I-Promessa
“Luz do divinal querer
Seria uma sereia
Ou seria só
Delírio tropical, fantasia
Ou será um sonho de criança
Sob o sol da manhã”
(Sereia – Lulu Santos)
Mais uma discussão interminável.
No começo, quando ainda era pequeno demais para compreender a situação, limitava-se a encolher-se num canto qualquer daquela casa tão escura e fria, esperando pelo momento onde os gritos cessariam. Contudo, com o tempo aquela passividade foi substituída por uma aparente indiferença. Apenas aparente, porque bem lá no fundo Severus sabia o real motivo para as discussões entre seus pais e ele simplesmente não compreendia a razão para que sua mãe se mantivesse presa àquela situação.
Severus sabia que ele e sua mãe eram diferentes, que eles poderiam fazer mais, muito mais do que se supunha. Mas depois de tantos anos de desentendimentos, Eileen Prince Snape cedera à uma irresistível melancolia e tudo em volta daquela pequena família parecia envolto em sombras, cinzas e amargura.
Assim como o ambiente da casa dos Snape em Spinner’s End, o clima também estava nebuloso fora dele. O pequeno Severus parecia menor ainda do que era com suas roupas estranhas e descombinadas, que sempre foram motivo de piada para os garotos da vizinhança. Ele se perguntava se os garotos zombariam dele se soubessem que ele seria capaz de machucá-los de verdade, se os garotos zombariam dele se soubessem o que ele era.
Contudo, mais uma vez teve de engolir as ofensas, aceitar que fazer algo só iria piorar a situação. Inclinou levemente a cabeça, os cabelos negros e sem corte cobrindo parcialmente o rosto muito pálido, enquanto os ombros pareciam curvar-se mais ainda sob o peso de sua solidão. Mas isso não vai durar muito - pensou o garotinho, uma fúria gélida petrificando o seu coração - mas não vai mesmo. Algo borbulhou em seu interior, lembrando até mesmo as poções mal-cheirosas que sua mãe costumava preparar e, mais tarde, Snape iria aprender que aquele sentimento se chamava ódio.
A brisa gélida passeou sobre a copa das árvores do parquinho abandonado àquele horário, intensificando o ar desolado daquela tarde triste, como se fosse o sussurro melancólico de uma alma em agonia.
Talvez fosse chover, mas a possibilidade de voltar para casa não era muito animadora para Severus. Por isso ele preferiu continuar ali, tendo por companhia a própria solidão.
Com mal disfarçada satisfação, o garotinho sentou-se no balanço onde ele vira, na semana anterior, a Evans mais jovem brincar. Não entendia bem aquilo, mas Severus adquirira o estranho hábito de observá-la sempre que podia; como se aquilo fosse uma forma de torná-lo um pouco menos solitário, um pouco menos ele. E quando ele se acomodou no mesmo lugar em que Lilly – esse era o nome dela, Severus tinha certeza disso – sentiu como se uma onda de calor aquecesse o seu coraçãozinho.
-Olá.
Snape sobressaltou-se, os olhos arregalando-se de fúria e irritação. Mas o olhar duro que preparava acabou sendo substituído por uma surpresa quase tão intensa quanto a sua zanga. Pensou em dizer algo grosseiro para a garotinha ruiva que o olhava com curiosidade, mas um tímido raio de sol penetrou por entre as nuvens acinzentadas, tornando o ar daquela tarde menos tristonho e vazio.
-Você é o filho dos Snape, não é?
Severus apenas assentiu, voltando a encarar os seus sapatos gastos. Não conseguia encarar Lilly por muito tempo, sem ter aquela sensação de que aqueles olhos verdes eram capazes de saber tudo, tudo mesmo, o que ele pensava e sentia e queria.
Lilly acomodou-se no outro balanço, assumindo uma postura um pouco mais comportada do que de costume, olhando para aquele garotinho tão estranho e abandonado.
O silêncio parecia pesar entre eles, tão crianças e ao mesmo tempo parecendo tão cientes de que cada mínimo gesto carregava um significado tão grande.
-Ah, me desculpe pelo outro dia. – A ruivinha acabou quebrando o silêncio, começando a se balançar. – Mas eu achei que você estivesse me gozando quando disse que eu era... uma bruxa e todas as outras coisas também. É realmente verdade, Snape?
Então olhos verdes e negros fixaram-se num longo olhar, mais intenso do que qualquer outro olhar que Severus tivesse recebido até então.
-Severus. Você pode me chamar de Severus. – O garotinho murmurou, inclinando levemente a cabeça, como se aquele fosse um momento muito solene. –E sim, é verdade. Nós somos bruxos, eu e você. E eu sei, eu sinto que você vai ser uma bruxa muito poderosa e que vai fazer coisas muito grandes.
Lilly sorriu, um sorriso tão verdadeiro e luminoso que foi capaz de varrer para longe todas as sombras e agruras daquela tarde nebulosa.
-E é verdade, Severus... bem, é verdade mesmo que bruxos podem voar em vassouras e fazer poções de amor e todas aquelas coisas? E quanto àquelas bruxas de contos de fadas? Não existem bruxos assim, malvados? Era tudo mentira? – Lilly ofegou, as bochechas quase tão rubras quanto seus cabelos. – E o que são “trouxas”? Você chamou a Tuney disso naquele dia, mas eu não sei o que significa. Você entende o que eu quero dizer? Eu não sei nada sobre isso, Severus.
Os lábios finos de Severus estremeceram levemente e uma sombra de sorriso iluminou o seu rosto magro. O seu lado orgulhoso sentiu uma exultação enorme naquilo tudo, enquanto Lilly o encarava com indisfarçável curiosidade, como se ele fosse a pessoa mais importante do mundo.
-Não se preocupe, você terá muito tempo para aprender isso tudo.
-Mesmo? – Lilly parou de se balançar, mordendo o lábio inferior com ansiedade. – E se eu não conseguir aprender? Você vai me ajudar?
Severus sorriu, erguendo o rosto magro e encarando novamente a garotinha ao seu lado.
-Sempre, Lilly. Sempre.
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