O Inquisidor

Benedita e Augusta Bulcão andavam lado a lado na procissão que contornava o chafariz e entrava na praça. O sol brilhava forte no céu, marcando o meio do dia e a praça estava lotada. Homens, mulheres, velhos e crianças, famílias inteiras observavam a chegada da procissão com profundo interesse e expectativa. No centro da enorme praça retangular duas enormes pilhas de madeira tinham sido cuidadosamente montadas e perto de uma bela fachada ornamentada à esquerda, dois postes apontavam para o céu claro de junho. Ao fundo, dois palanques foram montados. O mais afastado era menor e parecia confortável: haviam feito uma cobertura com tecidos brocados e franjas que escondiam uma dezena de pessoas vestidas com luxo e adornadas com as joias, sentadas confortavelmente em cadeiras estofadas. As duas irmãs se entreolharam assombradas. Era a primeira vez que viam a família real. O outro palanque, mais próximo e para onde se dirigiam, também era coberto, mas de forma mais modesta. Os homens vestindo hábitos sacerdotais pretos e vermelhos, emoldurados por cruzes, flanqueados por escrivães e soldados, deixavam claro que aquele palanque, ao contrário do outro, tinha sido montado para funções de serviço, não de observação.



Assim que a procissão chegou na frente dos dois palanques seus membros foram rapidamente organizados. Os religiosos carregando cruzes e incenso, que viam na frente, somaram ao coro do palanque maior ou se dispersaram entre os oficiais posicionados ao longo da praça, guardando os postes e as pilhas de madeira. O grosso da procissão, formado por uma centena de pessoas que usavam um sambenito sobre as roupas comuns, dois pedaços retangulares de pano, que cobriam as costas e a frente do corpo até a altura dos joelhos, foram organizados em uma fila sinuosa. A maioria das pessoas usavam sambenitos de cores claras. Outras poucas, não mais que dez, vestiam sambenitos de cor mais escura e era esse o caso das irmãs Bulcão.



A primeira pessoa da fila era um homem que usava um sambenito claro. Ele foi instruído a subir em um pequeno palco, voltado para os eclesiásticos e oficiais. O bispo que ocupava a cadeira mais alta do palanque, e que vestia um hábito branco por baixo de uma luxuosa capa preta, e uma mitra na cabeça, o olhou de cima a baixo, ligeiramente desinteressado. Um dos padres perguntou para o homem se ele se arrependia de seus crimes. O homem, visivelmente nervoso, gaguejou que sim e partiu para um longo e choroso discurso de arrependimento. O sofrimento do homem não pareceu ter nenhum efeito sobre os homens sobre o palanque, mas arrancou algum frenesi da população que tinha se aglomerado na praça para assistir o espetáculo. Eventualmente a pena de degredo foi decretada e o homem foi entregue aos oficiais da coroa e levado por soldados para um prédio atrás do palanque.



A próxima pessoa era uma mulher que não teve força para fazer mais do que chorar quando o padre lhe perguntou se ela se arrependia de seus crimes. Ela também foi condenada ao degredo e levada por soldados. A terceira pessoa da fila também era uma mulher, mas parecia bem mais confiante que sua predecessora. Diante do questionamento do padre ela entregou um convincente discurso de arrependimento por seus erros e uma promessa fervorosa de seguir os preceitos da fé dali em diante. Seu discurso arrancou palmas da população que estava perto o suficiente para ouvir e ela foi sentenciada a cumprir trabalhos forçados. Também foi levada pelos soldados.



O evento seguiu assim pelos próximos minutos. Uma por uma as pessoas da fila subiam ao palco e discursavam o arrependimento por seus crimes e seu compromisso de seguir a fé e os dogmas da Igreja, recebiam suas punições e eram levadas da praça. A primeira mudança nesse padrão veio com a oitava pessoa da fila: uma mulher jovem que fez um discurso muito pouco convincente e foi sentenciada ao açoitamento. Ao contrário dos outros ela foi levada até um dos postes, onde os dez açoites foram aplicados ao mesmo tempo em que a próxima pessoa subia no palco e se declarava arrependida de seus crimes. Os espectadores pareciam igualmente fascinados e aterrorizados pelo açoitamento. Alguns se acotovelaram até aquele canto da praça para ter uma visão mais privilegiada, enquanto outros decidiram sair de perto dos gritos para ouvir melhor os discursos.



A próxima grande mudança no padrão das punições e no comportamento geral dos espectadores, sacerdotes e oficiais veio quando a primeira pessoa com o sambenito escuro subiu ao palco. Todos os espectadores ficaram mais atentos. Aqueles privilegiados com assentos se arrastaram para a borda de suas cadeiras. A multidão de espectadores ficou estranhamente quieta. A expectativa pairava no ar. A voz do padre pareceu bem mais alta no quase silencio da praça:



- Você é Afonso Nunes?



-Sim.



Afonso Nunes não parecia nem um pouco intimidado pela profusão de oficiais, eclesiásticos e soldados à sua frente, nem mesmo pela nobreza ao seu lado e muito menos pela multidão às suas costas.



-Você é acusado de heresia, blasfêmia e de prática de feitiçaria. Sua sentença é a morte. Afonso, você se arrepende de seus pecados?



-Não.



A multidão ficou inquieta e as duas irmãs se entreolharam. O que Afonso Nunes estava fazendo? Não era esse o protocolo. O padre abriu a boca, mas um dos eclesiásticos de patente mais alta, sentado ao lado do bispo, se levantou. Ele usava um hábito simples, preto, tinha um crucifixo grande no peito e a cabeça raspada no topo, deixando somente uma coroa de cabelo nas laterais do crânio.



-Então confessa os crimes que cometeu contra Deus e a Coroa?



Afonso Nunes encarou o sacerdote e sua postura ficou ainda mais combativa do que antes.



-Não há crime contra Deus ou a Coroa em minhas atitudes, Reverendíssimo. Sirvo à coroa como bom súdito e temo a Deus como bom cristão.



O sacerdote desceu até o nível mais baixo do palanque, ficando frente a frente com o acusado. Algumas pessoas riam com escárnio e até mesmo xingaram o acusado.   



-Suas palavras não condizem com suas ações. Diz que é temente a Deus, mas vendeu a alma ao Diabo; diz que é bom súdito, mas não hesita em atacar soldados da Coroa.



-Eu não ataquei soldados da Coroa, ataquei mercenários que tentavam roubar a mim e à minha família. E não vendi minha alma ao diabo! A magia é parte dos desígnios de Deus, é uma dádiva que o Senhor concedeu ao homem para ser usada em Seu serviço! Você deveria saber disso mais do que ninguém, Tomás!



Augusta e Benedita prenderam a respiração, assim como, parecia, toda a praça. De onde estavam elas não podiam ver a expressão dos dois homens, mas viram o sacerdote virar-se de costas e botar a mão no ombro do padre, que terminou a leitura da sentença.



-Que assim seja. Afonso Nunes, pelos crimes de heresia, blasfêmia e feitiçaria, será sentenciado à morte pela fogueira.



As duas irmãs mantiveram os olhos no sacerdote de cabeça raspada. Mal tinha tomado assento novamente e o bispo já se abaixava de lado para conversar com ele. O que quer que ele tenha dito ao clérigo foi convincente, pois o bispo botou a mão no ombro do subordinado e tudo parecia bem. Afonso Nunes foi arrastado até uma das pilhas de madeira e teve as mãos e braços amarrados, antes de ser atirado ao chão. As irmãs se entreolharam, sabendo que teriam um tratamento muito semelhante em questão de minutos e, de fato, quando as duas foram levadas ao palco, uma depois da outra, seus apelos de arrependimento e seus juramentos de seguir a doutrina da Igreja e da Fé não mudaram sua sentença de morte por crime de feitiçaria e heresia. Elas também foram amarradas e jogadas aos pés das pilhas de madeira, junto a Afonso Nunes e todas as outras pobres almas que usavam o sambenito escuro.



A cerimônia durou a tarde toda. O sol já começava a descer quando a última pessoa da fila foi condenada a prestar trabalhos forçados, pouco antes do último açoite ser desferido contra o lombo de um velho que não parecia capaz de se sustentar nas próprias pernas, que dirá a força de um chicote. A opinião geral foi a de que o carrasco tinha sido propositadamente leniente quando o homem conseguiu sair andando, embora apoiado pelos dois filhos.



Quando o bispo e os outros sacerdotes desceram do palanque e quando os soldados obrigaram as dez pessoas amarradas ao chão se levantarem a expectativa da multidão alcançou seu ápice. Aquele era, na verdade, o momento pelo qual todos esperavam: o momento em que a ira divina cairia sobre os hereges, quando a justiça dos homens eliminaria os lacaios do Diabo na terra. Os gritos e ofensas dirigidos aos dez infelizes eram ensurdecedores, mas o bispo calou a multidão com o levantar de uma mão.



Benedita e Augusta não se preocuparam muito em ouvir o que o bispo discursava: qualquer coisa sobre salvar suas almas através da purificação do fogo; qualquer coisa sobre eliminar o mal com que o diabo tinha infectado seus corpos. As duas estavam mais preocupadas em como iriam se livrar daquele tormento.



-Dita, ainda está com você?



-Está Augusta. Embaixo da minha saia, não se preocupe.



-E se eles... – Augusta abaixou a cabeça enquanto o bispo passava por elas “...suas almas serão expurgadas de todo o mal...” – acharem...



-Não vão achar! Agora cala a boca!



Um movimento fez com que os acusados olhassem para trás. Grandes toras de madeira estavam sendo espetadas com dificuldade no meio das pilhas. Quando as duas irmãs se voltaram para o bispo, foi com sobressalto que notaram o sacerdote Tomás bem a frente delas, encarando-as com interesse.



-Augusta e Benedita Bulcão... – o homem balançou a cabeça para os lados, com pesar. – É uma pena, duas almas tão jovens... 



Tomás ergueu a mão direita para abençoar as duas. Benedita sentiu algo se mover e não pode fazer nada a não ser acompanhar com um olhar chocado a varinha escondida sob o vestido voar para a mão livre do sacerdote. A compreensão veio com a força de um soco no estômago.



-Não... Você... Você é...



A voz da mulher sumiu e ela só pode abrir e fechar a boca como um peixe. Por dentro, ela gritava de horror. Augusta, que não tinha visto o discreto movimento do sacerdote, demorou para perceber e não entendeu o olhar desesperado da irmã, nem as suas lágrimas, ou seu silêncio repentino.



-Dita, Dita, o que está acontecendo?



A mulher não parecia ouvir a irmã mais nova, no entanto. Olhava para todos os lados em pânico, a compreensão atingindo-a com força. O puro desespero de Benedita, geralmente tão calma, afetou Augusta, que, sem entender o que acontecia esticou o pescoço para tentar ver o pai no meio da multidão. O sacerdote, que não tinha se movido ainda, pois observava atentamente a reação que causara na acusada, percebeu o movimento da Bulcão mais nova e apontou para um lugar na multidão.



-Diogo está logo ali. – em seguida acariciou a bochecha alva da adolescente e forçou o rosto para que os olhos muito escuros caíssem nos seus castanho-esverdeados – Mas ele não vai poder te ajudar, criança. Essas duas ficam separadas!



Logo cada uma das irmãs foi empurrada para cima de uma pilha de madeira, junto com os outros acusados. Todos foram amarrados fortemente aos postes pelas mãos e pés. Augusta sabia que tinha alguma coisa muito, muito errada. Claro, ser acusada de feitiçaria e presa pela Santa Inquisição era muito ruim, mas ela tinha confiança de que sairiam ilesas da fogueira, como já tinha acontecido com pelo menos meia dúzia de outros em sua comunidade. Dita tinha garantido que a varinha estava sob suas roupas, e então era só uma questão de usar o encantamento certo e pronto, estavam todos salvos! Então por que Benedita estava chorando tanto? O que o padre tinha dito sobre seu pai? Espera... Como ele sabia quem era seu pai?



Afonso Nunes estava amarrado ao seu lado. Ele também era feiticeiro. Ele com certeza ia livrá-los dessa, certo?



-Senhor Afonso... Você tem uma varinha consigo? Pode nos tirar daqui?



O homem, que até ali tinha mantido a pose altiva e o olhar firme, finalmente hesitou e deixou a máscara cair, revelando uma profunda tristeza quando encarou os olhos escuros da adolescente. Balançou a cabeça.



-Eu sinto muito, criança. Não há nada que eu ou ninguém possa fazer.



Augusta piscou algumas vezes, tentando fazer sentido do que acontecia.



-Não tem problema, meu pai está aqui, ele vai fazer alguma coisa...



Sentiu o coração afundar no peito quando sentiu os dedos quentes e suados do homem alcançarem seus dedos, numa tentativa estranha se darem as mãos. Ele ainda a encarava com tristeza, mas agora com pena também. E uma lágrima desceu de seus olhos.



-Seu pai não pode fazer nada, criança. Tomás ergueu uma proteção em volta das piras. Nenhum feitiço vindo de fora pode nos alcançar aqui.



A compreensão finalmente baixou sobre a menina. Ela olhou para frente, sentindo o desespero subir por sua garganta. Na fogueira à frente a fumaça já estava alta e ela não podia ver Benedita direito. Sentiu o calor e a fumaça subirem sob seus pés. Olhou para a multidão onde seus pais, tios e tias, se desesperavam e eram contidos por soldados. O padre Tomás ia na direção deles. Dali ela conseguiu ver, finalmente, a varinha que o sacerdote carregava discretamente na mão esquerda. Logo a fumaça cobriu sua visão e a única coisa que ela podia ver era o rosto triste e aflito de Afonso Nunes, que apertou seus dedos com mais força. Ela enterrou o rosto no ombro do homem e fez a única coisa que podia. Gritar.  


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