Uma aventura em Londinium
Capítulo 4
Uma aventura em Londinium
Rowena não desejava que sua filha fosse para tão longe sozinha, mas a atormentava deixar seus afazeres por tanto tempo. Dedicava-se incansavelmente a encher livros e mais livros com toda a magia com a qual tomava contato. Após experimentá-las, muitas vezes com desastrosas conseqüências, apontava nos muitos livros, em mínimos detalhes. Poções estavam ocupando todo o seu pensamento atualmente e, se não fosse pelas exigências de sua vida mundana – marido e filha, a participação junto ao conselho da magia e as aulas que ministrava na escola – jamais deixaria a biblioteca. Era sua paixão e seu orgulho. Rowena conseguira reunir, em pouco mais de duas décadas, um acervo estupendo, que ocupava mais salas cada vez maiores, com dezenas e dezenas de estantes enfileiradas, a guardar, com alguma ordem, obras únicas. Desde aquelas escritas há milênios, acondicionadas em feitiços de conservação e mantidas longe dos olhares e mãos afoitos dos estudantes muito jovens até conhecimentos em formato mágico, aos quais a poucos era dado acesso. Rowena dedicou grande parte de sua vida a realizar viagens a todos os cantos do globo, em busca das fórmulas mais exóticas e dos artefatos mágicos menos prováveis. Deparara com criaturas impossíveis e magos improváveis mas nunca deixou que sua mente se fechasse para as possibilidades. Desde a Pérsia, de onde trouxera um exemplar raro da autoria do próprio Trimegisto, até ilhas do oriente, em que obtivera pergaminhos mágicos de onde gênios indomados ainda insistiam em sair de seus casulos de papel e tecido. Rowena acumulara tantos objetos transbordantes de magia dentro do castelo que se podia sentir a aura mágica desde muitos quilômetros de distância.
Helga reclamou.
– Rowena, pelas barbas de Merlim! Não posso mais fazer uma simples evocação que toma dimensões exageradas! Ontem mesmo estava a fazer brotar algumas mudas de beladona e eis que hoje tomaram toda a estufa. Estão quase a sufocar minhas mandrágoras e você sabe como elas são sensíveis. É preciso tomar uma providência e logo.
Rowena que trazia um livro de poções abstratas aberto enquanto caminhava pelo corredor olhou para Helga como se não tivesse certeza de tê-la visto antes. Após um momento, no entanto, seus olhos brilharam.
– Claro, Helga, você tem razão. É preciso que se faça alguma coisa, com certeza. E logo, é claro.
Após ter falado isso, voltou os olhos para o livro e seguiu seu caminho, deixando Helga com ar perplexo e desamparado.
Helga não se deu por vencida. Se a amiga não conseguia afastar sua atenção dos milhares de livros que lia o dia inteiro, outra pessoa teria de tomar uma atitude. Empinando o nariz, recolheu suas saias e se dirigiu à ala norte do castelo, onde certamente encontraria algum bom senso. Pelo menos, assim esperava.
Assim que Helga entrou nos aposentos de Hephzibah, soube que escolhera a pessoa certa. A jovem estava diante de um grande espelho postado junto à parede oposta às janelas, olhando-se e arrumando o cabelo. Tinha longos cabelos negros como os da mãe e os prendia com uma fita vermelha. Os olhos lembravam em muito os do pai, mas dele certamente herdara o porte empertigado e o sorriso franco. Godric não acreditava em melancolias, Helga bem sabia.
– Zibby, minha querida. É de você que eu preciso com desespero absoluto.
A moça voltou-se com ar divertido diante do exagero da bruxa, ainda segurando o cabelo enquanto dava um nó na fita.
– Diga-me, tia Helga, em qual problema terrível posso ajudá-la?
– Sua mãe, é claro – disse Helga, torcendo o nariz.
– Claro.
– Não é possível continuarmos a conviver com toda essa magia alastrada pelo castelo. Interferem no crescimento de minhas plantas e a estufa está um pandemônio. Não consigo que Rowena me dê atenção, ela parece que não percebe o problema. Mas você já deve ter percebido, não é mesmo?
– Sim, tia Helga. Mamãe ainda não sentiu os efeitos do excesso de encantamentos. Está muito envolvida com seus livros raros e a senhora sabe como ela adora suas poções.
– Sim, sim, eu sei – atalhou Helga – Mas isso já está passando dos limites. Aliás, passou dos limites há muito tempo. Não é possível continuarmos assim. Precisamos regular a magia espalhada na escola sob pena de acabarmos por perder o controle sobre ela. Os alunos já estão reclamando da interferência. Objetos que somem, salas que mudam de lugar, transfigurações involuntárias... Ainda semana passada Joanne teve seus olhos duplicados quando passou pela porta da biblioteca. Ela esteve inconsolável por dias até que pudéssemos trazer seu rosto ao normal.
– Sim, Tia Helga – disse a moça, terminando com os cabelos e começando a vestir o manto carmesim com estrelas douradas. Fora Helga que bordara aquelas figuras para ela pois a menina amava o céu mais do que a terra. – A senhora tem razão. Vou falar com mamãe. Sei que ela pode resolver isso se... puder fazer com que me ouça.
– Esse é o maior obstáculo, eu bem sei – concordou Helga, que há pouco fora ignorada pela mãe da moça. – Conseguir que Rowena levante o nariz daqueles livros bolorentos é um desafio incomparável.
– Não se preocupe, tia Helga. Tenho um assunto a tratar com mamãe que certamente a afastará dos livros por alguns momentos.
– Queiram os druidas na floresta – respondeu Helga, olhando para o teto como se a esperar que lá eles estivessem.
Hephzibah riu, achando muita graça na bruxa e seus trejeitos afetados. Depois a abraçou e beijou-lhe a face. Olhando-se uma última vez no grande espelho, deu-se por satisfeita e saiu do quarto.
Encontrou Rowena na biblioteca. Entre livros voadores, trêmulos potes de barro, garrafas cheias de líquido colorido, estava a bruxa transferindo uma poção de um cadinho para um frasco lapidado. Não viu a filha entrar e Hephzibah não esperava nada diferente. Achegou-se à mesa onde Rowena estava e começou a falar.
– Olá, mamãe. Sei que está muito ocupada, mas preciso que me dê a resposta sobre a viagem a Londinium.
Rowena levantou o rosto e encarou a filha, parecendo acordar de um sonho distante. Hesitou por uns momentos antes de falar.
– Zibby, você bem sabe que não gostaria de me afastar do castelo por muito tempo.
– Não será por muito tempo, mamãe – apressou-se em responder –, duas semanas no máximo.
– Duas semanas? – horrorizou-se Rowena, arregalando os olhos.
– Duas semanas passam rápido. E ademais a senhora sabe que não podemos recusar o convite para o torneio.
– Ora um convite. Podemos recusar, claro que sim – retrucou Rowena, esperançosa.
– Não, não podemos. Seria muito ingrato e deselegante – insistiu a moça. – Além do que eu quero ir.
Diante da afirmativa da filha, Rowena parou para respirar. Não queria afastar-se naquele momento crucial em suas pesquisas, mas não podia negar à jovem a oportunidade de alguma vida social. Só porque ela não apreciava esses relacionamentos não devia impor sobre sua amada menina uma vida de reclusão.
– Tem razão minha filha. Seria deselegante. Partiremos ao amanhecer de amanhã.
O rosto de Hephzibah abriu-se num amplo sorriso. Sabia que sua mãe não lhe negaria um passeio, especialmente por ser sua única filha. Estava ansiosa por conhecer a cidade que substituíra Camelot como centro político e cultural, e o torneio de prendas, entre cavaleiros de todos os reinos da Bretanha, era o que mais desejava assistir.
– Obrigada, mamãe, por fazer minha vontade.
– Não é sacrifício, minha querida. Você merece tudo de bom que eu possa te dar. Talvez Godric nos acompanhe.
– Seria maravilhoso – respondeu a moça, entusiasmada e esperançosa de que a viagem viesse a ser tudo o que imaginava. Lembrou-se do assunto pedido por Helga e hesitou se o momento seria afinal o mais adequado. Decidiu-se arriscar um comentário e observar a reação da mãe.
– E mamãe... – e parou para escolher as palavras.
– Sim, meu bem? – respondeu Rowena, que já pegava outro livro no alto de uma pilha sobre a mesa.
– Precisamos controlar a magia no castelo, tia Helga está muito alvoroçada.
– Claro, querida – disse a bruxa, já imersa em um texto arcano. – Imediatamente.
Zibby suspirou e prometeu a si mesma que falaria sobre o assunto novamente quando chegassem a Londinium.
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