E estou ficando viciada em incluir a mansão dos Black em todas as fics que escrevo...

No próximo capítulo:

“- Eu preciso contar a Dumbledore o que aconteceu aos Prewett – murmurou ela.
- O que aconteceu? – Sirius se abaixou diante dela.
Marlene se inclinou para frente e pegou a capa, atirando-a para Sirius. No primeiro momento, ele não entendeu. Então percebeu que a capa estava úmida em alguns pontos. E sentiu o inconfundível cheiro de sangue.
- Foi isso que aconteceu! – Marlene deixou a cabeça cair para frente, cobrindo a nuca com as mãos.”

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