A volta de Dinho
Capítulo Quatro
A Volta de Dinho
Fazia pouco mais de duas horas que Sofia estava na casa dos Wolfe, no entanto, já se sentia tudo tão familiar a sua volta, que parecia que elas crescera naqueles corredores sombrios e com cheiro de mofo.
A avó a levara para conhecer os principais compartimentos, e lhe deixara muito a vontade para fazer quantas perguntas quisesse. Logo depois, Sofia foi almoçar com ela, o pai e os irmãos numa sala de jantar em formato circular.
Os irmãos, como Sofia bem lembrava, eram louros, contudo, a garota que se chamava Elizabeth, havia tingido o cabelo de vermelho, e o garoto, que era mais jovem que a irmã, tinha o cabelo cortado tão rente que parecia estar com a cabeça raspada. Elizabeth, que era chamada por todos de Liz, era particularmente bonita, com seus olhos assustadoramente azuis e um corpo bem feito. Já o irmão Ricardo, que todos abreviavam para Rick, tinha o rosto cheio de espinhas e marcas, que ele não possuía da vez que Sofia o vira de longe. Os dois não pareciam exatamente felizes com a presença de Sofia, mas a garota também não estava se importando muito com isso, havia tantas coisas para descobrir sobre esta família, e tudo parecia tão instigante, que quase não notava o olhar de desprezo dos dois.
-O que sabe sobre a bruxaria, Sofia? –Questionou a Sra. Wolfe, de repente.
-A-ah, bem... Q-quase nada. –Respondeu a garota, sentindo que corava. –Eu nunca tive muito contato...
-Bem, meu amor, talvez devesse se instruir mais no assunto, vou emprestar alguns livros para você. Logo terá que optar em ser ou não bruxa.
Liz tossiu com desdém enquanto Rick deu uma risadinha abafada, ambos os gestos foram criticados pelo Sr. Wolfe, que lhes olhou feio.
Depois da refeição, A garota apanhou dois livros grossos e pesados que a avó lhe ofereceu e foi embora, recusando a carona do pai.
-Eu moro perto, e eu gosto de caminhar... –Disse, em tom de desculpa.
-Se você prefere... –Disse-lhe ele. –De qualquer forma foi muito bom recebê-la. Mamãe estava tão ansiosa por essa visita e eu...
-É verdade que... É verdade que nem o Miguel nem e o Dinho são seus filhos? –Questionou muito rápido.
-Mamãe te contou, não? Acho que ela não devia, isto só cabia a Dora, mas já que sabe, sim, é verdade. O único filho que tenho com Dora é você, querida.
O único filho que tenho com Dora é você, querida... Esta frase veio martelando a cabeça de Sofia durante todo o caminho de volta. Como olharia para a mãe e para Miguel da mesma forma agora? Por que a mãe agira assim, por que enganara os filhos?
Mesmo que amasse Dora, às vezes a garota simplesmente achava que tudo seria mais fácil se ela houvesse nascido em outra família, se tivesse outra mãe. Pensando nestas coisas, a garota quase não reparou no menino que cruzou com ela. Era ele...
-Oi. –Ela disse, quase sem pensar.
-Ah... Oi. –Ele respondeu, parecendo surpreso com o cumprimento da garota, mas sorriu.
Sorrir já era demais, Sofia não teria tanta coragem, deu meia volta e seguiu o seu caminho, andando a passos largos, enquanto o garoto continuava o dele, pelas ruas desertas do velho centro num dia de sábado.
Os gêmeos discutiam por um desses outros motivos qualquer de sempre quando a garota chegou no apartamento, que ela costumava mesmo era chamar de “apertamento”. D. Dora assistia uma novela vespertina com a coluna vergada para ficar com os olhos mais próximos da TV, tamanha era sua emoção ao ver o casal protagonista numa dessas cenas melosamente românticas. Sofia, por sinal, odiava novelas. Miguel estava debruçado sobre os livros, resolvendo questões de trigonometria. Sofia passou por eles sem ser vista, foi até o seu cantinho cortinado, guardou os livros, trocou a roupa por uma camiseta e um short confortável, e finalmente, voltou a fica visível, quando finalmente foi reparada pelos demais.
-E aí? Como foi?_Questionou D. Dora, curiosa.
Sofia não respondeu, estava inquietantemente aborrecida com tudo o que soubera. A mãe ainda insistiria na pergunta não fosse Miguel cortá-la:
-Ele perguntou por mim... Ou pelo Dinho? –E o rapaz baixou a vista para parecer desinteressado.
-Ah, claro. –Mentiu Sofia, ainda não se sentia segura para contar ao irmão o que sabia.
-O que ele perguntou?
-Como estavam... –Emendou, pouco convincente. –Eu disse que estavam oks.
-Ah, tá, legal. –Ele disse, voltando a baixar o olhar, mas Sofia percebeu que ele sofria com o suposto desinteresse do pai por ele.
-E como ficou a história da escola?
Agora que D. Dora perguntara, Sofia havia se dado conta de que ela havia discutido tudo com o pai, menos o assunto da escola. Sem resposta para dar, apenas respondeu, aborrecida:
-Pra senhora tudo é dinheiro?
E saiu de casa em direção à laje do prédio. Mal chegara ao local quando enxergou uma fitinha preta no chão, apanhou-a e se surpreendeu ao perceber que se tratava de uma daquelas fitinhas de promessa. Sabia que bastava amarrar no braço, fazer três pedidos e esperar até que ela se partisse, conforme ficasse muito desgastada.
-O que pedir?-Disse quase para si mesma.
A primeira idéia foi que se tornasse mais próxima do pai. Acabou concluindo que era um bom pedido, e assim o fez. Em seguida pensou na família, queria que eles melhorassem de vida, tivessem uma casa própria, por exemplo. O terceiro pedido foi direcionado ao irmão mais velho, Alexander. Queria que ele tomasse jeito, arrumasse um emprego. A face do irmão mais velho sorrindo travesso veio de repente à sua memória. Ela sentia a falta dele...
Não havia nada que a menina odiasse mais do que coçar as costas do padrasto. E ele, só para irritá-la, acabava ordenando que ela fizesse isso todas as manhãs. Sentindo-se extremamente infeliz, Sofia depositou todas as forças nas pontas da unhas e o arranhou inteiro.
-Ai, pára, pára, tá ficando louca?
Sofia o largou no mesmo momento que a porta se abriu, e Dinho, totalmente ensangüentando adentrou o apartamento.
-Dinho... Ai, meu Deus, o que houve? –Perguntou a mãe, correndo para acudi-lo.
Sofia também se aproximou, enquanto Valdir parecia em dúvida entre espancá-lo ou ajuda-lo. O menino de rosto bonito, trazia um corte no estômago. Estava gelado e tremia, seus olhos tão claros e brilhantes agora estavam vacilantes, ele segurava a mão da mãe com uma expressão de intensa dor.
-Eu vou morrer, mamãe...
E o rapaz olhou para a irmã sem forças, em seguida para a mãe.
-É claro que não vai, Dinho... Valdir, pelo amor de Deus, meu ajuda, Valdir...
Mas não havia mais no que ajudar, Dinho agora deixava sua mãe escorregar lentamente da mão da mãe, chocando-se contra o chão com um baque. Que cortina efêmera separava a vida da morte...
-Dinho?-Chamou Sofia em estado de choque. –Mãe, ele morreu, ele morreu...
Vinte e quatro horas depois Sofia passava pela maior provação de sua vida, ajudava a mãe a vestir o corpo inerte do irmão morto, depois da autopsia no IML. Seu rosto antes vigoroso e corado, o mais belo de todos os filhos de D. Dora, agora estava pálido como cera, diminuto. Ao apóiá-lo nos braços para que a mãe pudesse vesti-lo, Sofia sentiu que poderia desmaiar, o que antes era o irmão, agora era nada mais nada menos que um grande saco de peles.
Pouco tempo depois o irmão mais velho da garota foi enterrado num cemitério humilde, em uma cova rasa. Não compareceu muita gente, somente alguns familiares mais próximos. Valdir não fora, deveria estar embebedando-se em um dos bares da cidade. Miguel parecia arrasado, a contemplar a cova onde estava o irmão.
D. Dora estava resignada a não chorar, trazia apenas os olhos avermelhados e as feições tristes. Sofia não sabia muito bem o que sentia, mas soluçava e chorava como uma louca. Dinho nunca fora tão próximo dela, mas a menina possuía algum carinho por ele. Lembrou com saudades de alguns momentos que passaram juntos, de como ele era extrovertido.
Os gêmeos corriam pelo cemitério junto a uns primos de Sofia fazendo algazarra e confusão. A garota sentia-se extremamente aborrecida com isso. Sim, eles eram muito crianças, mas será que não podiam sentir o clima funesto que varria a todos?
Sofia sentou-se afastada de todos, sobre um túmulo de lajotas de fundo de quintal meio enlameadas, estava totalmente abandonado. Olhou com tristeza uma foto muito desgastada de uma garotinha, era tão esquisito pensar que ela estava morta. Sofia olhou para o punho esquerdo, lá contrastando com a pele muito branca da garota, estava a fitinha preta. Sofia arrancou-a do braço com amargura, deixando que o vento a levasse para o longe. Pensou para si mesma que a fé era o sentimento mais perigoso do coração do homem, pois castrava-o de agir.
-Ah, minha filha, tenha paz, tenha paz em seu coração. –Pediu o avô de Sofia, aproximando-se da garota. –Nós nunca deveríamos enterrar aquilo que amamos, mas é a vida, meu bem.
Nós nunca deveríamos enterrar aquilo que amamos. Esta frase ecoou durante mais que uma semana no coração de Sofia. O que era o ser humano, afinal? Que ser cruel era esse que aceitava separar-se daqueles que amam. Que apenas jogavam aqueles que perderam a vida em um buraco sujo para ser devorado por vermes? Como podia o homem ser tão racional ao ponto de conviver tão bem com a morte? Sofia definitivamente passou a enxergar o mundo dentro de uma nova perspectiva desde aquele dia, talvez de um modo mais realista.
Passou horas em seu cantinho cortinado, refletindo no que o irmão sentira ao saber que morreria, se talvez ele tivesse se arrependido das loucuras que já fizera. Chorou ao lembrar que o irmão não teve chance de se arrepender.
A verdadeira razão da morte de Dinho, Sofia ainda não sabia, mas tinha total consciência do crescimento interno que ela lhe proporcionara. Nenhum ser humano permanece igual depois da perda de um ente querido. Alexander, Alexandinho, Dinho... Ela nunca mais o veria. Tivesse ou não crescido, o rapaz permaneceria em sua memória como o melhor jogador de esconde-esconde que ela conhecera, o menino alegre que sempre encontrava o lugar mais improvável para meter-se, e sempre tinha algo nas mãos para atirar sobre a cabeça de quem o achasse...
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!