-A primeira peça-
-Capítulo I-
-A primeira peça-
As nuvens caiam do cinza para o vermelho ao longo do horizonte.
O que sobrava do céu se tornava uma confusão entre o azul e o escuro. Com o nascer do fim do dia morria junto a luz do sol, cedendo o espaço ao pálido da lua escoltada por estrelas.
Fraquejando contra a brisa, a silhueta do castelo se perdia iluminada pela noite.
Com murmúrios mudos as velas foram se acendendo, uma a uma, em uma ordem desordenada. Espalhadas pela sala com estudo ponderado, elas acobertavam as sombras existentes para trombarem em muitas outras.
Da janela vinha o sopro morno de fim de tarde, como se chegasse de carona com os últimos resquícios do dia, assoprando o pó dos livros esparramados pelas mesas e estantes.
Ali, encaravam um ao outro, a procura do perdido.
A coruja piou curiosa, dançando equilibrada nos sete volumes da “Magia em nossa História - Um breve tratado sobre as situações mais curiosas e intrigantes do mundo mágico”. O homem, descansado na poltrona frente a frente com os volumes “bíblicos!”, pareceu despertar do horizonte da janela. Olhou-a esperando um consolo ou uma idéia. O animal retribuiu, agitando as asas impaciente, não disposta à concílios filosóficos.
Por um breve momento tudo fez-se assim.
-Não tenho tempo para pequenos detalhes, não é..?- começou o homem, absorto em si mesmo- Mas de únicos detalhes tudo isso se fez...
A coruja piou concordante.
-Tá, já sei...- voltou-se para o bloco de pergaminhos a sua frente- Falta pouco agora...-continuou, molhando a pena no tinteiro e deixando grossas gotas fugirem para a mesa.
A cada nova linha recobrava os esforços, hesitante. Não podia parar, não agora.
Não que tivesse pressa. Não tinha tempo.
-Acho que esta feito- anunciou, retendo a pena e lançando-a para o lado, despreocupado- Vai ter que voar bem longe...- continuou, sem se voltar para a coruja- Sei que consegue, não consegue..?
O animal fitou-o desafiado, inflamado pela dúvida.
Com a ponta da varinha, agora em mãos, percorreu a carta, linha por linha.
- Tome, está é para você. -voltou-se para a ave, ainda olhando para o bloco, atando uma folha a sua perna- Não se preocupe se não conseguir, mandarei outras mais.
No bloco, em cada novo pergaminho, as frases haviam-se copiado como se as tivesse escrito.
-Você pode ir...- disse, empurrando sem cuidado a coruja.
Um pio ingrato precedeu sua partida. Ofendida, o pássaro ganhou a janela para o céu.
-E o que faço com você..?- procurou outra folha, a instantes rabiscada com poucas frases- Acho que ele gosta de bronze, não gosta?
A varinha brilhou, com o sorriso que surgia. O pergaminho saltou no ar e foi-se prender no centro da lousa. Molduras em bronze surgiram a sua volta, dando um brilho estranho nesse quase noite.
Pós se de pé com certo custo, ainda admirando a placa nova.
O silêncio deixou-se ao surdo som das velas.
-Então é assim..?- deixou-se perdido- Até mesmo criei o habito de falar sozinho...- continuou, argumentando para a sala.
“Mas não deve demorar muito agora”.
Então, como se profetizasse, o apito brusco ganhou o som.
O minúsculo pião rodopiava frenético em torno de si mesmo, rodeando em cima do “Manual mui prático para o preparo de poções mui problemáticas”.
Mesmo assim não se alarmou. Do bisbilhoscópio se dirigiu para uma mesinha ao canto. Recuperou o que parecia ser um velho pergaminho, comido pelo tempo de escola.
-Ora, cinco... Só cinco..? Onde errei para ser subestimado assim...?- olhar banal, tom sério.
Da folha pontinhos com letreiros atravessavam as pressas os aposentos, investigando. Já sabiam aonde ir, mas deduziu(apesar de tudo), que precaução nunca é o bastante quando o assunto é ele. Estavam a dois andares abaixo.
Agora há um.
-Mardlack... Então não planejam mesmo me prender... Como o planejado, então...- agora indo até a primeira mesa e sufocando o pião com a mão.- E como era mesmo?- disse, apalpando três vezes o pergaminho com a varinha- Malfeito feito?
O mapa apagou, deixando a dúvida em branco na sua face. Com um novo toque de varinha, a folha desapareceu de sua mão, como fumaça.
O pião insistiu.
Como se tudo fosse parte de seu cotidiano, vestiu seu longo casaco, se hipnotizando na frente do espelho.
-Que façam a minha barba pelo menos- seus dedos percorriam a malfeita barba nova. Seus olhos se encontraram. O brilho era intenso, como de um fogo prestes a ceder ao vento- Nunca quis ficar velho...
Sua pele pálida mostrava as marcas do cansaço e do mal trato. Cabelos negros e oleosos com o passar dos dias, salpicados com o pó dos livros.
“É isto o que sou e é isto o que nunca fui”
Passos no corredor.
Com a respiração excitada, os cinco pararam diante da porta.
Pareciam fazer sinais entre si. Um homem ao canto esquerdo se adiantou.
-Bombardia!!
A porta se escancarou, logo foi ao chão.
Com passos ofegantes, o homem do meio se adiantou na confusão de lascas, varinha em riste.
Seus olhos vidrados, seus nariz ossudo, se contorceram ao encontrar a sala vazia.
Uma única janela aberta.
Se adiantou, seguindo o vento fosco, a cada passo as velas vacilavam em suas chamas.
Mais dois homens adentravam a sala, cautelosos.
-Onde ele está?-um dos dois, temeroso ou aliviado.
O primeiro homem debruçou pela janela, deixando o longo cabelo negro se espalhar ao vento.
-Maldito, por que não nos enfrenta...?-escapou de seus lábios tremidos- Ele está indo para o corujal! Rápido!- continuou frenético, vendo o fugitivo se esgueirando no ar, subindo de salto em salto, envolto em uma bolha esverdeada- Você não vai escapar! Não agora que tenho você no papel!!
Com um movimento rápido o perseguidor atirou-se também pela janela, aterrissando nas telhas próximas. Apontou a varinha para os pés e sussurrou palavras inaudíveis. Chamas brotaram de suas solas, lançando-o alto, em direção ao procurado, enquanto este procurava se estabelecer no parapeito do corujal.
Espantando os bichos, o perseguido se esgueirou rápido entre as passarelas, procurando a cúpula.
-Tenho uma tarefa para vocês!- gritou, erguendo o bloco que trazia seguro em seus braços- Quantas puderem!!- continuou, atirando as folhas para o alto.
No ar se espalharam, criando o caos entre as corujas que começavam a voar desnorteadas. Com um toque da varinha, todas as cartas dobravam instantaneamente e procuraram suas mensageiras, prendendo-se a elas por laços que se faziam do nada.
-Vão! Para os Cinco Picos! Saberão o caminho!
E o perseguidor chegou, rolando para a passarela, tropeçando nas corujas, enfrentando-as frenéticas buscarem o céu tardio na interrogação de seus destinos.
As asas se arrastaram no ar, abafando a voz então crescente.
-Não há mais tempo de chorar ajuda, Black!-começou o homem, se levantando cuidadoso e avançando poucos passos à medida que as aves ganhavam o horizonte, deixando um festival de penas.
O bisbilhoscópio se calou enfim. O perigo já era real demais para não ser notado.
-E quem ajudaria um perseguido do estado?- voltou o perseguido, virando vagaroso para encarar o perseguidor- Além do mais, não preciso de ajuda para o que pretendo hoje a noite...-continuou, a varinha baixa, frouxa na mão direita.
-Há! Você? Sem resistir..? Virá sem resistir? Nem um pouquinho??- agora o homem, um sorriso escancarado no rosto, avançando mais uns passos(dominando território), varinha em guarda- Pretende nos acompanhar pacificamente?-insistiu- Mas assim não há diversão, Black, e eu sei que você quer se divertir!
O outro homem sentiu o sorriso despreocupado se contrair em sua face, cansado de todo esse velho jogo(uma questão de tempero ao cotidiano), mas sem resistir a tentação de uma última rodada.
_Sempre há os estraga prazeres... E isso, é algo que temos de aprender a conviver em nossa profissão... De qualquer jeito, você não veio aqui para me algemar... Não você...-jogou, decidido.
-Bem, é claro que segundo as ordens do ministério você deveria ser encarcerado e interrogado. Sabe, as vezes eu acho que o ministério quer aumentar sua coleção, o que agradaria muito os dementadores..! Você não seria o primeiro da família a ter uma reserva especial naquela ilha!- o riso ecoou, jorrando de sua garganta com um ruído rouco.
O agora Black silenciou. Seus lábios se comprimiram em um tom frio, intocável. Não por estar encurralado, mas pelo nome que o haviam nomeado.
“Até você teme o nome do meu pai...” sussurrou para si, perdido entre a afirmação e o questionamento.
-Mas, não se preocupe, eu informarei ao ministério que você acabou morto ao resistir- continuou o outro, parecendo não ouvir o que o outro dizia, contendo as gargalhadas- Eu só estava esperando você cometer algum erro, um equivoco que fosse, e sabia que ia ter permissão dos “grandões” para caçar você..!! Você sempre soube demais Black, sempre! E logo assim, sem esperar, você me dá um presente desses!!- a varinha não oscilava junto ao corpo corrompido pelas gargalhadas- Você sempre soube demais..!
-...um presente...? Eu nunca erraria assim Tibério, você sabe que não. Você deveria saber que eu nunca erro.- continuou, o tom decidido, como se o dilema já estivesse resolvido- E você tem razão, eu sei demais- a voz voltou seca, perdendo o tom de logro para uma tensão meditada.
Era como se algo crescesse dos seus olhos, como se uma barreira de braços cobrisse toda a distancia entre os dois.
Mardlack pareceu receoso. Seus dados se apertaram na varinha.
Decidiu não pensar. Era o momento.
A varinha de Tibério Mardlack despejou um brilho verde, negro e intenso como o hálito da morte.
Por um segundo não houve nada senão o enigma, fumaça e penas, até entender que estava ao chão, desnorteado, tateando atrás de sua varinha.
Então sentiu seus braços se fecharem em seu próprio corpo.
Estava dominado, adivinhando a aproximação do adversário. Não podia fazer nada. Tentava incitar seus músculos a reagir, mas era como se eles não existissem, como se sua mente se desligasse do seu corpo. Seus movimentos não existiam, para seu desespero, reservados ao plano das idéias.
Prepotente, o adversário empunhava a varinha a sua frente, quase roçando seu queixo.
-Com...Como??- indagou, surpreendido por ouvir a própria voz.
Mardlack desviou seus olhos, procurando os do aprisionador.
-Você não sabe como eu desejava que fosse você, Mardlack- começou o vitorioso, uma voz sem som, estudando a expressão surpresa do homem impotente- Na verdade, posso até dizer que isso foi quase premeditado- a voz ganhou pequenos traços de prazer.
-Ora seu!!- mas foi interrompido em suas injúrias.
-Não acreditei que tinha sido absolvido até encontrar você “farejando” feito um rato para o ministério. Não depois de tudo o que você fez...- interrompeu, sua voz em uma confusão de desprezo e paixão.
O homem no chão pareceu considerar. Não ia perder, não assim.
-Não são todos tão radicais quanto eu e você, para a minha sorte- voltou, tentando vencer o seu “eu aprisionado” e ganhar os movimentos- Além do mais, eles precisavam de nomes... e pessoas dispostas a trair seus velhos companheiros... até eliminá-los, se viesse ao caso- demorou-se, tentando ganhar tempo- Quando o Lorde das Trevas caiu eu não achei incentivo para continuar fiel a qualquer um deles... Todos covardes! Renunciando a seus antigos hábitos! Seria um crime deixá-los vivos e soltos por ai, difamando o nome do nosso senhor! Um erro!- a cada palavra sua voz se tornava mais aguda e redundante.
-Não me venha com falsa lealdade. Eu sei que a hipocrisia é sua melhor virtude. Nunca foi fiel a nenhum ideal, nunca lutou por nada a não ser por seus prazeres mesquinhos...-uma pausa- Mas não se preocupe- voltou, roubando palavras- Eu irei corrigir esse erro nesse instante.
-Vai me matar! Há! Um homem que não consegue ao menos sentir suas pernas!?- blefou, esperando uma chance.
-O que há de errado com isso..? E, bem, se o que você quer é sentir, por que negar?- seus olhos se intensificaram- Crucio- ordenou, sentindo cada letra, a medida que o outro voltou a sentir cada parte de seu corpo.
Ouve dor, a essência da dor, a dor que não deixa cicatrizes mas perfura a mente a procura de suas fraquezas.
-Crucio. – Parou a dor. Olhares vidrados observaram o corpo no chão tentar se recompor.
-Ah!- voltou Mardlack, gritando para extasiar o êxtase.- Posso agüentar muito mais que isso!!-seus olhos lacrimejavam.
A um suposto movimento de Black, Tibério voltou a gritar, agora suplicante.
-Não! Por favor!! Pare!!
E nada aconteceu, a não ser a expectativa da dor.
-Diga o meu nome!- ordenou, como se murmurasse um feitiço.
-Black! Vincent Black!
-Esse não é o meu nome..!
-Vinc...-gritos.
A dor recomeçou, para cessar quase imediatamente.
-O nome herdado do meu pai!
Ouve um momento de receio.
“Até ele teme o nome do meu pai.”
-Nanloph! Nanloph Crowmun! Vincent Nanloph Crowmun!!
O silêncio triunfou, satisfeito.
O homem respirou seus movimentos, mas a coragem ainda estava foragida. Sua varinha estava escondida, longe de seu alcance.
-E agora você morre...
Passos. Talvez os degraus da escada. O bisbilhoscópio voltou a se enfurecer.
-Ele está aqui!- Mardlack anunciou aos gritos, quando percebeu que podia.
Vincent decidiu por o que decidiu ser mais importante. Só desejava duas mortes, e não seis.
Ainda cuidadoso, seguiu seus passos lentos até a mureta da passarela, de costas, varinha em guarda ameaçando o outro.
-Até você não pode fugir para sempre Black!- voltou o homem, entre gemidos, tentando se levantar, observando o inimigo se livrar do sobretudo lento- Nos te acharemos!
-Pessoas como você e seus mestre costumam ser relutantes em encarar a verdade- voltou a voz enquanto mantinha o equilíbrio, subindo com cautela na mureta, seus olhos encontrando os braços abertos do infinito até os gramados do jardim.
-Sempre tão misterioso e comovente!- recomeçou irônico. - eu irei te seguir aonde for! Seu maldito!- o ódio controlava suas linhas- Venham rápido!- procurando seus subordinados.
-Para onde eu vou - continuou Crowmun - Você teria medo de me seguir.
-Te seguirei até o inferno, se preciso!
-Sinta-se a vontade. Não vou te deter. Se o mundo tiver sorte...
-O que!?- gritou, pensando em se aproximar.
Mas Vincent não se preocupou em responder.
Virou-se para Mardlack, mas não entoou sequer palavra mesmo assim. Agiu como se estivesse só, como se Tibério fosse apenas mais uma pena fora do lugar.
Juntou as mãos ao peito, entrelaçando os dedos em uma construção curiosamente mística(com tendências orientais), a varinha enroscada ao meio, a ponta encostada entre os olhos.
Seus olhos se fecharam em autocontemplação, seu corpo suspirou ganhando calma sobre a excitação.
Pareceu cantar algumas palavras, sussurrante.
Então congelou e decidiu abrir os olhos.
Os passos se aproximavam, finalmente.
-A morte, Mardlack, é a maior ruína dos homens. Mas mesmo assim, nos os tolos, a perseguimos como quem quer chegar ao fim do infinito- decidiu-se por um novo suspiro, um novo fechar de olhos- Diga ao seu mestre que a minha não foi em vão, quando ele retornar...
Então sua varinha não brilhou. Ao contrário, a estrutura do universo pareceu descolorir e buscar a escuridão. Com um estalo seco seu corpo ficou inerte, grudado ao céu, para depois se desmanchar lentamente. Abriu os olhos uma ultima vez e Tibério Mardlack pode ver a luz deixar o seu corpo.
Então, ele se abandonou ao crescente céu noturno.
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