CAPITULO DEZESSETE



DEZESSETE


Na manhã seguinte, acordo com o barulho de Cho fuçando no meu armário de remédios. Enquanto ela faz barulhos pela casa, tento reconstruir o sonho desta noite, uma série de ações incoerentes, representadas pelos personagens de sempre: meus pais, Cho, Harry, Draco e até mesmo Les. A trama era confusa, mas me lembro de ter fugido e me escondido bastante.

Quase beijei Harry uma dúzia de vezes, mas sem jamais concretizar o beijo. Fracasso até nos meus sonhos. Cho surge do banheiro feliz da vida.

- Não estou nem um pouquinho de ressaca - anuncia. – Tomei um antiácido para prevenir. O seu acabou. Espero que você não precise.

- Estou bem - respondo.

- Nada mau para o dia seguinte de uma despedida de solteira! O que você vai fazer hoje? Será que a gente pode passar o dia juntas? Sem fazer nada, como nos velhos tempos?

- Tudo bem - respondo meio relutante.

- Maravilha! - Ela vai até a cozinha e começa a mexer nas coisas.

- Você tem cereal?

- Não, o meu acabou. Você quer ir até o EJ's?

Ela diz que não, quer comer cereais açucarados bem aqui, no meu apartamento, como nos velhos tempos, nada dos brunchs modernos de Nova York. Ela abre minha geladeira pra ver o que tem de comer.

- Cara, você está sem nada. Vou dar uma saidinha para buscar um café e umas coisas básicas.

- Será que a gente deveria tomar café? - pergunto.

- Por que não?

- Porque não seríamos autênticas. Nós não bebíamos café na infância.

Ela vacila, sem captar o meu sarcasmo.

- Vamos abrir uma exceção para o café.

- Você quer que eu vá junto? - ofereço.

- Não, não precisa. Não demoro.

Logo que ela sai, verifico minha secretária eletrônica. Harry me deixou duas mensagens: uma ontem à noite, outra hoje de manhã. Na primeira ele diz que sente saudade. Na segunda pergunta se pode vir aqui hoje à noite. Telefono de volta e fico surpresa em perceber o quanto estou aliviada pela ligação ter caído na secretária eletrônica.

Então sento no sofá pensando na noite passada, na minha amizade com Cho. Será que vou conseguir viver em paz roubando o noivo dela?Como seria a vida sem ela? Ainda estou pensativa quando ela retoma, cheia de sacolas. Seguro apenas os copos de café enquanto de forma dramática ela deixa as sacolas caírem no chão e me mostra as marcas vermelhas nos seus braços. Lamento manhosa e solidária, e ela sorri novamente.

- Comprei coisas ótimas! Fanta laranja! Suco de maçã-verde! E sorvete com pedacinhos de chocolate!

- Sorvete para o café da manhã?

- Não. Para mais tarde.

- Você não vai engordar para o casamento?

Ela desdenha.

- Deixa para lá. Nem ligo.

- Por que não? - pergunto, certa de que ela vai comer agora e mais tarde me culpar por permitir aquilo.

- Porque não! Não seja estraga-prazeres! ... Agora vamos comer! - Ela se ocupa na cozinha procurando potes, colheres e guardanapos. Depois traz tudo para a mesa. Ela está fazendo o gênero alto-astral, cheia de energia.

- Você prefere comer aqui? - digo, apontando para a pequena mesa redonda.

- Não. Quero que seja igual quando a gente dormia na minha casa. A gente sempre comia em frente à televisão. Lembra? - Ela pega o controle remoto, passa pelos canais até encontrar a MTV. Depois serve o cereal em potes, certificando-se cuidadosamente de que temos a mesma quantidade.

Não estou a fim de comer cereal, mas obviamente não tenho escolha. Apesar de achar comovente lembrarmos da nossa infância, também estou irritada com o jeito mandão dela. Pisando em você, disse Rony. Talvez essa seja efetivamente uma descrição precisa. E aqui estou eu, com boa vontade, deixando que ela passe o rolo compressor sobre mim.

- Me diz quando estiver bom - diz ela, despejando leite integral no meu pote. Detesto leite integral.

- Está bom - digo quase instantaneamente.

Ela pára e olha para mim.

- Sério? Não deu nem para molhar o cereal.

- Eu sei - digo, acalmando-a -, mas é assim que eu gosto, desde os tempos da escola.

- Tem razão - diz ela, servindo-se de leite. Ela enche seu pote até a borda.

Ficamos ouvindo música enquanto Cho faz um barulho danado comendo o cereal. Quando já está no finalzinho, ergue o pote até os lábios, bebendo o leite em goles grandes.

- Estou fazendo muito barulho? - pergunta, olhando para mim.

Nego.

- Não, tudo bem.

- Harry sempre me chama de A Barulhenta.

Sinto uma pontada no estômago sempre que vislumbro um detalhe íntimo deles, coisa que prefiro fingir que não existe. Depois percebo, com uma pontada ainda mais aguda, que Harry não me deu nenhum apelido. Talvez eu seja sem graça Demais para merecer um. Cho é o contrário. Não é de se estranhar que seja tão difícil abandoná-la. Ela é o tipo da mulher que sufoca, mas prende a atenção. Mesmo quando é irritante, ela é envolvente, cativante.

Jennifer Lopez aparece na tela em toda sua voluptuosidade. Olhamos melancólicas enquanto ela rodopia numa paisagem rural.

- Será que a bunda dela é tão maravilhosa assim? - pergunta Cho.

- Receio que sim - digo, na verdade sentindo prazer com o comentário.

Ela enxerga rivais até mesmo entre as celebridades, enquanto eu nem ligo para Jennifer Lopez e sua bunda fantástica.

Cho estala a língua.

- Você não acha que ela é meio gorda? - pergunta.

- Não, ela é ótima - digo, sabendo que a bunda de Cho equivale à metade da bunda de Jennifer.

- Bem, eu acho...

Dou de ombros.

- Harry gosta dela. Ele acha que ela é muito atraente.

Nova informação sobre o Harry. Blein! Blein! Blein! O que isso pode significar? Eu sou mais cheinha que Cho, mais morena. Não, nada a ver, bobagem minha. A maioria dos caras gosta da Jennifer, não importa que caras. É como Brad Pitt para nós mulheres. Você pode não gostar de homem louro com traços finos, mas, puxa vida, é o Brad. Ninguém recusa o Brad Pitt.

- Não se preocupe, ela não deve ser assim tão bonita na vida real. - Cho diz, partindo do princípio de que todas as mulheres são como ela e precisam ser consoladas sempre que encontram alguém mais bonita.

-Ahã - digo.

- Entenda, os maquiadores são capazes de fazer verdadeiros milagres - diz toda metida a sabichona, como se tivesse trabalhado no show business durante anos. Ela puxa o cobertor no encosto do sofá e se enrola nele. - Gosto daqui.

Harry também.

- Você está com frio? - pergunto.

- Não, só quero ficar bem aconchegada e confortável.

Ficamos assistindo a clipes até eu quase esquecer Harry. Tanto quanto possível para uma pessoa apaixonada. Então, do nada, durante um clipe da Janet Jackson, Cho faz uma pergunta inimaginável:

- Você acha que devo me casar com Harry?

Fico paralisada.

- Por que você está me perguntando isso?

-Não sei.

- Deve haver uma razão - digo, tentando manter a calma.

-Você acha que eu devia estar com alguém mais tranqüilo? Como eu?

- Harry é tranqüilo.

- Não, não é. Ele é totalmente estressado.

- Você acha? - pergunto. Talvez seja. Só que eu simplesmente não o enxergo assim.

- Totalmente.

Tiro o som da TV e me disponho a ouvir: Vá em frente, estou pronta para ser uma ouvinte maravilhosa. Lembro no primário quando a gente colocava o "capacete de ouvir” apertando o fecho imaginário sob o queixo como os meninos sempre faziam. Respiro fundo, faço uma pausa e aí digo:

- Fico preocupada com essa pergunta. O que está acontecendo com você? - Posso sentir meu coração acelerado e ansioso pela resposta.

- Não sei... Às vezes nosso relacionamento parece um pouco desgastado. Intediante. Isso é ruim? - ela olha para mim com cara de vítima.

Esta é a minha chance. Tenho uma oportunidade. Penso bem nas palavras que posso dizer, como seria fácil manipulá-la. Mas inexplicavelmente não consigo. Já estou cometendo um erro absurdo, não posso ser desonesta também, é demais. Há um conflito de interesses, como diz o jargão jurídico. Não posso aceitar a causa.

- Eu realmente não sei, Cho. Só você e Harry são capazes de decidir. Mas você realmente devia pensar com cuidado. Talvez vocês devessem adiar - digo.

- Adiar o casamento?

- Talvez.

Cho contrai o lábio e franze a testa. Tenho certeza de que ela está prestes a chorar, mas aí seus olhos se viram para a televisão. Ela se anima toda.

- Ah, eu adoro este clipe! Aumenta! Aumenta!

Tiro a TV do mudo e aumento o som ainda mais. Cho se sacode toda, dançando com a cabeça e o tronco, como um roqueiro, cantando uma música que nunca ouvi antes, de uma banda qualquer de garotos. Ela sabe toda a letra. Fico observando, espantada com a repentina transformação.

Quero que ela volte a falar de Harry, mas ela não faz isso. Arruinei minha chance de aconselhá-la a cancelar tudo, de dizer que Harry não é o cara certo. Por que não disse isso, por que não plantei a semente do descontentamento? Não joguei a meu favor. Por outro lado, não acho que Cho realmente queira um conselho. Queria consolo, alguém para dizer que tudo vai ficar bem, que ela deve se casar com Harry. Como eu não disse o que ela esperava ouvir, Cho preferiu um clipe para animá-la no meu lugar.

- Esta música arrebenta - diz Cho, jogando o cobertor para o lado. Ela levanta e sai dançando pelo apartamento. Então pára e vasculha minha estante, onde há pouco tempo coloquei a latinha de balas de canela e os dados.

- O que você está fazendo?

- Procurando o álbum do segundo grau. Onde está o seu?

- Na prateleira perto do chão.

- Ah, aqui está - ela levanta e percebe a latinha, tolamente colocada na altura do olho. - Posso pegar uma?

- Está vazia - digo, mas ela já abriu a tampa.

-. Por que você tem dados aqui?

- Hum, não sei - hesito.

- Você não sabe? - pergunta ela.

- Por nada, eu acho.

Ela me olha penalizada, como olharia para um esquizofrênico balbuciando no metrô.

- Você não sabe por que guarda dados numa latinha de balas? Está bem. Tudo bem, sua esquisita.

Ela tira os dados da latinha, sacudindo-os, como se estivesse prestes a lançá-los.

- Não faça isso - grito. - Guarde os dados de volta na lata.

Não é uma boa idéia dar ordens a Cho. Ela é uma criança, vai querer contestar, vai querer jogar só porque eu proibi.

Como era de se esperar:

- Para o que eles servem? Não entendi.

- Nada. Eles são apenas os meus dados da sorte.

- Dados da sorte? Desde quando você tem dados da sorte?

- Desde sempre.

- Bem, então por que você guarda seus dados numa latinha de balas? Você não gosta de balas de canela.

- Gosto sim.

Ela sacode os ombros.

-Ah.

Examino seu rosto. Ela não está suspeitando de nada, mas ainda segura meus dados. Planejo atravessar o apartamento correndo, agarrá-la e arrancá-los à força de suas mãos antes que ela possa jogá-los. Mas ela apenas olha para eles mais uma vez e os guarda na latinha. Não tenho certeza se os seis ficarão para cima. Verifico mais tarde. Desde que ele não sejam jogados mais uma vez, tudo bem para mim.

Ela pega novamente meu álbum escolar e traz para o sofá, folheando as páginas finais com esportes e atividades nos ginásios. Isso vai distraí-la por algumas horas. Ela encontrará milhares de assuntos para comentar: lembra disso, lembra daquilo? Cho nunca se cansa do nosso álbum, discutindo o passado e especulando o futuro desse ou daquele ausente no reencontro, ou porque agora é um fracassado, ou, ao contrário, tão espetacularmente bem -sucedido que não tem tempo de voltar para Indiana só para um fim de semana (a categoria na qual Cho me encaixa, porque, é claro, tive de trabalhar naquele fim de semana e perdi o encontro). Ou então ela brinca do que mais gosta: abre uma página do álbum, fecha os olhos, passeia o dedo pela página até eu dizer "pare!” então terei de transar com o cara indicado. Esses são os jogos típicos da Cho e, quando ganhamos nosso álbum há 12 anos, eles eram muito divertidos.

- Ah, meu Deus. Olha só o cabelo dela! Você já viu uma franja tão grande? - Cho leva um susto quando vê a foto de Lama Lindell. Ela está tão ridícula. A franja deve ter uns trinta centímetros!

Concordo e aguardo a próxima vítima: Justino Fitch-Fletchely. Só que agora ela decide defendê-lo, o contrário do que aconteceu no final do segundo grau.

- Nada mau. Ele até que é bonitinho, não é?

- É. Ele tem um sorriso legal. Mas lembra como ele cuspia na gente quando falava?

- É, bem lembrado.

Cho folheia o livro até finalmente se cansar dele, deixá-lo de lado e retomar o controle da TV. Ela encontra Harry e Sally, feitos um para o outro e dá um gritinho.

- Está começando agora! Oba!

Nós duas nos encostamos no sofá, colocamos os pés na mesinha e assistimos ao filme juntas mais uma vez, após uma infinidade de vezes. Cho sempre fala alto, recitando as partes que sabe de cor. Não peço para ela ficar quieta nem uma vez. Porque embora ela diga que isso irrita Harry, eu não me importo, nem quando ela erra levemente uma fala de Meg Ryan. Essa é a Cho. É isso o que ela faz. Às vezes, a mesmice de uma amiga é o que você mais gosta nela.

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