Triste década
Mais um ano letivo começaria dentro de instantes. Na mesa dos professores, Severo Snape observava com enfado as centenas de cabeças ocas que eram seus alunos. Nesse instante, as portas do salão principal se abriram e ele viu os alunos que seriam selecionados naquela noite entrarem.
Tão pequenos, tão insignificantes... Era difícil imaginar que ele mesmo já fora como um daqueles meninos que agora tremiam à espera da seleção. Minerva colocou o Chapéu Seletor no banco habitual e pouco depois o rasgo na aba do chapéu se abriu.
Ah, vocês podem me achar pouco atraente,
Mas não me julguem só pela aparência
Engulo a mim mesmo se puderem encontrar
Um chapéu mais inteligente que o papai aqui.
Podem guardar seus chapéus-coco bem pretos,
Suas cartolas altas de cetim brilhoso
Porque sou o Chapéu Seletor de Hogwarts
E dou de dez a zero em qualquer outro chapéu.
Não há nada escondido em sua cabeça
Que o Chapéu Seletor não consiga ver,
Por isso, é só me porem na cabeça que vou dizer
Em que casa de Hogwarts deverão ficar.
Quem sabe sua morada é a Grifinória,
Casa onde habitam os corações indômitos,
Ousadia e sangue-frio e nobreza
Destacam os alunos da grifinória dos demais;
Quem sabe é na Lufa-lufa que você vai morar,
Onde seus moradores são justos e leais
Pacientes, sinceros, sem medo da dor;
Ou será a velha e sábia Corvinal,
A casa dos que têm a mente sempre alerta,
Onde os homens de grande espírito e saber
Sempre encontrarão companheiros seus iguais;
Ou quem sabe a Sonserina será a sua casa
E ali fará seus verdadeiros amigos,
Homens de astúcia que usam quaisquer meios
Para atingir os fins que antes colimaram.
Vamos, me experimentem! Não devem temer!
Nem se atrapalhar! Estarão em boas mãos!
(Mesmo que os chapéus não tenham nem pés nem mãos)
Porque sou único, sou um Chapéu Pensador!
Todo o salão rapidamente irrompeu em aplausos ao fim da canção. Severo quase sorriu. Incrível como todos os anos o velho Chapéu Seletor conseguia criar uma nova letra para a cerimônia. Provavelmente ele passava todo o período letivo compondo a composição que cantaria no dia 1º de setembro.
Minerva postou-se junto ao banquinho, segurando um longo pergaminho amarelado.
'- Quando eu chamar seus nomes, vocês porão o chapéu e se sentarão no banquinho para a seleção. Abbott, Ana!
Ele voltou a atenção para seus companheiros de mesa, esquecendo-se completamente dos novos aprendizes que estavam sendo sorteados. O professor Dumbledore estava sorridente e excessivamente confiante, como sempre. Havia algo mais no olhar do diretor também. Uma alegria, um sentimento quase nostálgico...
Ao lado dele estava o rapazola a quem tinham entregado a cadeira de Defesa Contras as Artes das Trevas. Há anos pedia ao professor Dumbledore que o deixasse lecionar aquela cadeira. Que permitisse abrir os olhos daqueles idiotas antes que fosse tarde demais. Antes que eles terminassem como ele havia terminado.
Inconscientemente, seu olhar vagou pelas mesas até encontrar Hercule Meadowes. O rapaz iria se formar naquele ano. Quase se sentia aliviado com isso. Os olhos dele eram parecidos demais com os da irmã.
'- Potter, Harry.
Um burburinho levantou-se no salão e Severo sentiu-se arrancado de seus devaneios para encarar um menino de cabelos muito negros e arrepiados, e olhos intensamente verdes por trás das lentes de um óculos de aro negro. O garoto se adiantou, colocando o chapéu sobre a cabeça. Não podia ser... Quando afinal pensava estar livre de um dos fantasmas de seu passado, outro lhe aparecia.
'- GRIFINÓRIA! - o Chapéu anunciou em alto e bom som ao mesmo tempo em que a maior salva de palmas da noite ecoava pelas paredes do salão principal.
Severo estreitou os olhos, encarando o menino encaminhar-se trêmulo para a mesa dos leões. Voltou-se para Dumbledore. Lá estava o olhar alegre, nostálgico e orgulhoso. O Menino-que-sobreviveu estava afinal em Hogwarts. O filho de Lílian e Tiago Potter.
O restante do banquete se passou rápido demais. Severo lembrava-se apenas de ter se virado para Quirrel, o novo professor de DCAT e, antes que pudesse se dar conta, encontrar os olhos verdes de Harry Potter encarando-o. Sentiu algo revirar dentro de si. A mesma repulsa que sentira pelo pai, sentia pelo filho.
Rapidamente ele desviou o olhar, lembrando-se subitamente da caixa que estava em seus aposentos. A caixa que encontrara na Mansão Potter com os pertences do "líder" dos marotos.
Quando afinal deixou o salão, a caixa ainda estava em seus pensamentos. Assim, tão logo se viu de volta àquilo que ele chamava de lar há onze anos, ele a retirou do armário onde a guardara e, sem escrúpulos, despejou todo o conteúdo sobre a cama.
Retratos, bilhetes, cadernos, coisas estranhas em formatos sugestivos... Ele se sentou na cama e começou a separar os objetos em pequenos montes. Havia muitos bilhetes de alguma coisa chamada "cinema" - com certeza, algo do mundo trouxa, ele pensou, enquanto lia as letras desbotadas que diziam "Star Wars - Uma Nova Esperança". Havia uma data quase ilegível, exceto pelos dois últimos dígitos: 77.
Deixou o bilhete junto com outros. O que significaria "Casablanca", "Grease", "Por quem os sinos dobram" e tantos outros títulos que apareciam naqueles papelotes azuis?
Meneando a cabeça, ele começou a separar as cartas. A maioria eram trocas de correspondências entre Potter e Black. A vítima e o assassino. Sorriu amargo. Sirius Black, o traidor.
Muitas das fotos eram de Lílian Potter. Havia fotos dela com as amigas, sozinha, com o marido, com os pais... Os mesmos olhos verdes brilhantes que vira no filho mais cedo.
"Não preciso da ajuda de uma sangue-ruim imunda"- ele quase podia se ouvir falar. Afagou sem perceber o braço, no local em que a Marca Negra, embora invisível, ainda o marcava.
Com um suspiro, ele encarou uma das últimas fotos. Os membros da ordem da Fênix. Dorcas o encarou com os olhos tristes, enquanto as outras pessoas da foto pareciam conversar. Severo suspirou. Jamais poderia se livrar dos seus fantasmas. Um, cinco, dez anos. Nunca poderia se esquecer.
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18 de maio de 1980
Severo observou a rua escura, enquanto ao fundo brilhavam as luzes de um parque de diversões trouxa. Sentado na grama, junto a um centenário salgueiro que deitava suas folhas num pequeno lago diante de si, o comensal esperava. Passos leves denunciaram que ele tinha companhia. O rapaz não se virou, nem mesmo quando o dono dos passos sentou-se ao seu lado.
'- Boa noite, Severo. - a voz doce de Dorcas cumprimentou.
'- O que quer agora, Meadowes?
'- Sabe, eu tenho certeza que, um dia, você vai conseguir dizer meu primeiro nome. - ela sorriu e ele se viu tentado a corresponder, mas permaneceu impassível - Ora, vamos, Severo, você não pode ser um bloco de gelo permanente!
'- Você me chamou aqui para discutir se eu devo ser mais frio ou mais polido? - ele perguntou seco.
Ela suspirou.
'- Não. Escute, eu conversei com Dumbledore. - ele rolou os olhos e ela respirou fundo - Sei que já tínhamos discutido isso antes e você não concordou, mas, pelo menos converse com ele!
'- E o que devo conversar com aquele diretor gagá? Talvez uma nova decoração para as masmorras do Lorde das Trevas... - ele retrucou sarcástico.
'- Você sabe do que estou falando, Severo. - ela levantou-se, triste - Eu acredito em você. E quero provar aos outros que eles também podem confiar.
'- O que faz você pensar que eu seja uma pessoa tão confiável? Não passa pela sua cabeça que eu possa fingir que me junto a vocês e depois traí-los para o Lorde? - ele perguntou, levantando-se também.
'- Você salvou minha vida. - ela respondeu num fio de voz - Só o que estou tentando fazer é pagar essa dívida, salvando a sua também. Se seu lorde for derrotado, você será mandado para Azkaban.
'- Eu nunca cobrei essa dívida. - ele respondeu sério - E nem vou cobrar. Então, se é só isso, acho que devemos nos despedir aqui.
Ela abaixou a cabeça, mordendo os lábios enquanto ele a observava em silêncio. Quando Severo preparou-se para aparatar, no entanto, ela praticamente pendurou-se no pescoço dele, roubando um beijo. Quando se separaram, ela estava mais vermelha que o brasão da grifinória, casa à qual pertencera, e ele parecia perplexo demais para falar alguma coisa.
'- Eu não estou fazendo isso apenas para pagar uma dívida, Severo. - ela disse quando recobrou o fôlego - Esteja aqui amanhã na hora do almoço. O professor Dumbledore vai estar esperando.
Com essas palavras, ela desaparatou e ele voltou a ficar sozinho. Um vento frio soprou, trazendo os gritos alegres que vinham do parque. O salgueiro balançou-se levemente, criando pequenas ondas na água. Severo suspirou.
'- Até amanhã... - ele murmurou para o nada, antes de desaparecer também.
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O sol começava a se pôr ao longe e as primeiras estrelas já se faziam presentes quando ele deixou o castelo. Precisava ser rápido. Quanto antes conseguisse alguma prova que incriminasse Quirrel, melhor.
Severo entrou na Floresta Proibida quase correndo. Dumbledore pedira uma prova. Não queria condenar Quirrel sem ter certeza que o pequeno idiota estava com o Lorde das Trevas. Não podia condená-lo tendo por base apenas as estranhas sensações que o professor de DCAT provocava nele.
Como se fazer arder a Marca Negra fosse um indício muito pequeno... Às vezes ele se exasperava com a necessidade de ser justo do diretor de Hogwarts.
Finalmente chegou à clareira onde Quirrel já o esperava.
'- Não sei porque você quis se encontrar logo aqui, Severo.
O diretor sonserino sorriu maliciosamente, embora sentisse a pele queimar.
'- Ah, quis manter nosso encontro sigiloso. Afinal, os alunos não devem saber sobre a Pedra Filosofal. – ele abaixou a voz até transformá-la em um balbucio – Você já descobriu como passar por aquela fera do Hagrid?
O sorriso aumentou à medida que o rosto de Quirrel se tornava mais pálido. Será que o rapaz estava acreditando que ele queria a pedra?
'- M-m-mas, Severo, eu...
'- Você não quer que eu seja seu inimigo, Quirrel. – ele ameaçou, dando um passo a frente.
'- N-n-não sei o que você...
'- Você sabe perfeitamente o que quero dizer. – uma coruja piou alto e ele teve a impressão de ter ouvido algo suspeito. Mas logo toda a sua atenção voltou para Quirrel – E não adianta tentar me deter, não tenho medo das suas mágicas de araque. Estou esperando.
'- Mas eu n-n-não...
Muito bem. Vamos ter outra conversinha em breve, quando você tiver tido tempo de pensar nas coisas e decidir com quem está a sua lealdade.
Severo deu as costas para Quirrel, jogando a capa por cima da cabeça e saindo da clareira. Tinha que conseguir fazer o outro professor se trair. E o mais rápido possível, antes que fosse tarde demais.
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10 de setembro de 1980
Ele abriu a porta do escritório assim que sentiu o chamado de Dumbledore. A esposa do Potter virou-se lentamente para ele, fixando os olhos incrivelmente verdes sobre os seus. Um eco baixo soou em seus ouvidos. E ele se viu apontando uma varinha para um senhor de olhos iguais aos de Lílian Potter.
A temperatura aumentou consideravelmente enquanto Lílian se levantava, os olhos, antes calmos, brilhando assustadoramente. E, sem que ele pudesse entender como, sentiu o corpo sendo jogado para trás, batendo violentamente contra a parede.
'- Lílian, o quê... – Potter aproximou-se da esposa, tentando segurá-la.
'- Esse maldito matou meus pais! - ela disse entre dentes, tirando a varinha das vestes.
Os Longbottom, que também estavam na sala, observavam em silêncio, enquanto a ruiva se aproximava, a varinha apontada para o peito dele. Sentado no chão, Severo a observou firmemente.
'- Eu não nego essa acusação, Evans. - ele respondeu forçando-se a não demonstrar o ódio que sentia de si mesmo - Eu não apenas matei seus pais como também fui eu quem os indiquei para a morte.
Um soco certeiro fê-lo sentir gosto de sangue na boca. Potter segurou-o pelo colarinho, pronto para desfechar mais um soco quando Dumbledore o segurou, fazendo com que ele largasse o ex-sonserino.
'- Não é hora para isso. Snape pode ter errado no passado, mas agora...
'- Um espião da ordem... Faça-me o favor, professor! – o moreno praticamente cuspiu as palavras - Como pode acreditar nele depois dessa confissão?
'- É ele quem está nos traindo. - Lílian murmurou, toda a raiva transbordando pelo olhar.
Dumbledore meneou a cabeça.
'- Não, Lílian. Os ataques começaram antes de ele se juntar a nós. Além disso... Dorcas confiava nele. Snape salvou a vida dela nas masmorras de Voldemort!
'- E porque não poupou também a vida dos meus pais! - ela perguntou, quase sem conseguir conter as lágrimas.
'- Eu sinto muito. - ele respondeu, abaixando a cabeça - Me arrependo profundamente do que fiz.
'- SEU ARREPENDIMENTO NÃO VAI TRAZÊ-LOS DE VOLTA!
Tiago abraçou Lílian, que começou a chorar compulsivamente em seus braços. Ele permaneceu com a cabeça abaixada. Entendia parte da dor dela. Embora tivesse a Marca Negra, ele não era um assassino. E, provavelmente, fora isso que Dorcas vira nele.
Nós confiamos em você, Dumbledore. Se você quer acreditar no que o Ranhoso diz, ótimo. Mas, por favor, não nos faça voltar a ver a cara desse imbecil. – Potter resmungou, aproximando-se da lareira - Não era preciso ele dizer que Voldemort está atrás de nós porque sabemos disso há muito tempo. Até logo.
Os dois desapareceram através do fogo. Alice e Frank também se levantaram, despedindo-se silenciosamente do diretor. Finalmente, Dumbledore e Severo ficaram sozinhos. Dumbledore voltou para sua escrivaninha e ele levantou a cabeça.
'- Continua confiando em mim; mesmo depois dessa cena?
Dumbledore permaneceu em silêncio por alguns instantes.
'- Você teve uma coragem excepcional para admitir o que fez. Confio em você hoje, mais do que antes. Assim como Dorcas também confiou. Você tem a chance de expiar os seus erros. Não a desperdice.
Severo assentiu a caminhou para a porta. Antes que pudesse sair, ele lembrou-se do dia da morte de Dorcas, quando Dumbledore o convidara a integrar uma resistência.
‘- Eu me lembrei agora que você era um excelente aluno de poções. Em breve a professora Estricnina vai se aposentar. Se desejar se juntar a nós... O cargo poderá ser seu.’
Respirando fundo, ele se voltou para o velho senhor.
'- A propósito, diretor, eu aceito seu convite. Será uma honra ensinar em Hogwarts.
Ele viu Dumbledore sair e, em seguida, deixou o escritório.
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O trem afastava-se célere da estação. Finalmente, os vagões vermelhos sumiram em uma das muitas curvas da estrada e ele deixou as sombras sob as quais se escondera.
Ao final das contas, ele estivera certo. Quirrel estava com o Lorde. Pior que isso... O próprio Lorde das Trevas estivera ali, dividindo o corpo com o ex-professor.
Voldemort estava vivo. Era uma questão de tempo até que voltasse ao poder. E, quando o Lorde voltasse, já teria conhecimento de sua traição. Severo suspirou. Ele certamente seria um dos primeiros a cair quando a guerra recomeçasse.
'- Você tinha razão, professor Snape. – a voz suave de Dumbledore soou logo atrás dele.
Severo permaneceu em silêncio, os olhos perdidos no nada. Por dois meses, estaria livre de seus fantasmas.
'- Veio ver se ele está partindo em segurança? – o diretor perguntou, sorrindo.
Mentalmente, ele assentiu. Por mais que tivesse odiado Tiago Potter no passado, ele devia ao maroto a vida. Além disso, era bom ter um olho no garoto para o caso dele ter puxado o pai.
E havia ainda a culpa. Jamais poderia esquecer o dia em que enfrentara Lílian Potter e confessara que ele fora um dos assassinos dos Evans.
'- Ela certamente está orgulhosa das suas escolhas. – Dumbledore disse antes de deixar a plataforma de onde os alunos de Hogwarts embarcavam e desembarcavam todos os anos.
Quase sem perceber, Severo permitiu que um tênue sorriso aparecesse em seus lábios.
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Eu tenho muito o que agradecer a vocês... Mas hoje realmente não vai dar. Só passei bem rapidinho para postar o capítulo novo.
Beijos,
Silverghost.
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