As Duas Armadilhas



Ela precisava de tempo. Tempo para pensar, tempo para planejar o seu próximo
movimento. Não suportava voltar para a casa despojada e por isso foi hospedar-se
num pequeno hotel na Magazine Street, longe do Bairro Francês, onde o carnaval
desvairado ainda continuava.


Não tinha bagagem e o desconfiado recepcionista disse:


- Terá de pagar adiantado. São quarenta dólares pela noite.


Hermione telefonou do quarto para Charles Desmond, seu chefe a fim de
comunicar-lhe que não poderia trabalhar por alguns dias. Ele disfarçou a
irritação pela inconveniência e disse a Hermione:


- Não se preocupe. Arrumarei alguém para ficar no seu lugar até voltar.


O telefonema seguinte de Hermione foi para Rony.


- Rony, querido....


- Onde diabo você está, Hermione? Helen tentou encontrá-la durante toda a
manhã. Ela queria almoçar hoje com você. As duas têm muitas coisas para
combinar.


- Desculpe, querido. Estou em Nova Orleans.


- Você está onde? O que foi fazer em Nova Orleans?


- Minha mãe... morreu. A palavra quase ficou presa na garganta de Hermione.


- Oh... - O tom de voz de Rony mudou no mesmo instante. - Sinto muito, Mione.
Deve ter sido muito súbito. Ela não era bastante jovem?


Ela era muito jovem, pensou Hermione, desesperada. Em voz alta, ela disse:


- Era, sim.


- O que aconteceu? Você está bem?


Por algum motivo, Hermione não podia contar a Rony que fora suicídio. Queria
ansiosamente contar toda a história terrível do que haviam feito com sua mãe,
mas se conteve. O problema é meu, pensou ela. Não posso descarregar meu fardo em
Rony.


- Não se preocupe, querido. Estou bem.


- Quer que eu vá até aí, Mione?


- Não, obrigada. Posso cuidar de tudo. Enterrarei mamãe amanhã. E estarei de
volta a Filadélfia na segunda-feira.


Depois de desligar, ela estendeu-se na cama do hotel, os pensamentos à
deriva. Pôs-se a contar as placas acústicas no teto. Um... dois... três...
Romano... quatro... cinco... Joe Romano... seis... sete... ele pagaria. Ela não
tinha qualquer plano. Sabia apenas que não permitiria que Joe Romano escapasse
impune ao que fizera, que encontraria algum meio de fazê-lo pagar.


Hermione deixou o hotel ao final da tarde e seguiu a pé pela Canal Street,
até encontrar uma loja de penhores. Um homem de aspecto cansado, usando uma
antiquada pala verde, estava sentado num guichê, por trás do balcão.


- O que deseja?


- Eu... quero comprar um revólver


- De que tipo?


- Sabe como é... apenas um revólver...


- Quer um 32, um 45, um... Hermione nunca empunhara uma arma de fogo, sempre
tivera a varinha, mas desta vez queria fazer as coisas ao modo trouxa.


- Um... um 32 servirá.


- Tenho aqui um excelente Smith & Wesson calibre 32 por 229 dólares. Tenho
também um Charter Arms 32 por 159... Hermione não trouxera muito dinheiro na
viagem.


- Não tem alguma coisa mais barata?


Ele deu de ombros.


- O mais barato é um bodoque, dona. Mas podemos fazer uma coisa. Eu lhe
venderei o 32 por 150 dólares e ofereço de brinde uma caixa de balas.


- Está bem. Hermione observou enquanto o homem se deslocava para um arsenal
sobre uma mesa mais atrás e selecionava um revólver. Ele levou-o para o balcão.


- Sabe como usá-lo?


- Sei... basta puxar o gatilho. O homem soltou um grunhido.


- Quer que eu lhe ensine a carregar? Ela já ia dizer que não precisava, que
não tencionava usar o revólver, que queria apenas assustar alguém. Mas
compreendeu como isso pareceria absurdo.


- Quero, sim, por favor. Hermione observou enquanto ele inseria as balas no
tambor. - Obrigada. Ela abriu a bolsa e contou o dinheiro. - Precisarei de seu
nome e endereço para o registro policial.


Era uma coisa que não ocorrera a Hermione. Ameaçar Joe Romano com um revólver
era um ato criminoso. Mas ele é o criminoso e não eu. A pala verde dava aos
olhos do homem uma impressão lúgubre enquanto observavam Hermione.


- Nome?


- Whitney. Tracy Whitney. Ele fez uma anotação num cartão.


- Endereço?


- Dowman Road... Dowman Road, 32. Sem levantar os olhos, ele comentou: - Não
existe Dowman Road, 32. Seria no meio do rio. Vamos passar para 25. Ele estendeu
o recibo para Hermione. Ela assinou TRACY WHITNEY.


- Isso é tudo?


- É, sim. Cuidadosamente, ele empurrou o revólver pelo guichê. Hermione
fitou-o imóvel por um instante, depois pegou-o e guardou na bolsa, virou-se e
deixou a loja apressadamente.


- Ei, dona! - gritou o homem, enquanto ela se afastava. - Não esqueça que a
arma está carregada!






A Jackson Square fica no coração do Bairro Francês, com a bela Catedral de
St- Louis dominando-a como uma bênção. As casas antigas e aprazíveis da praça
ficam ao abrigo do tráfego intenso por sebes altas e graciosas magnólias. Joe
Romano vivia numa daquelas casas. Hermione esperou até o anoitecer para partir.
O carnaval deslocara-se para a Chartres Street; à distância, ela podia ouvir o
som do pandemónio em que fora engolfada anteriormente. Hermione parou nas
sombras, observando a casa, consciente do peso do revólver em sua bolsa. O plano
que elaborara era simples. Tentaria argumentar com Joe Romano, pediria que
limpasse o nome da mãe. Se ele recusasse, iria ameaçá-lo com o revólver,
obrigá-lo a escrever uma confissão. E a levaria para o Tenente Miller, que
prenderia Romano, resguardando assim o nome da mãe.


Desejava desesperadamente que Rony estivesse ali, a seu lado, mas sabia que
era melhor cuidar de tudo sozinha. Tinha de deixar Rony de fora daquilo.
Contaria a ele depois que tudo terminasse, com Joe Romano atrás das grades, que
era o lugar a que ele pertencia. Um pedestre se aproximava. Hermione esperou até
que ele se afastasse e a rua ficasse completamente deserta. Ela subiu os degraus
da casa e tocou a campainha. Ninguém atendeu. Ele está provavelmente num dos
bailes particulares oferecidos durante o Mardi Gras.


Mas posso esperar, pensou Hermione. Posso esperar até que ele volte para
casa. Subitamente, a luz da varanda foi acesa, a porta se abriu e um homem
apareceu. Sua aparência foi uma surpresa para Hermione. Ela imaginara um
gangster de aspecto sinistro, o mal estampado no rosto. Em vez disso,
deparava-se com um homem atraente e simpático, que poderia facilmente ser tomado
por um professor universitário. Sua voz era baixa e amistosa: - Olá. Em que
posso ajudá-la?


- Você é Joseph Romano? A voz de Hermione estava trêmula. -


- O próprio. O que deseja? Ele tinha um comportamento insinuante e agradável.


Não é de admirar que minha mãe se tenha deixado enganar por esse homem pensou
Hermione. - Eu... eu gostaria de lhe falar, Sr. Romano. Ele contemplou-a por um
momento, de alto a baixo.


- Claro. Entre, por favor. Hermione acompanhou-o a uma sala de estar cheia de
móveis antigos, bonitos e lustrosos. Joseph Romano vivia muito bem. À custa do
dinheiro de minha mãe, pensou, amargurada. - Eu ia me servir de um drinque. O
que deseja tomar?


- Nada. Ele fitou-a com uma expressão curiosa. - Sobre o que deseja me falar,
Senhorita ...


- Hermione Granger. Sou a filha de Dóris Granger. Romano fitou-a impassível
por um momento e depois uma expressão de reconhecimento aflorou em seu rosto.


- Ah, sim... Soube o que aconteceu com sua mãe. Uma coisa lamentável. Uma
coisa lamentável! Ele causara a morte de sua mãe e esse era o único comentário
que tinha a fazer.


- Sr. Romano, o promotor distrital acha que minha mãe foi culpada de fraude.
Mas sabe que isso não é verdade. E quero que me ajude a limpar o nome dela. Ele
soltou uma risada.


- Nunca falo de negócios durante o Mardi Gras. É contra a minha religião. -
Romano foi até o bar e começou a servir dois drinques. - Creio que se sentirá
melhor depois que tomar um drinque. Ele não lhe deixava opção. Hermione abriu a
bolsa e tirou o revólver. Apontou para ele.


- Eu lhe direi o que fará com que eu me sinta melhor, Sr. Romano: obrigá-lo a
confessar o que exatamente fez à minha mãe. Joseph Romano virou-se e viu a arma.


- É melhor guardar isso, Senhorita Granger. Pode disparar.


- E vai mesmo disparar, se não fizer exatamente o que eu mandar. Escreverá
como saqueou a companhia, levando-a à falência e causando o suicídio de minha
mãe. Ele a observava atentamente agora, uma expressão cautelosa nos olhos
escuros.


- E se eu recusar?


- Então eu vou matá-lo. Hermione podia sentir o revólver tremendo em sua mão.


- Não me parece uma assassina, Senhorita Granger. - Ele se aproximava dela
agora, com um copo na mão. A voz era suave e sincera. - Nada tive a ver com a
morte de sua mãe e pode estar certa de que eu... Ele jogou o drinque no rosto de
Hermione. Ela sentiu a ardência do álcool em seus olhos e um instante depois a
arma foi derrubada de sua mão. -


Sua velha me escondeu uma coisa - disse Joe Romano. - Ela não me contou que
tinha uma filha tão gostosa. Ele a segurava, imobilizando-lhe os braços.
Hermione não podia ver nada e sentia-se apavorada. Tentou se desvencilhar, mas
ele a encostou numa parede, comprimindo-se contra o seu corpo. - Tem coragem,
boneca. Gosto disso. E me deixa com o maior tesão. A voz dele soava rouca.
Hermione podia sentir o seu corpo ardente contra o dela. Tentava novamente se
desvencilhar, mas estava impotente em seu aperto. - Veio aqui por um pouco de
excitamento, hem? Pois é o Joe vai lhe dar. Ela tentou gritar, mas a voz saiu
sufocada: - Largue-me! Ele rasgou-lhe a blusa, sussurrando:


- Ei, olhe só para esses peitos! - Ele começou a apertar-lhe os mamilos. -
Lute comigo, boneca. Gosto disso. - Largue-me! Romano apertou-a com mais força
ainda, machucando-a. Hermione sentiu que estava sendo forçada para o chão. -
Aposto que você nunca foi comida por um homem de verdade. Ele se achava agora
montado por cima dela, o corpo pesado a comprimi-la, as mãos subindo por suas
coxas. Hermione tateou às cegas, e os dedos encontraram a varinha na lateral do
corpo. Agarrou-a e lançou o primeiro feitiço que lhe veio à mente. Houve uma
explosão súbita, estrondosa. - Oh, Deus! - exclamou Romano. A pressão dele
relaxou de repente. Através de uma névoa vermelha, Hermione observou
horrorizada, enquanto ele saia de cima dela, jogando-se no chão, as mãos
comprimindo o lado.


- O que você fez comigo? ... sua puta... O que fez comigo?... Hermione estava
paralisada,a varinha arriada em sua mão, incapaz de se mexer. Sentiu que ia
vomitar, os olhos se achavam cegos pela dor intensa. Largando a varinha,
virou-se e cambaleou para uma porta no outro lado da sala. Abriu-a. Era um
banheiro. Ela foi até a pia, encheu-a de água fria, molhou os olhos, até que a
dor começou a se desvanecer e a visão clareou. Contemplou-se no espelho por cima
da pia. Os olhos estavam injetados, com um aspecto horrível. Santo Deus, acabei
de matar um homem! Ela voltou correndo à sala. Joe Romano estava caído no chão,
o sangue se espalhando sobre o tapete branco. Hermione parou ao lado, o rosto
muito pálido.


- Sinto muito - murmurou ela, atordoada. - Eu não tinha intenção... -
Ambulância... A respiração de Romano era entrecortada. Hermione correu para o
telefone na mesa e... colocou-o de volta no gancho. O homem era trouxa, mas o
ferimento não era comum. Não podia chamar uma ambulância. Tinha que pedir
socorro no ministério, mas ai eles irão me pegar! Pensou horrorizada. Mesmo
morrendo de medo, Hermione voltou para onde estava a varinha e esticou-a para
cima, pedindo socorro. Ela abaixou a varinha e olhou para Joe Romano. Oh, Deus,
rezou ela, não deixe que ele morra, por favor. Sabe que eu não tencionava
matá-lo. Ela ajoelhou-se ao lado do corpo no chão, a fim de verificar se ele
ainda estava vivo. Os olhos se achavam fechados, mas Romano ainda respirava. - O
socorro já vai chegar- murmurou Hermione. E ela desaparatou.






Hermione aparatou em um beco perto do aeroporto. Sabia que seria mais seguro
desaparatar em casa, mas não se achava em condições de aparatar toda aquela
distancia. Seu pensamento voltou para os medi-bruxos.E se chegassem tarde demais
e encontrassem Joe Romano já morto? Ela seria uma assassina. Deixara o revólver
na casa, suas impressões digitais lá estavam. Poderia dizer aos aurores que
Romano tentara estuprá-la e tivera que se defender de qualquer jeito. Mas nunca
acreditariam nela. Mesmo que o ferimento não tenha sido feito com o revolver,
comprá-lo revelava a sua intenção e a arma ficou no chão, ao lado de Joe Romano.
Quanto tempo passara? Meia hora? Uma hora? Tinha de sair de Nova Orleans o mais
depressa possível. Perto de saguão de entrada ela tirou o espelhinho da bolsa e
fez o que era possível para se tornar apresentável. Fora estúpida ao tentar
obrigar Joe Romano a confessar. Tudo saíra errado.


Como posso dizer a Rony o que aconteceu? Sabia como ele ficaria chocado; mas,
depois que explicasse, ele compreenderia. Rony saberia o que fazer. Entrando no
Aeroporto Internacional de Nova Orleans, Hermione pensou: Foi somente esta manhã
que passei por aqui? Tudo aconteceu num dia apenas? O suicídio da mãe... o
horror de ser engolfada pelo carnaval... o homem gritando... "O que você fez
comigo?... sua puta..."


A caminho do guichê, Hermione teve a impressão de que todos a fitavam
acusadoramente. É isso o que a consciência culpada faz, pensou ela. Gostaria que
houvesse algum meio de saber qual era o estado de Joe Romano, mas não tinha a
menor idéia do que acontecera naquela casa. Ele vai ficar bom. Rony e eu
voltaremos a Nova Orleans para o enterro de mamãe e Joe Romano se salvará. Ela
tentou afastar da mente a visão do homem caído sobre o tapete branco, o sangue
manchando-o de vermelho. Tinha de voltar correndo para casa, para Rony...
Hermione foi até o balcão da Delta Airlines. - Quero uma passagem de ida para
Filadélfia no próximo vôo, por favor. Classe turista. O funcionário consultou o
computador.


- Será o vôo três-zero-quatro. Está com sorte. Ainda resta um lugar.


- A que horas o avião parte?


- Dentro de vinte minutos. Está em cima da hora para embarcar. Ao abrir a
bolsa, Hermione sentiu mais do que viu dois guardas uniformizados se postarem
nos seus lados. Um deles disse:


- Hermione Granger? O coração dela parou de bater por um instante. Seria
estupidez negar minha identidade.


- Sou eu.


- Está presa. E Hermione sentiu o aço frio das algemas estalarem em seus
pulsos.






Tudo estava acontecendo em câmara lenta com outra pessoa. Hermione observou-
se sendo levada pelo aeroporto, algemada a um dos guardas, as pessoas se virando
para olhar. Foi empurrada para o banco traseiro de uma radiopatrulha preta e
branca, com uma grade de aço a separá-la do banco da frente. O carro partiu
abruptamente, a luz vermelha piscando, a sirene gemendo. Ela se encolheu no
banco, tentando tornar-se invisível. Era uma assassina. Joseph Romano morrera.
Mas fora um acidente. Ela explicaria como acontecera. Mas como explicaria um
ferimento que nem mesmo a policia sabia que existia? Tinham de acreditar nela.
Tinham de acreditar...


A delegacia de polícia para onde Hermione foi levada ficava no distrito de
Algiers, na zona oeste de Nova Orleans, um prédio sombrio e agourento, com uma
aparência de desolação. A sala da frente estava apinhada de pessoas de aspecto
deprimente... prostitutas, cafetões, assaltantes e suas vitimas . Hermione foi
conduzida à mesa do sargento de plantão. Um dos guardas disse:


- A mulher Granger, sargento. Nós a pegamos no aeroporto, tentando escapar.


- Eu não estava... - Tirem as algemas. As algemas foram removidas. Hermione
recuperou a voz.


- Foi um acidente. Eu não tinha a menor intenção de matá-lo. Ele tentou me
estuprar e...


- Você é mesmo Hermione Granger?


- Sou, sim. Eu...


- Levem-na para a cela.


- Não! Espere um instante! - suplicou Hermione - Preciso telefonar para
alguém. Eu... eu tenho o direito de dar um telefonema.


O sargento soltou um grunhido irônico. - Conhece a rotina, hem? Quantas vezes
já esteve em cana, meu bem?


- Nenhuma. Esta é...


- Pode dar um telefonema. Três minutos. Que número você quer? Hermione estava
tão nervosa que não conseguia lembrar o telefone de Rony. Não conseguia sequer
recordar o código de área para Filadélfia. Seria dois- cinco-um? Não. O número
era outro. Ela agora tremia. - Vamos logo. Não posso ficar esperando a noite
inteira. Dois-um-cinco. Era isso!


- Dois-um-cinco-cinco-cinco-cinco-nove-três-zero-um.


O sargento discou o número e entregou o telefone para Hermione. Ela podia
ouvir a campainha tocando. E tocando. Ninguém atendia. Rony tinha de estar em
casa. O sargento disse:


- Seu tempo acabou. Ele estendeu a mão para arrancar o telefone de Hermione.


- Espere, por favor! - gritou ela. Mas, subitamente, lembrou-se que Rony
desligava seu telefone à noite, a fim de não ser incomodado. Ela escutou a
campainha por mais um instante e compreendeu que não havia a menor possibilidade
de entrar em contato com Rony. O sargento indagou:


- Já acabou? Hermione fitou-o apaticamente e murmurou:


- Já, sim.


Um guarda em mangas de camisa levou Hermione para uma sala, onde ela foi
fichada, lhe tiraram as impressões digitais e tudo o que poderia lhe ajudar a
fugir, como o cordão do tênis, relógio, a varinha (embora não soubesse para que
servia). Depois, foi conduzida por um corredor e trancada numa cela, sozinha. -
Terá uma audiência pela manhã - informou o guarda afastando-se e deixando-a
sozinha.


Nada disso está acontecendo, pensou Hermione. Tudo não passa de um terrível
pesadelo. Oh, Deus, por favor, não permita que nada disso seja real! Mas o catre
fétido na cela era real, o vaso sanitário sem tampa no canto era real, as barras
eram reais.






As horas da noite se arrastaram interminavelmente. Se ao menos eu conseguisse
entrar em contato com Rony! Nem mesmo tinha uma coruja ali. Precisava dele agora
mais do que já precisara de qualquer outra pessoa, em toda a sua vida. Eu
deveria ter-lhe contado, em primeiro lugar. Se o fizesse, nada disso teria
acontecido. Às seis horas da manhã, um guarda entediado trouxe para Hermione um
café morno e um mingau de aveia frio. Ela não foi capaz de tocar. O estômago se
achava completamente contraído. Uma inspetora veio buscá-la às nove horas. -
Está na hora, queridinha. A mulher destrancou a porta da cela.


- Preciso dar um telefonema - disse Hermione. - É muito..


- Mais tarde. Não vai querer deixar o juiz esperando. Ele é um filho da puta
mesquinho.


Ela acompanhou Hermione por um corredor e através de uma porta que dava para
um tribunal. Um juiz idoso o presidia . A cabeça e as mãos se mantinham em
constante movimento, em arrancos pequenos e rápidos. À sua frente se encontrava
o promotor distrital, Ed Topper, um homem franzino, na casa dos 40 anos, cabelos
grisalhos ondulados, olhos pretos e frios. Hermione foi levada a uma cadeira e
um momento depois o meirinho anunciou:


- O povo contra Hermione Granger. Hermione descobriu-se a avançar. O juiz
examinava um papel à sua frente, a cabeça balançando para cima e para baixo.


Agora. Agora era o momento de Hermione explicar a alguém com autoridade o que
realmente acontecera. Ela comprimiu as mãos, a fim de evitar que tremessem.


- Meritíssimo, não foi homicídio. Atirei nele, é verdade, mas foi um
acidente. Eu só pretendia assustá-lo. Ele tentou me violentar e... O promotor
distrital interrompeu-a:


- Meritíssimo, não vejo sentido em desperdiçar o tempo deste tribunal. Esta
mulher arrombou a casa do Sr. Romano, armada com um revólver de calibre 32,
roubou um quadro de Renoir no valor de meio milhão de dólares. Quando o Sr.
Romano surpreendeu-a em flagrante, ela alvejou-o a sangue-frio e deixou-o como
morto. Tracy sentiu que o sangue se esvaía de seu rosto.


- Mas... mas do que está falando?


Nada daquilo fazia qualquer sentido.E o ferimento bruxo? E que quadro era
aquele? O promotor acrescentou bruscamente:


- Temos a arma com que o Sr. Romano foi ferido. As impressões digitais da
mulher estão na arma. Ferido! Então Joseph Romano estava vivo! Ela não matara
ninguém.


- Ela fugiu com o quadro, Meritíssimo.


Provavelmente se encontra nas mãos de algum receptador, a esta altura. Por
esse motivo, o Estado solicita que Hermione Granger seja julgada por tentativa
de homicídio e assalto à mão armada, com a fiança fixada em meio milhão de
dólares. O juiz virou-se para Hermione, que se encontrava imóvel, em estado de
choque.


- Está representada neste tribunal? Ela não ouviu. O juiz alteou a voz: - Tem
um advogado?


Hermione sacudiu a cabeça. - Não. Eu... o que... o que esse homem disse não é
verdade. Eu nunca...


- Tem dinheiro para contratar um advogado?


Havia o fundo dos empregados no banco. E havia Rony.


- Eu... não, Meritíssimo. Mas não compreendo...


- O tribunal designará um advogado para você . Será mantida sob custódia, com
uma fiança de quinhentos mil dólares. Próximo caso.


- Espere! Isso tudo é um equívoco! Eu não... Ela não se lembrou depois de ter
sido retirada do tribunal.






O nome do advogado designado pelo tribunal era Perry Pope. Ele se aproximava
dos 40 anos, possuía um rosto rude e inteligente, olhos azuis simpáticos.
Hermione gostou dele imediatamente. Ele entrou na cela, sentou- se no catre e
disse:


- Você criou uma sensação e tanto para uma mulher que se encontra na cidade
há apenas 24 horas. - Ele sorriu. - Mas tem sorte. É uma péssima atiradora. O
ferimento foi superficial. Romano sobreviverá. Ele tirou um cachimbo do bolso e
acrescentou: - Importa-se que eu fume?


- Não. Ele encheu o cachimbo de fumo, acendeu-o, estudou atentamente o rosto
de Hermione. - Não parece a criminosa comum desesperada, Senhorita Granger.


- E não sou. Juro que não sou.


- Pois então me convença. Conte o que aconteceu. Desde o início. Leve o tempo
que julgar necessário. E Hermione contou. Tudo. Menos a parte da varinha, fez
parecer que ela havia mesmo atirado nele. Perry Pope escutou a história em
silêncio, não falando até que Hermione terminou. Recostou-se então na parede da
cela, uma expressão sombria no rosto. E disse, baixinho:


- Aquele filho da puta... - Não entendo do que eles estavam falando.


Havia confusão nos olhos de Hermione.


- Não sei de nada sobre um quadro.


- É realmente muito simples. Joe Romano usou-a como bode expiatório, da mesma
forma como fez com sua mãe. Você caiu direitinho numa armadilha.


- Ainda não compreendo.


- Pois então vou explicar. Romano reclamará o seguro de meio milhão de
dólares pelo quadro de Renoir que escondeu em algum lugar e receberá. A
seguradora ficará atrás de você e não dele. Quando as coisas esfriarem, Romano
venderá o quadro a algum colecionador particular e ganhará mais meio milhão de
dólares, graças à sua ingenuidade. Não sabia que uma confissão obtida sob a mira
de uma arma não tem valor?


- Eu... eu acho que sabia. Pensei apenas que, se conseguisse lhe arrancar a
verdade, alguém poderia iniciar uma investigação.


O cachimbo se apagara. Ele tornou a acendê-lo.


- Como entrou na casa?


- Toquei à campainha da frente e o Sr. Romano abriu a porta.


- Não é a história que ele conta. Há uma janela arrombada nos fundos da casa
e Romano garante que foi por lá que você entrou. Ele disse à polícia que a
surpreendeu a pegar o Renoir; quando tentou impedi-la, você atirou nele e fugiu.


- Mas isso é uma mentira! Eu...


- Mas é a mentira dele, assim como a sua casa... enquanto a arma pertence a
você. Tem alguma idéia das pessoas que está enfrentando? - Hermione sacudiu a
cabeça, em silêncio. - Pois então lhe contarei os fatos da vida, Senhorita
Granger. Esta cidade é controlada pela Família Orsatti. Nada acontece por aqui
sem a aprovação de Anthony Orsatti. Se quer uma permissão para construir um
prédio, pavimentar uma rua, explorar as muralhas, a loteria dos números ou os
tóxicos, tem de falar com Orsatti. Joe Romano começou como um pistoleiro dele.
Agora, é o homem principal na organização de Orsatti. Ele fez uma pausa,
fitando-a com admiração, antes de acrescentar: - E você entrou na casa de Romano
e apontou-lhe um revólver!


Hermione continuou sentada, atordoada e exausta. Finalmente perguntou: -
Acredita na minha história?


O advogado sorriu.


- Você está absolutamente certa. É tanta estupidez que só pode ser verdade.


- Pode me ajudar?


Ele respondeu bem devagar:


- Vou tentar. Eu daria qualquer coisa para pôr todos eles por trás das
grades. São os donos desta cidade e da maioria dos nossos juizes. Se você for a
julgamento, eles a enterrarão tão fundo que nunca mais tornará a ver a luz do
dia. Hermione fitou-o, perplexa.


- Se eu for a julgamento?


Pope levantou-se e começou a andar de um lado para outro da cela, enquanto
dizia:


- Não quero levá-la à presença de um júri porque será o júri dele. Pode estar
certa disso. Há somente um juiz que Orsatti nunca foi capaz de comprar. O nome
dele é Henry Lawrence. Se eu puder dar um jeito para que ele assuma o caso,
tenho certeza de que arrumarei um acordo para você. Não é rigorosamente ético,
mas conversarei com ele particularmente. Lawrence odeia Orsatti e Romano tanto
quanto eu. Agora, tudo o que temos de fazer é atrair o Juiz Lawrence.






Perry Pope providenciou um telefonema de Hermione para Rony. Hermione ouviu a
voz familiar da secretária de Rony:


- Escritório do Sr. Weasley.


- Harriet, aqui é Hermione Granger. Eu...


- Oh, Senhorita Granger, ele vem tentando lhe falar há bastante tempo, mas
não tínhamos o seu telefone. A Sra. Patil está ansiosa em acertar todas as
providências para o casamento. Se puder procure-a o mais depressa possível...


- Harriet, posso falar com o Sr. Weasley, por favor?


- Lamento muito, Senhorita Granger, mas não será possível. Ele está a caminho
de Houston. para uma reunião. Se me der seu número tenho certeza de que ele lhe
telefonará assim que puder.


- Eu... Ela não podia deixar que Rony lhe telefonasse para cadeia. Não antes
de primeiro ter a oportunidade de lhe explicar tudo o que acontecera. - Eu... eu
telefonarei de novo para o Sr. Weasley. Ela desligou.


Amanhã, pensou Hermione, cansada. Explicarei tudo a Rony amanhã. Hermione foi
transferida naquela tarde para uma cela maior. Foi-lhe servido um jantar
delicioso do Cyalatoire's e pouco depois chegaram flores frescas com um bilhete.
Ela abriu o envelope e tirou o cartão:ÂNIMO, VAMOS DERROTAR OS MISERÁVEIS. PERRY
POPE.






Ele veio visitar Hermione na manhã seguinte. Ela compreendeu que havia boas
notícias no instante em que viu o sorriso em seu rosto. - Estamos com sorte -
declarou ele . - Acabei de conversar com o Juiz Lawrence e com Topper, o
promotor distrital. Topper protestou furiosamente, mas chegamos a um acordo.


- Um acordo?


- Eu contei a sua história ao Juiz Lawrence. Ele concordou em aceitar um
reconhecimento de culpa de sua parte. Hermione ficou chocada.


- Um reconhecimento de culpa?


- Mas eu não...


- Preste atenção. Declarando-se culpada, você poupa ao Estado a despesa de um
julgamento. Persuadi o juiz que você não roubou o quadro. Ele conhece Joe Romano
e acreditou em mim.


- Mas... se eu me declarar culpada, o que eles farão comigo?


- O Juiz Lawrence a condenará a três meses de prisão, com...


- Prisão!


- Espere um instante. Ele suspenderá a sentença e você poderá cumpri-la em
liberdade condicional, fora do Estado.


- Mas neste caso eu... eu terei uma ficha policial.


Perry Pope suspirou.


- Se a levarem a julgamento por assalto à mão armada e tentativa de
homicídio, durante o ato, você pode ser condenada a dez anos. Dez anos de
cadeia! Perry Pope observava pacientemente e acrescentou:


- Só posso lhe oferecer o meu melhor conselho. Já é um milagre o que eu
consegui. Eles querem uma resposta agora. Você não precisa aceitar o acordo.
Pode arrumar outro advogado e...


- Não. Hermione sabia que aquele homem era honesto. Nas circunstâncias,
considerando o seu comportamento insano, ele fizera tudo o que era possível por
ela. Se ao menos pudesse falar com Rony... Mas eles precisavam de uma resposta
agora. Ela provavelmente tinha sorte de escapar com uma sentença de três meses
em suspensão.


- Eu... eu aceitarei o acordo. Hermione teve de fazer muita força para que as
palavras saíssem. O advogado assentiu.


- Está sendo esperta.






Hermione não teve permissão de dar qualquer telefonema antes de voltar ao
tribunal. Ed Topper postou-se num lado dela e Perry Pope no outro. Sentado no
assento do juiz, estava um homem de aparência distinta, na casa dos 50 anos, o
rosto liso, sem rugas, cabelos abundantes e impecáveis. O Juiz Lawrence disse a
Hermione:


- O tribunal foi informado que a ré deseja mudar sua alegação de inocente
para culpada. Isso é correto? -


- É, sim, Meritíssimo.


- Todas as partes estão de acordo? Perry Pope assentiu.


- Estão, Meritíssimo.


- O Estado concorda, Meritíssimo - acrescentou o promotor.


O Juiz Lawrence permaneceu em silêncio por um longo momento. Depois,
inclinou-se para a frente e fitou Hermione nos olhos.


- Um dos motivos para que este nosso grande país se encontre em situação tão
lamentável é que as ruas fervilham de vermes que pensam que podem escapar
impunes de qualquer coisa. Pessoas que zombam da lei. Alguns sistemas judiciais
neste país tratam bem os criminosos. Pois não agimos assim na Louisiana. Quando
alguém, ao cometer um assalto, tenta matar uma pessoa a sangue-frio, achamos que
a culpada deve ser punida de maneira exemplar.


Hermione começou a experimentar as primeiras pontadas de pânico. Virou o
rosto para Perry Pope. Os olhos do advogado fixavam-se no juiz.


- A ré admitiu que tentou assassinar um dos cidadãos eminentes desta
comunidade... um homem notório por sua filantropia e boas ações. A ré alvejou-o
no ato de roubar um objeto de arte no valor de meio milhão de dólares. - A voz
do juiz tornou-se mais áspera. - Pois este tribunal vai providenciar para que
não possa desfrutar esse dinheiro... não durante os próximos 15 anos. É que
durante os próximos 15 anos você estará encarcerada na Penitenciária Meridional
da Louisiana Para Mulheres.


Hermione sentiu que algum gracejo horrível lhe haviam impingido. O juiz era
um ator selecionado para o papel, mas estava lendo as linhas erradas. Não
deveria dizer nenhuma daquelas coisas. Ela virou-se para explicar isso a Perry
Pope, mas ele desviou os olhos. Ele arrumava papéis em sua pasta e pela primeira
vez Hermione notou que suas unhas eram roídas até o sabugo. O Juiz Lawrence se
levantara e começava a recolher os seus papéis. Hermione ficou parada ali,
atordoada, incapaz de compreender o que estava-lhe acontecendo. Um guarda
aproximou-se e segurou-a pelo braço.


- Vamos embora.


- Não! - gritou Hermione. - Não, por favor!


Ela levantou os olhos para o juiz e acrescentou: - Houve um engano terrível,
Meritíssimo. Eu... Enquanto sentia a mão do guarda lhe apertar o braço, Hermione
compreendeu que não houvera qualquer erro.




Fora enganada. Eles iam destruí-la. Assim como haviam destruído sua mãe.



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