Epílogo
Epílogo
Os raios do sol que já se punha penetravam pela janela, formando adoráveis reflexos claros sobre o tampo de vidro da mesa. Haviam grades na janela mais alta daquela casa, e as sombras das barras de ferro também se projetavam pela mesa, onde um amontoado de papel a ocupava, juntamente com alguns estranhos instrumentos de utilidade desconhecida. À frente da mesa, um homem estranho curvava-se sobre os pergaminhos enrolados, e rabiscava alguma coisa com uma pena. Seria um cenário tranqüilo e até mesmo bucólico (era possível ouvir passarinhos palrando sobre as copas das poucas árvores restantes naquele final de outono), se o homem sentado à mesa não fosse o terrível Lorde das Trevas.
Irritado com a claridade aparentemente excessiva que iluminava seu escritório, Lord Voldemort levantou-se e fechou as cortinas com um puxão violento, cerrando totalmente as janelas à entrada da luz. Minutos depois, o sol acabava de se pôr, e as trevas noturnas caíram definitivamente sobre a Mansão Riddle. Ainda assim, ele manteve as cortinas fechadas.
Enrolou os pergaminhos inscritos numa variedade de línguas e símbolos estranhos e de aspecto maligno, guardou-os num baú sob um alçapão, e acendeu a lareira com uma chama da ponta de sua varinha.
Quando, de repente, ouviu-se um leve bater à porta. Bufando; a irritação crescente; ele abriu a porta, com ganas de matar quem quer que fosse o atrevido a bater-lhe à porta quando estava tão claramente ocupado com algo importante. Bem, na verdade não era tão importante assim – apenas esboços muito vagos de planos para o futuro, agora que Potter e Dumbledore estavam mortos e ele tinha literalmente ganho a guerra. Havia pagado um preço muito caro – sua própria alma, na verdade. Saía mortal, sim, mas saía vencedor.
“Boa tarde, senhor” – murmurou a voz frágil de Narcisa Malfoy.
“Sim, Malfoy?” – ele inquiriu com a voz carregada de desprezo hostil.
“Vim apenas... Apenas comunicar-lhe que o enterro de Bella foi realizado hoje de manhã. Ela foi enterrada no jazigo da família Black, como era seu desejo...”
“Sim, sim, Malfoy. Grato pelo aviso” – respondeu Voldemort com impaciência, e afastou-se da porta, numa deixa para Narcisa se retirar.
A mulher não pareceu entender o recado, ou ignorou-o solenemente, porque entrou na sala.
Voldemort, já sentindo a tarde perdida com aquela visita impertinente, resignou-se a sentar-se em frente à lareira e, fitando o tapete onde outrora Nagini costumava enrolar-se, perguntou:
“Foi só para me comunicar isso que você veio aqui?”
“Não, senhor, eu...” – ela murmurou na mesma vozinha frágil – “Bem, quando Bella foi enterrada, junto ao seu corpo foi encontrada essa carta”
E, de fato, na mão estendida de Narcisa havia um rolo de pergaminho endereçado “Ao Lorde das Trevas...”, numa caligrafia tremida, mas sem dúvida pertencente a Bellatrix. O selo de cera ainda estava intacto, o que, pelo menos a princípio, indicava que ela não havia sido lida por terceiros.
“Sim, sim, muito bem, Narcisa. Você pode ir”.
Narcisa enterrou o belo rosto nas mãos para abafar os soluços que a lembrança da irmã lhe traziam, e finalmente saiu do cômodo, deixando Voldemort a sós com seus pensamentos.
Narcisa Malfoy ultimamente andava bastante deprimida, desde que o corpo de Draco havia sido achado jogado numa sarjeta ao sul da Londres trouxa. Morto a tiros; sequer uma morte bruxa lhe fora dada. O fato de ter Lúcio fora da prisão não lhe servia de muito consolo. Diziam as más línguas que Snape agora habitava a mesma cela que o antigo colega um dia ocupara. Com a diferença de que agora não lhe sobrava mais que um corpo, uma casca vazia sem alma. Alma esta sugada por um de seus leais dementadores. Snape recebera o mesmíssimo tratamento que todos os prisioneiros de guerra e traidores. Porque haviam, sim, prisioneiros de guerra: metade da família Weasley, por exemplo; incluindo a bela namoradinha de Potter e seu melhor amigo.
Oh, sim, ainda havia resistência. A Ordem da Fênix não havia se dissolvido. Mas, para ser sincero, não passava de um grupo de indivíduos pateticamente fracos. Rebeldes, poderia-se dizer. Sob a liderança de Moody, alguns poucos bruxos sobreviventes e os antigos aurores do Ministério ainda tentavam resistir. Mas, sinceramente, aquilo Voldemort até apreciava. Se não fosse por aquele pequeno grupo de rebeldes subversivos, sua vida seria um tédio completo...
Mas não àquela noite. Era Halloween, e ele deixaria que seus Comensais mais antigos curtissem um pouco das regalias que podia lhes oferecer.
Estúpidos...
Tão cegos, tão obtusos, que mal se davam conta que ao invés do eterno e supremo poder que lhes prometera, eles se contentavam com meras bebedeiras e orgias... Bem, muito bem. Ao menos lhe saía mais barato.
No entanto, não podia se desprender da sensação de que se ela estivesse lá, sua noite seria bem mais divertida.. E Bella, ao contrário daqueles idiotas bêbados que gemiam dois andares abaixo, saberia reclamar sua devida recompensa...
Não, não
Bellatrix já não existia. Estava morta.
Passou a mão numa garrafa de líquido verde e aspecto venenoso e deitou-o num copo, levando-o à boca em seguida. Sorvendo o gosto amargo e alcoólico do absinto, ele deixou-se vagar por pensamentos indistintos até que, quando já quase adormecia, ouviu um novo bater à porta.
Praguejando ainda mais, ele levantou-se e abriu a porta. Era Rabicho.
“Err... Desculpe interrompe-lo, senhor, mas a festa acaba de começar, e... bem... O pessoal... O pessoal...”
“Eu já estou descendo” – respondeu Voldemort num irritada impaciência.
Trocou as feiosas vestes cinzentas que usava por elegantes vestes verde-musgo, e sem sequer lançar um olhar ao espelho na parede, desceu, de varinha em punho, disposto a estripar algum trouxa que seus Comensais tivessem trazido para a festa.
“Lúcio, meu ardiloso amigo” – falou Voldemort suavemente, pensando em quanta ironia carregavam aquelas palavras – “Como vai o Ministério?”
“Oh, milorde!” – exclamou Lúcio, assustado. Ainda na havia se recuperado inteiramente do castigo recebido ao sair de Azkaban – “Bem, vamos indo bem... Já não há mais quase sangues-ruins circulando em nosso mundo, milorde... Ontem mesmo, quase pegamos aquela garotinha Granger, amiga de Potter... Mas a vadia insiste em nos escapar cada vez que chegamos perto...”
“Será que a tarefa que lhe deleguei está acima de suas capacidades, Lúcio?”
Ah, sim, porque Lúcio Malfoy agora era Ministro da Magia. Alguns de seus comensais estranharam o fato de Lúcio ser indicado para o cargo, mas a verdade é que o Lorde das Trevas nunca havia dado bom político, e preferia ficar controlando sua marionete pelos bastidores. Tudo funcionava exatamente como queria e não precisava se expor.
“”Não, não, senhor” – apressou-se Lúcio a negar, e abriu um de seus sorrisos mais falsos e brilhantes.
Ligeiramente enojado com o cinismo descarado de Malfoy, Voldemort resolveu que não perderia muita coisa se simplesmente subisse ao seu quarto e lá permanecesse o resto da noite, como era de praxe.
Travers estuprava uma trouxa. Voldemort destituiu-a de seu servo e, com um golpe certeiro da varinha, dividiu-a ao meio; as entranhas vazando para os lados e encharcando o chão e o tapete de sangue escuro. Sob urras empolgadas dos Comensais, ele sorriu, feliz pela primeira vez em bastante tempo. Oh, sim, a vitória era doce... Doce e ácida como o sangue que agora respingava todo o seu rosto.
Foi ao banheiro; precisava limpar aquele sangue do corpo. Enveredou pelos corredores da mansão até achar-se num. Ainda era possível ouvir as urras de seus servos... Bebendo, os imbecis.
Ao voltar para seu escritório, prevendo uma incômoda dor de cabeça despontando pelas têmporas, sentiu o peso quase insignificante da carta em seu bolso, mas cuja presença o atormentara desde que Narcisa lhe a entregara.
Servindo-se de uma nova dose de bebida, sentou tranqüilamente ao pé da lareira, perguntando-se o que haveria de ter de tão importante naquela carta, afinal. Então rompeu o lacre de cera, enfeitiçado para que somente ele o abrisse, e desenrolou o pergaminho:
Ao Lorde das Trevas...
Escrevo essa carta em meu leito de morte, ciente do destino que me aguarda. Ao partir em busca de nossa filha – que eu tanto relutei para crer morta -, e retornar de mãos vazias; ou, pior, sem saber porque ainda vivo, se minha morte significaria o retorno de tua alma ao devido dono e a morte de teu maior inimigo, aquele destinado a derrota-lo, sinto-me mais do que nunca como um estorvo a pesar inutilmente sobre tuas costas.
Não sei... Não sei de onde surgiu essa coisa estranha que se insinua entre nós; não sei ao menos que tipo de sentimento há entre nós. Amor? Não creio, senhor; não somos, ambos, do tipo que ama. Porque se amor for aquele sentimento piegas que prega Dumbledore e seus fiéis asseclas, não posso conceber nome mais indigno...
Ou quem sabe, senhor, o que sinto seja tão intenso que ultrapasse as definições bobas que as pessoas tentam dar aos sentimento.
Já há muito desisti de decifrá-lo... Mas o senhor insiste em descrever cada pedacinho de mim como se eu não passasse do mais simples quebra-cabeças.
E agora, sobre esse leito em que nos deitamos tantas vezes, eu penso nos últimos acontecimentos, e em como o Destino é a mais irônica das criaturas. Imagino a expressão no rosto de Snape e daqueles a quem ele contou nossa história, e sinto náuseas... Náuseas porque eles fazem caras e bocas de espanto. Espanto porque nos confundem com dois meros amantes. Não somos, senhor, dois meros amantes. Se eles soubessem a real dimensão do que sinto, não se surpreenderiam, mas fugiriam com medo, como sempre fazem.
Assinei minha sentença, senhor, mas assinei-a contente e certa de que faço o que deve ser feito. Às sete horas de hoje o feitiço que me prende a Potter perderá o efeito. Antes disso, porém, eu estarei morta, e levarei junto vosso maior inimigo para o tumulo. Mas deixe-me, por favor, senhor, acabar com minha própria vida, para que eu possa mostrar que ainda sou uma serva leal, sem medo de se sacrificar por seu senhor...
Quando encontrares isso, já estarei morta, mas não sem antes chorar rios lágrimas de sangue. Choro não por minha vida mesquinha, que já é vazia de utilidade e significado. Mas choro por saber que, imortal como és, jamais hei de encontra-lo do outro lado do Véu, embora minha alma vá passar a eternidade reclamando tua presença...
Daquela que muito lhe estima,
Sua Bellatrix.
“Incêndio!” – murmurou Voldemort, e o frágil pergaminho em suas mãos irrompeu em chamas.
Bella já não existia...
E assim teria de ser, por toda a eternidade e para sempre...
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