Parte II



Harry.

Amor, sonhos e seus melhores sentimentos, transformados em vida por alguma mágica ancestral, tão antiga e poderosa que se perdera durante o transcorrer dos milênios. Porque era um mistério e um milagre como aquele pequeno pedaço de gente havia sido produzido a partir dela. Nunca se cansava de admirar e se surpreender. Em cada pequeno gesto do filho reconhecia algo de seu, mas havia muito de estranho e próprio da personalidade dele.

E onde estava aquele sorriso travesso, agora? E os olhos, cópias perfeitas dos seus, brilhando de curiosidade e vida? E as reações dele, tão adoráveis e tão espontâneas, quando ela mostrava o gato, uma joaninha tentando andar sobre a vidraça, e escorregando, e tentando outra vez? Era do que ela mais sentia falta: compartilhar momentos com ele. Planejar momentos para serem compartilhados futuramente. E o que havia sido feito dos sonhos? E da risada gostosa quando ele montava na pequena vassoura? Sua risada cristalina. Onde estava aquela risada que era um colar de pequenas contas borbulhantes de cristal?

Tudo acabado.

Chorou mais uma vez. Um choro angustiado, composto por curtos gemidos que vinham do mais profundo de seu coração.


*

Maldito porco traidor.


*


Acontecesse o que acontecesse, Severus jamais esqueceria, até o fim de seus dias, a sensação dela morta sob seus dedos. E ele, insensível, avançando sobre ela como um abutre sobre um corpo em decomposição.

Ele a amava, por deus! Amava-a. Era um sentimento tão forte e claro, tão certo e indiscutível, como um fogo ardendo dentro dele. E tinha sido simplesmente tão sujo e obsceno se aproveitando dela. Indefesa. Inerte. Morta. Jamais havia sentido tanta repulsa por si mesmo. Aquele estupro, que por pouco, por sorte, não se consumara era, sem dúvida alguma, o mais baixo a que já havia chegado. Ele, que mentira e assassinara e traíra.

Conseguia ter uma consciência clara e definitiva quanto a isso.

Porque Lily era... deus. Ele sentia uma antiga e quase-esquecida vontade de chorar quando se lembrava. E o choro é que o fazia se recordar: estava vivo apenas quando ela estava presente em sua vida. Durante todos aqueles anos negros, nem se dera conta de que estava morto. Mas agora, vivia outra vez, apenas com a sombra dela. Estava acostumado à sua própria negrura mas... chegava-lhe a dar calafrios transformá-la em um cadáver que andava.

Não era Lily.

Jamais pensaria nela daquela forma novamente; o orgulho ferido por não ser desejado era forte demais. Mas havia ainda outro motivo, ainda não compreensível, ainda não completamente formado, uma espécie de... gratidão. Sim, seria sempre grato, ainda que fosse apenas sua forma adolescente e insegura que vivia dentro dele, grato por ela ter sido a única pessoa que uma vez já se importara realmente com ele, da única que ousara se aproximar, não por interesse, mas por sentimento verdadeiro. Aquela era a traição suprema. Porque Lily era a única a quem ele, no fim, seria leal - embora ainda não soubesse disso.


*


Lily, por outro lado, sequer tocara no assunto, ou demonstrara asco ou qualquer reação negativa que fosse à presença dele. Quando tornaram a se encontrar, no dia seguinte, ela agiu daquela mesma forma mecanicamente normal. Como se ela nem mesmo se lembrasse do ocorrido. Mas ele, era fato, não se esqueceria nunca: faria questão de preservar para sempre a sensação de devorar um cadáver. De haver profanado de forma sórdida o amor. De forma que, embora a levasse pela mão agora, era guiado apenas pelo sentimento, jamais pelo desejo. Era como se fosse o pequeno Sev mais uma vez, tão pressionado, tão próximo a perder para sempre sua Lily, que se via fazendo coisas que não faria habitualmente. De repente, descobriu toda uma ternura dentro de si, substituindo a imposição pura e simples, a cegueira, e a mentira, que usara com ela até então.

"Fecha os olhos", ele pediu, suavemente e carregado de culpa, quando chegaram à porta fechada do quarto dela.

Ela obedeceu.

Ela não reagira meia hora atrás, quando ele havia pedido que ela descesse para a sala por alguns momentos, embora parecesse vagamente curiosa. E aqueles pequenos momentos de curiosidade, e medo, e prazer, eram o que ainda lhe davam esperança: ainda era possível resgatar sua Lily de dentro daquela estátua. Ainda havia vida. E fazê-la reviver era tudo o que lhe importava. Se arriscara pisando em locais nos quais se, apenas imaginassem que ele frequentava, seriam o suficiente para torturá-lo com requintes de crueldade. Mas, por ela, jamais pensaria duas vezes em fazer o que quer que fosse. Trairia, inclusive, a si mesmo, sem questionar.

Seu coração acelerou-se, ansioso. Tinha certeza de que ela iria gostar, enfeitiçara alguns velhos artefatos trouxas, que recordava serem seus preferidos... Abriu a porta de uma vez só, em um gesto teatral. Puxou-a para dentro do cômodo, então, pediu outra vez:

"Pode abrir."

Ela ergueu as pálpebras, e imediatamente notou algo que não estava ali antes: um gramofone. Os olhos verdes arregalaram-se um tantinho, e ele se sentiu mais e mais esperançoso. Recordava-se das longas horas em que ela insistia que ele devia ouvir mais música, que só lhe faria bem, e ele o fazia apenas por ela - porque a música definitivamente não o atraía, e era algo banido da sua vida há muito tempo. Apreciava sem dúvida os longos momentos de silêncio, e agora, talvez tanto quanto aqueles, quaisquer som de dor e sofrimento e humilhação que pudesse causar.

Lily aproximou-se, parecendo incrédula. Porque aquela era a surpresa maior: os discos que conseguira. Fora preciso se aventurar pela Londres trouxa; por sorte, ainda se recordava de muitos dos lugares onde perdiam horas nas férias de verão, sempre atrás dos últimos lançamentos ou de uma boa promoção. Recordava-se, também, perfeitamente, dos nomes preferidos dela, ainda que eles não lhe dissessem nada: Beatles. Rolling Stones. Led Zeppellin. Os lábios dela se entreabriam, ele não sabia se de surpresa ou prazer, enquanto ela percorria as capas com um dedo estendido. Virou-se para ele, por fim:

"Obrigada, Sev", encostou os lábios em seu rosto.

"Você... gostou?", ele perguntou, retorcendo as mãos, muitíssimo ansioso.

"Sim", ela disse apenas.

Lily, porém, continuava possuíndo o dom de decepcioná-lo e quebrar em pedacinhos os sonhos que tinha com ela: imaginara-a felicíssima e em breve dançando livremente como costumava fazer. Mas ela simplesmente disse que não tinha vontade alguma de ouvir música naquele instante.

E logo esqueceu os discos e o gramofone.


*

Ainda lhe parecia errado voltar a ouvir música, a se divertir, a sorrir. Principalmente, errado não se sentir culpada e triste.


*

James.

Havia demorado tanto para compreendê-lo, tanto para aceitá-lo, para finalmente vir a amá-lo. E não tivera o suficiente dele. Era um desperdício, um perfeito e completo desperdício que tudo houvesse terminado tão rapidamente, e daquela forma, no auge do amor de ambos.

Arquejou.


*


Maldito Pettigrew.

Como o odiava.


*


Não sabia mais o que fazer. O caldeirão fervia há minutos debaixo do seu nariz, seu conteúdo muito provavelmente já teria passado do ponto mas ele divagava. Começava a ter a dúvida do arrependimento. Sabia que jamais seria páreo para Potter, mas... quem sabe não poderia tê-lo eliminado de outra forma, mais indolor para ela? Poderia, antes de qualquer coisa, jamais ter aberto a boca sobre aquela profecia idiota. Em seguida, usaria uma Imperio em Potter, faria-o tratá-la mal... mas de forma realmente rude, tão rude que ela esqueceria a briga e voltaria correndo para seus braços. Aquilo, ou qualquer outra loucura que a trouxesse de volta. Aquela morta-viva usando as feições de sua amada era ultrajante, um sacrilégio. E não sabia o que fazer. Era o que mais o frustrava: não via forma alguma de fazê-la retornar à vida. Descobria-se humano, falível, afinal, e não mais o todo-poderoso capaz de qualquer coisa que pensara ser, logo ao tê-la novamente em seus braços.

Arquejou, apoiando a testa em uma das mãos.

"Sev?"

Era ela, parada à porta, observando-o. Aproximou-se, cautelosa. Como sempre, ele sentiu-se abrindo-se para ela sempre que a via.

"Sev...", o lábio dela tremeu.

Lily ajoelhou-se no banco duro ao lado dele, enxugando com as mãos de anjo uma única e solitária lágrima que escorria pelo rosto dele.

"O que acontece?"

Ele apenas sacudiu a cabeça. Como confessar a ela a culpa que carregava? Sabia que ela jamais o perdoaria, sabia que ela realmente havia amado o maldito Potter, assim como a criança. Como confessar seu arrependimento? E sua frustração pelo que ela havia se tornado? Como dizer a ela que, se realmente pudesse, não hesitaria um segundo sequer em mudar o passado, apenas para que ela continuasse a viver? Como dizer tudo aquilo sem que ela o odiasse, temia agora, para sempre? Apenas sacudia e sacudia a cabeça, não possuindo palavras para expressar o que sentia.

O anjo, então, completamente puro e cego para o que realmente acontecia, envolveu-o em seus braços que recendiam a paraíso.

Ele chorou, finalmente. Não era justo o que havia feito com ela.

Foi, então, a vez dela embalá-lo até que se acalmasse.


*

Por que deveria ele ser considerado o único culpado? Se o rato não tivesse aberto a boca... se Potter não houvesse sido tão tolo a ponto de confiar a vida de Lily a um fraco, a um imundo como Pettigrew... sim, haviam vários culpados naquela tragédia. O primeiro já estava morto. O segundo carregaria para sempre a culpa e a dor de ter despedaçado o coração da mulher que amava. Restava, agora, punir o terceiro. O mais sujo e covarde dos três.

E ele o fez.


*

"Avada Kedavra."

E Pettigrew caiu morto, por ter sido tão pretensioso a ponto de acreditar poder trair Lily, e escapar ileso.


*



A demonstração de fraqueza e angústia dele, ainda que desconhecidos os motivos, fizeram-na despertar: não era apenas ela que sofria.

O fato de haver se preocupado com as lágrimas fizera-a descobrir, também, que ainda era capaz de sentir algo por alguém. Não apenas gratidão, ou piedade.


*


Era tão triste. Inacreditável. Chegava quase a ser como uma nova morte: Severus Snape tinha deixado uma poção queimar.

Nada naquela sentença parecia correto. Ela quase chorou outra vez enquanto franzia o nariz e examinava o conteúdo carbonizado no fundo do caldeirão. Por um instante, pareceu que não conseguiria se controlar, por fim, e desabaria em lágrimas mais uma vez. Mas assim que olhou em volta ficou muito claro o que deveria ser feito, claro como se fosse a coisa mais óbvia, sem que ela precisasse sequer pensar muito. Instintivamente procurou sua varinha mas não a encontrou, só então se deu conta de que, naqueles meses todos, fora uma bruxa sem a varinha: a maior humilhação que um bruxo poderia suportar. E ela sequer se importara com o fato - talvez a mágica dentro dela também tivesse se extinguido.

Mas não não era necessário uma varinha ou mágica para o que pretendia fazer. Caldeirões eram o que não faltava por ali. Ela afastou com dificuldade o que continha a poção arruinada, e com esforço ergueu um limpo para cima da mesa. Sentou-se, sentindo os braços doloridos pelo esforço. Franziu a testa. Era estranho, porque reconheceu todos os ingredientes, e trazia na cabeça a ordem e a sequência em que deveria combiná-los. Como se jamais tivesse deixado de fazer aquilo. Soltou um suspiro quase satisfeito, puxou para perto uma [pipeta] e mediu cuidadosamente o extrato de gengibre.


*


Matar, vingar-se, agir de forma fria e cruel, e principalmente, saber exatamente o que fazer, o fizeram recordar-se de como costumava ser. Era como um sopro de ar, ainda que fétido, em meio à opressão cotidiana em que se via mergulhado, dia após dia, convivendo com o fantasma dela.

Suspirou, e só de se recordar sentiu-se pequeno outra vez. Mas então, sacudiu a cabeça e franziu a testa, confuso. Apurou os ouvidos. Será que suas esperanças não o estavam traindo outra vez...? Será que... aquela canção vinha realmente... de sua casa? Seu coração vacilou um instante, e apressou os passos ao percorrer o caminho que levava até a porta. Subiu a escada tão rapidamente, quando notou que não, seus ouvidos não o enganavam e sim, era mesmo de sua casa que vinha aquela música, que ofegava ao chegar ao segundo andar. Rumou imediatamente para o quarto dela, a porta estava aberta, o gramofone funcionando, mas Lily não estava ali. Por um instante ele temeu o pior, então, o som de alguém em seu laboratório atraiu sua atenção. Caminhou apressado até o grande cômodo ao fim do corredor: ela estava tão compenetrada que ele pôde apenas observá-la por um longo tempo. Sentiu algo estranho ameaçando brotar de dentro dele, algo inevitável e forte como um choro. Fazendo, outra vez, as poções que costumava preparar tão bem.

Por fim, o amor e a esperança eram tão intensos que ele teve que adentrar o laboratório e se sentar ao lado dela. Então, subitamente, eram apenas dois dos melhores preparadores de Poções que Hogwarts já conhecera outra vez.


*


Severus.

Havia, também, demorado tanto a compreendê-lo realmente. Não era a pessoa vingativa que imaginara: teria tudo para odiá-la, mas estava ali. Quando o suporia tão cheio de sensibilidades? Resgatava-a mais do que poderia imaginar.

Aquele que já existia antes de haver um passado. E que existia novamente: presente.

E futuro?


*


Salvador.


*


"Não vai, Sev", ela pediu, apertando ainda mais os braços em torno dele, como se realmente pudesse impedi-lo. Beijou-o docemente na boca. Ergueu os olhos suplicantes para ele.

Ele hesitou, a dúvida dolorosamente estampada em sua face. A Marca ardia em seu braço, e os olhos tristes dela faziam arder seu coração.

Hesitava, pela primeira vez.

Devia ter prestado atenção àquele sinal.

Àquele perigoso e maldito sinal.


*

Agora, descobria que gostava de estar ali, com Severus, era como se estivesse em uma fração aparte do mundo. Um lugar seguro.

Seguro principalmente do que não queria ter de encarar. Seguro porque a fazia, com cada vez mais confiança, recordar-se de como era.


*


O céu se fechou subitamente, tão rápido que os raios de sol não tiveram tempo para sair de cena, e ainda tentavam atravessar a grossa camada de nuvens e chuva ao longe, mergulhando o mundo numa estranha atmosfera esverdeada. Relâmpagos brilhavam muito ao longe, mas o temporal parecia qualquer coisa menos assustador. Um trovão ribombou mais próximo.

Então, o inconfundível cheiro de chuva invadiu a biblioteca, trazido pelo vento, fazendo as cortinas se sacudirem.

"Mas, Lily...", ele deixou os ombros caírem, inconformado. Porque sabia que não resistiria. Sabia que, sempre, em qualquer hipótese e ocasião, largaria o que estivesse fazendo, por mais importante que fosse. Ela era a única que era capaz de fazê-lo abandonar sua postura sempre tão indiferente, e levá-lo a cometer todo tipo de loucura. Já então aquela sensação de estar vivo apenas enquanto ela existisse era extremamente forte.

"Sem mas", ela disse, atrevida, aquele ar de riso que sempre antecedia mais uma, e fechando, sem cerimônia, o grosso livro que ele lia.

Ainda tentou protestar debilmente:

"É pra amanhã, Lily..."

"Você já fez, que eu sei. Não precisa de revisão, Sev. Anda", puxou-o pela mão, impaciente, "Vamos!"

Cinco minutos depois escapuliam pela porta do Hall de Entrada e fugiam para trás das estufas. Ele estava encharcado, sentia-se tão desconfortável, mas valia a pena apenas para assistir, embevecido, a expressão de prazer que assomava a face dela, então. Os olhos fechados, aspirando muito profundamete o cheiro da chuva.


Agora, era ele quem, com um sorriso mal-intencionado, a fazia deixar o livro de lado e puxava-a pelas duas mãos.


*

Ela pareceu um pouco perdida, e passiva, no começo. Ele temeu que fosse partir suas esperanças e seu coração uma vez mais. Mas ele permaneceria ali exatamente onde estava, merecia todo e cada sentimento de culpa que estava sentindo. Merecia aquela punição, mesmo que ela não doesse nem um décimo da dor com a qual Lily convivia. E jamais conseguiria salvá-la se sucumbisse a cada erro. E reerguê-la era mais do que sua obrigação, pois não fora outro o responsável pela queda. Porém, não podia evitar de sentir seu coração pequeno ao vê-la ali, tão imóvel e sem saber como se portar, apenas segurando, com uma das mãos, a capa bem fechada à altura do pescoço, e piscando muito depressa, lutando contra as gotas pesadas que teimavam em abaixar seus cílios, e compará-la com a outra, que, àquela altura, estaria de braços abertos, rindo.

O que havia feito com ela, por deus? Sim, ele realmente merecia sentir cada agulhada de culpa e depressão. Mas... ela estava reagindo? Era o que parecia, porque ela ergueu um nada a cabeça, e ele viu, mesmo através da cortina de gotículas que se interpunha entre eles, viu as narinas dela se dilatando, suas pálpebras finalmente se fechando com delicadeza. Como se finalmente encontrasse a paz, e a si mesma, ele esperou, do mais profundo de seu coração.

Mas então, sem aviso, e antes que ele confirmasse suas esperanças, a chuva se tornou extremamente pesada. Trovões explodiram em fúria e um raio caiu a apenas poucos passos de distância. Como se quisesse puni-lo, machucá-lo, afogá-lo, por haver destruído, reduzido a nada, aquela que a costumava saudar. O vento o acusava, gritando, mas ele não pretendia descobrir toda a culpa que lhe imputavam. Nem o ar levemente frustrado no rosto dela o impediram de arrastá-la para dentro de casa.


*


Ela parecia deliciosa e despreocupadamente indiferente à toda a apreensão alvoroçada dele, cercando-a de cuidados para que não se resfriasse. Talvez tivesse sido uma insanidade arrastá-la para a chuva... não sabia avaliar, ainda, com precisão, seu estado... Ela precia estar saudável, mas ele sabia o quanto um psicológico frágil era capaz de abalar saúdes de ferro. E se a perdesse? Não suportaria aquilo. Era melhor uma Lily meio-morta do que Lily alguma. Repreendia a si mesmo pela imprudência enquanto aquecia o chá e preparava rapidamente uma poção, e ela, usando a varinha dele, secava os próprios cabelos, envolta num roupão felpudo e aconchegante. Se ele prestasse mais atenção a ela naquele exato instante, veria um pequeno sorriso em seus lábios e, se não fizesse tanto barulho tapando e destapando frascos e bules e tirando e recolocando todo o tipo de coisa no lugar, ouviria-a cantarolando baixinho enquanto balançava um dos pés.

"Bebe", ele mandou, com as sobrancelhas unidas no centro da testa daquela forma tão peculiar, estendendo um cálice e, depois que ela o esvaziou, uma xícara de chá fumegante.

Lily segurou-a com as duas mãos, procurando absorver seu calor, e soprou a bebida muito quente a fim de esfriá-la um pouco. Ainda apreensivo, ele sentou-se na poltrona que morava ao lado da cama dela, posta ali apenas para que pudesse ora contemplá-la, ora vigiá-la. Apoiou os cotovelos sobre as coxas, e o queixo nas mãos, enquanto os olhos pregaram-se nela. Ela bebericava cuidadosamente o chá ainda quente, trazia a testa um pouquinho franzida e os lábios um tanto assim entreabertos, envolta no roupão cor-de-rosa-antigo, os tornozelos enganchados um no outro.

Sentiu seu coração explodindo. Amava-a tanto, ali, apenas em paz, agora, todos aqueles pequenos detalhes, que ele nem sequer imaginava que o atraíssem em uma mulher até descobrir presentes na pessoa dela.

Suspirou.

Queria poder fazer qualquer coisa para exteriorizar aquele amor sufocante.

Sem nem pensar no que fazia, colocou-se de pé e se ajoelhou aos pés da cama.

Estendeu um dedo, e tocou o pé muito branco, tão pálido que era possível enxergar algumas pequenas veias azuladas através da pele. Tocou-o, pensando no milagre que era apenas tê-la, depois de tudo, depois de correr seriamente o risco de perdê-la para sempre, e no quanto sempre daria para aquilo, apenas. Somente mais uma chance de tê-la perto de si outra vez. Amava-a demais, mais que tudo, mais que a si próprio. Mataria e morreria por ela. Curvou-se, depositando um beijo sobre a curva do pé. Deslizou os lábios por sobre todo ele, sobre os dedos, beijando cada um deles, com a maior ternura de que era capaz, até o dedo mínimo, que cabia inteiro em sua boca. Fez o mesmo com o outro pé, depois, subiu pela graciosa curva até encontrar o ossinho do tornozelo, sempre beijando-a, mas jamais daquela forma constrangedora, suja, com que a atacara uma vez. A visão dela morta e nua enquanto ele se aproveitava era tão horrível que o curara do desejo consciente, restando apenas o que costumava chamar de amor. Mas ele era tão errado, tão ruim, tão vingativo. Queria chorar quando se lembrava, porque gostaria de possuir apenas um sentimento puro e sem mácula, para que pudesse, quem sabe, curá-la com esse amor. Mas sabia que não o possuía. Porém, por mais errado e sujo que fosse, nada, nada o impediria de amá-la, e demonstrar o que sentia.

Os lábios, então, subiram pela perna. Amava seus pés, as veiazinhas azuis, o pequeno osso do tornozelo, a perna, os finíssimos pêlos vermelhos que a cobriam. Amava igualmente a batata da perna, a dobra atrás dos joelhos, os joelhos um pouco ossudos demais. Amava, e contava a ela com seus beijos, as coxas, lisas, firmes, a curva perfeita dos quadris, seu sexo quente e úmido e ao mesmo tempo doce e salgado e levemente ácido. Amava o ventre, os pequenos ossos salientes da bacia, a barriga, seu umbigo, a cintura estreita, as costelas aparentes. E amava seus seios redondos assim como seus bicos rosados e agora pontudos, os quais beijou com carinho e reverência. Adorava o colo pronunciado, os ombros, seus braços finos, o cotovelo, o antebraço. E cada um dos dedos de sua mão esquerda, bem como os da mão direita. Amava todo o corpo quente e vivo bem próximo ao seu, e beijou o queixo, as maçãs do rosto, as pálpebras fechadas, a testa até a linha dos cabelos. Esquecera-se de si mesmo, seu nome, onde estava, o que fazia: existia apenas ela, no mundo inteiro, brilhando como um farol e guiando cada único ato seu. Lily. A única mulher que jamais ouviria 'eu te amo' deixando os lábios dele. "E faz alguma diferença, ter nascido trouxa?" "Não, não faz diferença alguma", ele replicara, e aquela havia sido a primeira, mas não a única de muitas traições que cometeria contra suas próprias crenças e contra si mesmo sem sequer vacilar. Porque era a ela quem servia. Quando abraçara em definitivo as Artes das Trevas, foi apenas porque mais nada lhe havia restado. Depois, arriscou-se a suplicar, a ser morto, implorando para que vivesse. Traíra-se a si mesmo outra vez. Quando se voltou para Dumbledore, não fora a Lord Voldemort a quem havia sido infiel, e uma vez mais tinha sido por ela. Bastava que ela dissesse o que queria que ele fizesse, ele o faria. Alegremente. Até o fim do mundo. Era mesmo um fato, era como as coisas eram, e ele se conformava com seu destino. Beijou, por fim, docemente, os lábios dela. E por mais que seu corpo desejasse ir além, porque não controlava seu instinto, seus desejos, esses ele controlava facilmente. Apoiou as mãos uma de cada lado do corpo dela, retardando o máximo que podia o momento de se afastar. Procurando reter na memória, para sempre, a expressão do rosto dela naquele exato instante: os lábios vermelhos e suculentos, abrindo-se levemente com a respiração rápida, a pele perfeita, o rosto finamente esculpido, os olhos o fitando fixamente.

"Sev...", ela sussurrou.

Deus, e aquele tom de voz. Rouco, doce, preguiçoso e familiar.

"Faz amor comigo, Sev."

A frase atingiu-o como um soco no estômago, fazendo-o expirar todo o ar de seus pulmões e perder a firmeza dos braços por um instante. Não devia, havia jurado não pensar mais nela daquela forma, jamais conseguiria esquecer sua expressão vazia, os olhos vidrados... mas agora ela estava ali, pedindo...

"Tem certeza?", ele perguntou, emocionado e dividido.

"Tenho", ela respondeu, tão segura do que dizia.

Ele não soube o que fazer por um instante, então, ficou de pé, livrou-se rapidamente das roupas ainda um pouco úmidas mas ainda assim, não ousava avançar. Ela podia desligar-se no instante seguinte... e, se a violasse outra vez, não sabia do que seria capaz.

"Você... quer mesmo, Lily?"

Ela ergueu-se sobre os cotovelos e beijou-o na boca. Foi como se sugasse a hesitação dele com aquele beijo. Deu-se conta de quão rígido seu membro estava, colado à perna dela, e, quando tocou-a, com um dedo sentiu seu sexo pulsando sutilmente, contraindo-se e se expandindo em pequeníssimos movimentos. Era morno. Era muito úmido e escorregadio quando o explorou. Um pequeno gemido escapou pelos lábios dela. Seus olhos brilhavam. Estavam vivos, piscavam, as pupilas se dilatavam. Todo o seu corpo cores quentes: o roupão rosa-antigo debaixo dela. A pele em tom cremoso e palidamente corado. Os bicos rosados de seus seios. Os pêlos vermelhos cobrindo o sexo. Cílios vermelhos. Como as sobrancelhas. Os cabelos. A boca. Até mesmo o verde dos olhos parecia cálido e vivo. Finalmente vivo.

"Tem certeza?", ele perguntou, pela terceira vez, com a voz embargada.


*


Sentia-se tão viva finalmente.

Queria celebrar.

E o desejava, também. Sempre o desejara. Sempre. Só não compreendera até então.


*


Fisicamente, não era muito diferente de estar dentro de qualquer outra mulher.

Mas era a sobreposição do ato banal tantas vezes repetido e a da presença dela, dos pequenos sons que seus movimentos arrancavam dos lábios dela, de seus dedos segurando com força a carne macia dos seios, dos quadris, dela!, tão indiscutivelmente dela, de seus pêlos negros se mesclando aos pêlos vermelhos, do choque dos corpos, quase violento e então, terno e arrebatador, o sexo dela se moldando a seu membro rígido e que a penetrava de forma implacável. E ela estava decididamente viva porque reagia, envolvia-o com as pernas, com os braços, buscava avidamente sua boca. Arqueava as costas, movimentando os quadris de encontro ao corpo dele, como se apenas a intensidade dos movimentos dele não fosse suficiente para saciar a ânsia de viver que agora tomava conta dela.

Ele deixava de existir a cada movimento que fazia para dentro dela. Tudo o que havia era o contato, reentrâncias e arestas se encaixando perfeitamente, então, o contato se transformava em fusão, em seu significado mais profundo.


*


Qual era o nome exato do que ele sentia naquele instante?

Plenitude.

Satisfação.

Realização.

Alegria pura e simples.

Amor.

Não sabia, não o reconhecia, jamais havia sido preenchido por aquela sensação cálida e calma e que reconfortava cada mínima célula de seu corpo, e que o fazia quase chegar perto de descobrir o motivo pelo qual vivia.


*


Sentia-se em paz. Segura. Feliz da forma como se sentiria feliz de agora em diante: incompletamente feliz, mas pequenas partes de seu ser se ressentiam da infelicidade e agora, sentiam-se quentes e lânguidas e finalmente preenchidas.

Estava então feliz. E James e Harry, condenariam-na por isso? Tremeu por um instante enquanto tentava sentir o que eles diriam, se pudessem se manifestar.

O que ela desejaria estando no lugar deles? E se ela tivesse perecido, deixando-os vivos? Sentiria-se furiosa e vingativa acaso Harry e James resolvessem ser felizes outra vez? Ela tinha certeza absoluta de que eles jamais a esqueceriam se tivesse morrido. Tinha, também, uma certeza profunda de que odiaria ver as vidas deles se extinguindo, se arrastando, tornando-se um fardo. Era um fato. Gostaria que vivessem. Amava-os demais para ser egoísta. Sabia que James a amara daquela mesma forma. Estremeceu, porque lhe pareceu, durante um segundo inteiro em que se deu conta de onde estava, enredada nua no corpo nu de Severus, pareceu-lhe tão obsceno pensar em James. Mas eram ambos atos de amor: pensar em James. Estar com Severus agora.

Fechou-se outra vez nos pensamentos sobre o que sentiria no lugar deles. É, estava mesmo certo.

Sentia-se exatamente como deveria se sentir.


*


Ele ainda não havia conseguido definir aquele sentimento que havia simplesmente explodido dentro dele na tarde anterior. Sabia apenas que continuava ali, quando acordou ao lado dela na manhã seguinte. Tão, mas tão linda além de qualquer descrição e sonho, ali dormindo sob os raios oblíquos e alongados do sol que se erguia.

Tão em paz.

Lily espreguiçou-se, e entreabriu os lábios, então, bocejou escancaradamente, por fim, quando o sol já ia alto no horizonte. E Severus permanecera o tempo todo na mesma posição, meio deitado, com o braço esquerdo colado ao corpo, a mão direita apenas estendida na direção dela. Não foi capaz de mais nada a não ser sorrir e sentir-se esticando e arrebentando por dentro quando ela olhou nos olhos dele. E o aceitou. Não demonstrou arrependimento, culpa, vontade de mudar o que haviam feito.

Era um fato consumado, diziam-lhe o sorriso, os olhos dela, iluminados lateralmente por um raio de sol.

O coração se acelerando, o corpo quente se aconchegando ao seu. Dedos delicados mas tão reais afagando-o. A boca rubra. O raio de sol. Os olhos dela. O perfume inconfundível e o beijo macio e quente.


*


A escuridão e o mau-cheiro, no entanto, não tardaram a envolvê-lo outra vez

E como tudo aquilo lhe pareceu repulsivo porque ainda se encontrava sob o efeito dos olhos dela e do sorriso e do raio de sol.

Tão chocante.

Tão... não mais ardentemente desejado, por um brevíssimo segundo.

Mas então, os velhos hábitos falaram mais alto, e ele curvou-se a seu mestre, seu mestre que distendeu por um momento as narinas como se farejasse o raio de sol nele. Mas Severus fechou-se, cerrou a porta atrás daquele compartimento e sabia manipular o que queria que o outro visse, ainda que tivesse vacilado e quase se traído por um instante.

Porque o raio de sol e os olhos dela permaneceram como um farol dentro dele durante os dois dias que se seguiram em meio à escuridão.



*


Mas o que ele queria, realmente?

Provara o poder e o reconhecimento outra vez, e ainda eram tão saborosos.

O Comensal preferido do Lord das Trevas. O mais valoroso, o mais dedicado, o que conseguia, sempre, os melhores resultados. Invejado por Malfoys. Por Lestranges. Por Dolohovs. Por todas aquelas famílias puro-sangue que durante tanto tempo haviam sido apenas nomes distantes e cobiçados no grosso livro de História da Magia.

Sentia como que uma corrente de energia poderosa e maligna percorrendo seu corpo quando se recordava de tudo o que havia conquistado. E sentia raiva de si mesmo , e sentia-se principalmente perdido, ao notar que [aquilo] não o satisfazia mais como antes. Não. Era uma sensação tão forte, aquela de desilusão, que nem era possível tentar se enganar. Assim como era impossível negar a velocidade e intensidade espantosas com que reagia à simples visão dos cabelos ruivos surgindo e desaparecendo rapidamente em uma janela. Seu coração se acelerou só ao cogitar a hipótese de que ela estivesse vindo encontrá-lo.


*


Seu coração se acelerou outra vez, mas de puro medo da descoberta. Lily era tão poderosa, ele se dava conta agora. E seu destino estava outra vez nas mãos dela. Havia hesitado. Duvidado. Deixado de se concentrar por completo nos mandos e desmandos do Lord.

Teria ela consciência daquele poder?

Parecia tão frágil e indefesa espiando-o com aqueles olhos dela através dos galhos tornando-se ressequidos. Mas ele sentia como se cada segredo mais sujo e obscuro de sua alma estivesse sendo lido claramente naquele instante. Ainda assim, era incapaz de não olhar para ela por muito tempo. O que fizera nos dias e anos anteriores não passava agora de um borrão incômodo. Não conseguira sequer negar para si mesmo que, durante o tempo em que estivera fora, o quão ardentes foram seus pensamentos, o quanto desejava retornar o mas rápido possível apenas para estar com ela outra vez. E ali estava ela. E ele pensando vagamente em como ser firme, e retomar o controle da situação.

Ela curvou-se, passou agilmente por baixo de um galho, aproximou-se dele, suas intenções muito claras nos lábios entreabertos. Severus deu um passo para trás. Se a beijasse outra vez naquele estado de confusão e incerteza, estaria perdido, perdido! Mas não conseguia mais ocultar seus pensamentos, sua dúvida, sua dor, porque ela franziu a testa, buscou sua mão direita, levou-a ao próprio rosto, afagando-a com a sua. Ele deixou escapar um lamento e tentou se libertar. A decepção no rosto dela foi tão grande, machucando-o mais do que tudo, que ele tomou-o nas mãos imediatamente, consolando-a com beijos curtos nos lábios.

Que tudo o mais se danasse.


*


A caveira e a cobra como que pulsavam, moviam-se lenta e languidamente sobre a pele muito pálida. Tão feias. Tão cruéis. Tão significativas. Um dedo palidamente rosado acompanhava seus contornos. Severus não ousava erguer os olhos para ela, ler neles a decepção outra vez. Não foi preciso ver: ela ofegou, deu as costas para ele, tapando os olhos com as mãos. Ele quis morrer, arrancar fora o braço. Desejou, realmente desejou, jamais haver marcado a pele a fogo. Apenas para ser digno dela.

"Lily", chamou com a voz trêmula, insegura.

"Tudo bem", ela respondeu com a voz igualmente trêmula, tremendo da cabeça aos pés, os olhos injetados mas secos, virando-se lentamente. "Tudo bem."

Tocou a pele maculada outra vez. Chorava agora. Se ele pudesse voltar no tempo... quando imaginaria que ela estaria de volta uma única vez que fosse? Não queria mais aquilo. Quanto tempo até ela começar a gritar e puxar os cabelos e atirar coisas nele e...


"Às vezes penso se... não errei te deixando da primeira vez. Porque hoje vejo você...", ela secou as lágrimas. "Não vai acontecer outra vez."

"O quê?", ele perguntou, surpreendido pelas palavras, não compreendendo-as.

"Sev", ela disse, com a voz embargada, enquanto envolvia-o com os braços, os lábios. "Não posso te deixar outra vez."

Ele era tão, tão, tão valoroso e fiel.

No que dependesse dele, estariam todos vivos.


*


Era aquilo: havia desejado não ser um comensal.

O que significava? Não ousava pensar. Era suicídio. Era caminhar conscientemente para a tortura.

Revoltava-se consigo mesmo e se forçava a ser mais cruel do que jamais fora.


*


Lily deixou cair sobre ele seus longuíssimos e sedosos fios ruivos, e ele se aconchegou e se apegou à presença dela como um gatinho. Sentiu-se sorrindo, meio ranzinza e inesperadamente, franzindo a testa, porque ela tentava fazer-lhe cócegas com a ponta do cabelo. Logo sentiu os lábios dela acaricicando seus olhos fechados, seu nariz curvo, sua boca. Beijou-o. Não permitindo ser beijada, mas agindo. Beijando-o lenta e demoradamente. E doía tanto e estranhamente que aquilo fosse real, sabia que não era sonho algum por mais que tal momento sempre parecesse a milhas de distância de qualquer possibilidade de realização.

Ela era tudo o que ele queria. O que sempre quisera. Sempre foi. Lily, apenas Lily, e nada mais.


*

Era tão bom estar viva outra vez. Viva! Sentia até mesmo vontade de empunhar sua velha varinha outra vez.

"Mas ela se perdeu, Lily. Definitivamente se perdeu", ele disse, com um suspiro. Ninguém a havia visto até então, e Severus havia... havia ido até mesmo a Godric's Hollow, por ela, atrás da varinha. Mas voltara de mãos vazias.

Era uma bruxa outra vez, definitivamente, sentia a mágica pulsando dentro de si. Mas também nisso se via incompleta. Sentiu-se outra vez perdida e sem saber como agir, como se houvesse retrocedido no tempo. Era sua varinha, por deus! Que a acompanhara durante todo seu desenvolvimento, sua descoberta como uma bruxa poderosa. Era mesmo como perder alguém querido e importante outra vez. Seus ombros ergueram-se e caíram novamente, enquanto ela levava as mãos aos olhos, logo os braços dele a envolveram e ela relaxou um pouco.

"Mas pra quê uma varinha, Lily?", ele murmurou junto a seu ouvido, beijando-a ternamente.

"Ora, pra quê. Sou uma bruxa, Sev! Você não se lembra?"

Como se ele pudesse se esquecer. Ela estava tão desolada olhando para ele com os olhos muito abertos e cheios de algo que parecia ser terror. Ah, deus. Aquilo acabava com ele. Mas pra quê ela precisaria de uma varinha estando ali? Um pensamento desagradável cruzou sua mente, tornando seu semblante sombrio.

"Está... pensando em me deixar?"

"Não, Sev, não. Não poderia. Mas quero... quero voltar a fazer mágica."

Nunca soubera dizer não a ela. Sabia que não seria capaz de fazê-lo uma vez mais.


*


Aquele não era o mundo do qual se recordava. Aquele céu cinzento, como se constantemente debaixo de poeira de ruínas e fumaça, e não apenas do velho fog londrino. O frio, que congelava até a alma. Dementadores, ela sabia, mesmo que não fosse capaz de enxergá-los. Mas Severus estava ali, a seu lado, com um braço passado sobre seu ombro, e mesmo que se mantivesse em silêncio, e trouxesse no rosto uma expressão de poucos amigos, a simples presença dele bastava para confortá-la. O Beco Diagonal não era para ser tão assustador daquela forma. Ela agora via realmente edifícios em ruínas, tantas fachadas desfiguradas, tantas figuras suspeitas que ela se perguntou se não haviam errado o local. Mas algumas velhas lojas familiares ainda resistiam, o Gringotes, a Floreios e Borrões, não, estavam mesmo ali. Era o Beco Diagonal. Mas ela agora tomava consciência, dolorosamente, do que Severus havia tantas vezes lhe contado: guerra. Voldemort no poder. Toda a velha ordem simplesmente exterminada. Tudo aquilo estava mesmo acontecendo. Devia agradecer por estar viva, e bem, ainda que de forma incompleta.

Como poderia agradecê-lo o suficiente algum dia?

De acordo com os novos decretos, era impossível, agora, que um nascido-trouxa portasse uma varinha. Mas Severus, uma vez mais, a salvou. Exibindo a Marca Negra para o Sr. Olivaras, ordenou ao velho que saísse da loja, porque precisava cumprir ordens secretas de seu Mestre, e o velho obedeceu sem demonstrar qualquer resistência. E a expressão inimidadora de Sev se desfez no exato instante em que a porta se fechou, e ele notou o olhar terno e amoroso com o qual ela o fitava.

Quando fizeram amor naquela tarde, ela foi mais real e mais Lily do que já havia sido até então.


*


Ela retirou sua última máscara com a mesma falta de cerimônia e simplicidade com a qual costumava tratar todos os seus medos e dúvidas.

"Você não é um deles, Sev", ela anunciou, percorrendo com o dedo a nuca exposta dele e fazendo-o se arrepiar. "Nunca foi."

Por sorte, estava curvado sobre a mesa, trabalhando em uma poção. Ela não foi capaz de ver a expressão de pura dor que assomou em sua face. Sentia-se estar, mais uma vez, dividindo-se em dois. Metade dele queria provar a ela que era, sim, um deles. Ele havia matado. Usado todas as Imperdoáveis e além, havia chantageado, usado. Confessar-lhe que, se a mantinha ali, era para seu prazer, para, finalmente, satisfazer a obsessão que o consumira por metade de sua vida. Que, se ela se encontrava ali, viúva e sem o filho, era por culpa, primordialmente, dele.

Mas ele, no todo, não era nada tolo. Não jogaria pelos ares tudo que possuía agora. E se desculpava consigo mesmo dizendo que tentara, diabos, tentara salvar a todos.

Suspirou.

Amava-a incondicionalmente.

Sabia daquilo.

Duvidou outra vez.

Seria mesmo um deles?



*


Ela era tão, mas tão perigosa. Anjo! Era antes um demônio.

Desmontava-o com um simples olhar. Invertia prioridades em sua vida, tirava as coisas do lugar, escondia-as, mostrava-lhes novas para desviar sua atenção.

Não sabia de mais nada.


*


Mesmo que ela houvesse, de certa forma, aceitado a marca, era ele quem se incomodava com aquelas duas presenças tão paradoxais em sua vida.

Que não podiam ocupar o mesmo lugar no espaço: ele.


*


Como descrever a sensação de se aninhar junto dela debaixo de uma pilha fofa e sufocante de cobertas, depois de um dia todo passado no frio e na escuridão? Como descrever o que o cheiro, o calor, o som da voz dela faziam com ele? Apenas um único beijo antes de mergulhar no negro mundo do sono era suficiente para apagar tudo o que havia feito, perdoar seus pecados, purificá-lo.

Não sabia até onde conseguiria levar aquela vida dupla de servir a dois senhores ao mesmo tempo. Mas naquele exato instante, aspirando o perfume único dela antes de adormecer, e sentindo as formas mornas do corpo dela, ele pensava que valia a pena se arriscar. Valia a pena correr riscos, apenas para poder estar com ela, ali, por míseras horas que fossem.


*


"Sev..."

A expressão dela era tão tensa e preocupada, angustiada, trazendo visivelmente algo de muito errado, que ele se sobressaltou.

"Sev", ela chamou outra vez, parecendo insegura.

Por um momento ele pensou em dar uma desculpa qualquer e dar meia-volta para não ter de ouvir o que quer que ela tinha a lhe dizer, porque sabia que as coisas não ficariam para sempre naquele pé. Mas antes que ele pudesse agir Lily segurou suas duas mãos e olhou-o bem nos olhos, de forma que ele se visse paralisado ali.

"Quero ir", ela disse simplesmente. E não pedia mais, mas anunciava.

Era aquilo. Ele sabia, sempre soubera. Deixou o ar sair dolorosamente de seus pulmões. Sempre soubera que aquele pedido seria inevitável outra vez a partir do momento em que ela voltasse a viver. Sabia, esperava e temia por aquele momento quando ele chegasse. Havia planejando as mais diferentes reações: se impor. Mentir outra vez. Suplicar a ela que ficasse. Fazê-la enxergar que estaria morta do lado de fora. Mas, à medida em que o tempo passava, e a convivência se solidificava, a antiga influência dela sobre ele se fortalecia. Sentia-se mais domado. E se recordava do quão livre ela costumava ser. De que tinha sido, em primeiro lugar, aquela liberdade que o atraíra, a sílfide que voava livre enquanto o pequeno e feio ser, com os pés cravados sempre na terra, a espiava com inveja e desejo. Desejava mantê-la engaiolada para sempre, seu pássaro dourado, apenas para ele. Mas sua visão se clareava agora de tal forma e prioridades se invertiam, e tudo se transformava tão rapidamente... Não poderia tê-la presa e viva ao mesmo tempo. Poderia tê-la presa e sedada, talvez, mas não seria ela. Aquela que tão ardentemente havia desejado desde sempre.

Doía, imaginar-se sem ela depois de mais de um ano de convivência tão estreita.

Nem o fato de que se veria livre, finalmente, de sua influência perigosa contava pontos a favor.

Gostaria, outra vez, mais do que nunca, de voltar a ter poder sobre a vontade dela. mas sentia-a escorregando por entre seus dedos novamente. E sabia que agora, não poderia, assim como não pôde naquela época, fazer absolutamente nada. Ela o dominava, aquela é que era a verdade. Dominava o Comensal mais perfeito e implacável. Nunca conseguira dizer não a qualquer pedido dela que fosse, e ainda não conseguia, e duvidava que fosse consegui-lo algum dia.


*


Jogou-se sobre ela num abraço tenaz.

"Quando?", ele arquejou, à beira do desespero. Por se ver tão impotente e por pura tristeza e depressão por estar deixando-a ir por livre arbítrio.

Ela sacudiu a cabeça

"Não sei, Sev, ainda não sei. Mas... algum dia?", ela suplicou.

Quando quisesse, sua vontade se curvou, servil.

"Não vai me deixar, vai, Lily?", e o que todos diriam se vissem aquele Comensal tão aterrorizante agora? Suplicando, agarrado a ela, como uma criança?

Ela sorriu, mas mesmo seu sorriso confortador não o animou, assim como o beijo que ela lhe deu em seguida.

"Nunca. Nunca mais vou deixar você"


*


Mas ele sabia que a perderia mais cedo ou mais tarde e não podia deixar de suspirar e ficar melancólico.

"Sev..."

"Não é nada, já disse", ele virava o rosto, emburrado.

Era tão idiota porque deveria aproveitar os últimos momentos dela, ali. Sentia-se com onze anos de idade outra vez.

"Promete... que vai vir me ver", ele dizia, por fim, já que não tinha nada a perder outra vez.

"Prometo", ela sorria, misteriosa e divertida, como se achasse algo muito engraçado o sofrimento dele.

Insensível.

Maldita.

É, era aquilo. Maldita fosse porque não podia controlá-la. Maldita e amada.

"Quero lutar", ela disse a ele, porque o que havia visto no mundo lá fora não a deixava dormir em paz. Mas precisava se fortalecer só mais um pouquinho antes de tudo. Por isso ainda não o deixaria. Não estava preparada. A sensação de deixá-lo repentinamente era levemente aterrorizante. Mas absorveria mais dele, e se tornaria forte, e então, iria. Para fazer tudo retornar a seu lugar de direito.

"Isso é um absurdo", ele sibilou, com o coração partido. Angustiado. Ainda mais por se sentir tão impotente.

Estariam de lados opostos outra vez.


*


Mas ele se enganava. Não seria como da primeira vez: Lily estava decidida a não abandoná-lo novamente. Pelo contrário, estava disposta a salvá-lo. Tinha, agora, uma visão tão clara da bondade que havia nele... Severus só precisava de um pulso firme.

"Vem comigo", ela sussurrou docemente, tão irresistível, beijando os ombros descobertos dele. "Ser livre."

Doía tanto se dividir em dois, ele pensou, fitando o mundo lá fora, o mundo seco e enegrecido que muito em breve se tornaria branco e congelado outra vez. Ir com ela. Iria até o inferno com ela. Mas não conhecia o significado da palavra liberdade. Talvez jamais viesse a conhecer. E como, por deus, como poderia abandonar o serviço ao Lord e permanecer vivo? Sentiu os seios dela se pressionando contra suas costas quando ela se aproximou, as pernas nuas e muito brancas se insinuando uma de cada lado do corpo dele. Lily afastou seus cabelos para um lado e esticou o pescoço por cima do ombro dele, de forma que seus rostos ficassem bem próximos. Os braços dela se cruzaram sobre o estômago dele.

"Sabe... me enganei com você", ela anunciou, com um pequeno ar de vitória no rosto.

"Enganou?", ele virou rápido a cabeça.

Ela sorria, misteriosa.

"Me enganei. Muito".

E não disse mais nada, mas parecia uma coisa boa, não parecia? Ele deu-lhe um pequeno sorriso triste e frustrado, quase como se se desculpasse.

"Eu... não consigo entender você às vezes, Lily."

O sorriso dela aumentou, mas ela logo se fez de séria, e perguntou, erguendo uma sobrancelha:

"E isso te incomoda?"

Ele franziu a testa, confuso, antes de responder.

"Pra ser bem sincero... incomoda um pouco, sim, mas...", ele sacudiu a cabeça, e sorriu, olhando-a nos olhos. "Não consigo viver sem. Não sem você. Eu... eu amo você, Lily", ele disse, por fim, e foi tão simples e indolor, tão natural colocar para fora aquelas palavras que vinha engolindo e negando-se a exteriorizar por tanto tempo.

"Ah, Sev", ela pareceu tão emocionada nos poucos segundos que ele teve para observar o rosto dela antes de ser sufocado por um abraço e pelos fios vermelhos. Sentiu o corpo nu se movendo, colando-se ao seu, sentiu a boca morna e macia o buscando, sentiu os beijos delicados, a voz dela sussurrando o inimaginável em seu ouvido:

"Também amo você. Demais."


---


bom, povo, antes de qualquer coisa, preciso pedir desculpas pelo meu pitizinho. eu estava em PLENA TPM, hahha, e, quando isso acontece, sempre me acho a mais uó e ridícula das criaturas. mas a fic tá a salvo, agora *faz notinha mental pra nunca mais postar nada quando estiver na TPM* =P

anyway, MUITO obrigada pelos reviews tão lindos. gosto tanto dessa história, apesar de ainda achá-la um pouco... digamos, arriscada. tanto que ainda não sei exaaaaatamente como vai terminar, são tantas as possibilidades. não sei se seria justo a lily terminar sendo enganada dessa forma. o que vocês acham?

ana: menos, muíe, menos =P mas fico feliz MESMO que vc tenha gostado tanto =)

carla: hehehe pois é, eu vivo pirando nesses "o que teria acontecido se...". e "confusa" é meu nome do meio.

morg: quero quotes *faz bico* (e eu é que não tenho palavras pra agradecer todo o apoio e incentivo seus nessa fic em particular <3)

isabel: 'brigada. mas não precisa de poção, não, só um pouco mais de amor <3 hehehe. e nossa, juro pra vc que me deu O aperto no peito matar o harryzinho, oun.

kristina: MILHARES de agradecimentos pelo comentário. sério mesmo. espero que a segunda parte não tenha lhe decepcionado <3

yolanda: muitíssimo obrigada! pois é, também acho deprê ao extremo a forma como a lily ficou mas... poxa...

bizinha: thanks! segunda parte tá aí ;)

mary: oun, AMO comentários grandões <3 amo os seus em especial! <3 e entendo de prioridades, vá estudar JÁ =P e sim, nossa, nada nessa fic vai ser como conhecemos a história... acho que vi "de volta para o futuro demais", haha =P e to naquelas... uma mínima ação tem consequencias TÃO enormes e impossíveis de prever... enfim.

fabiana: ain que dó. mandei uma mensagem, não sei se vc leu... anyway, prometo ir mais rápido agora, e não te torturar mais =*

pova, a terceira e última parte é bem curta e tá quase pronta, não deve demorar =) porém, acho que posto mais uma short antes, e mais "love will" (demorei, né). bom, é isso, se cuidem =*

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.