Sobre O Que Eleva



Passaram três dias desde o incidente na laje. Três dias calorentos, abafados e empoeirados, desses que não há nada para fazer senão jogar-se num canto e suar até derreter. E com certeza não havia lugar pior para passar a estação do que a mansão Black, no lado mais decadente de Londres, o velho West End.

A casa era cheia de poeira e quente ao extremo, como um forno velho, só que pior, pois os corredores cheiravam a morte. Talvez fosse por causa das cabeças dos elfos embalsamadas no corredor, ou talvez fosse o falecido bom-humor de Sirius começando a apodrecer. O próprio Sirius também não estava lá muito cheiroso: passara os últimos três dias trancado no quarto, tentando esquecer Bellatrix, a laje e outras coisas incomodas. Sentia-se tão mal, com ela e consigo mesmo, que passou o tempo todo deitado no chão, vivendo de suco de abóbora e sapos de chocolate. Era idiota agir dessa forma, mas a atitude da prima o deixara irritado de fato, ou ela estava pensando que ele sempre fora doido por ela? Garota arrogante, devia pensar que todos queriam estar aos pés dela. Ele repetia tais pensamentos feito um mantra e passava horas a fio derretendo e mirando o teto, nem mesmo as cartas dos amigos ele respondera. Na mansão ninguém parecia sequer dar-se por sua falta, mas era verdade que Bella também passara três dias deitada no chão do próprio quarto, maldizendo a vida, o calor, o noivo e, principalmente, Sirius. Mas por mais que os dois se amaldiçoassem pela descarnação de sentimentos, nas horas mais altas da madrugada a sensação das caricias, dos beijos, voltava com tudo, arrebatando-os em sonhos quase tão ferventes quanto as próprias noites de verão. Mas sonhar estava longe de admitir que aquela temporada só seria suportável se passada lado a lado.

No quarto dia porém, justamente o mais quente de todos, Andrômeda Black farejou algo de estranho no ar – que não tinha relação nem com os elfos domésticos empalhados, nem com o falecido bom-humor de Sirius – e foi entrando de mansinho no quarto da irmã.

- Belinha? – chamou com a voz baixinha e meiga. Em qualquer outra pessoa esse tom de voz soaria falso, mas Andie era realmente baixinha e meiga – Podemos conversar, maninha?

Do chão, cabelos despenteados e olhos fechados, Bella respondeu, estranhamente rouca:

- Fala... Eu tenho o dia todo.

Piscando os olhos amendoados, Andie sentou em um pufe, abraçando os joelhos. Falou com meticuloso cuidado:

- Sabe, Bella, é que estão todos desanimados por causa do calor, mas, bem... Você e ele estão exagerado!

Bella abriu um olho. Tentou não demonstrar que estava bastante interessada no que a Andie tinha a dizer. Vendo que ganhara atenção da irmã, Andie continuou, bem mais empolgada:

- É que vocês ficaram aqui, sozinhos, naquele dia em que todos nós tínhamos saído... Aí eu achei que você está bem bronzeada, e o Sirius... – Bellatrix teve um acesso de tosse nesse ponto da conversa – Bom, eu não o vi muito, mas também está meio queimado. E como alguém quebrou a grade da laje... Quero dizer, eu... Ahn... Sem malicia Bella, mas aconteceu o que lá em cima?

Bella estava sentada – levantara-se com o acesso – e agora olhava a irmã mais velha com o queixo ligeiramente caído. Quem olhasse aquela garota de cabelos negros curtinhos, nariz arrebitado e piscantes olhos de amêndoa, não imaginaria que toda a meiguice ocultava uma esperteza digna da Sonserina. A garota exitou, precisava contar a alguém e tinha certeza que poderia confiar totalmente em Andie, aquela pequena hippie traidora do sangue. Só que ao mesmo tempo tinha medo de admitir a si mesma que havia algo em Sirius que abalara gravemente a sua murada de frieza e arrogancia. Pigarreou umas duas vezes, ajeitou os cabelos. Andie continuava a observá-la, piscando e esperando que ela resolvesse contar o que acontecera. Andrômeda tinha uma paciência inabalável e, se fosse preciso, esperaria o dia inteiro pela história de Bella.

- Ah! Certo, você venceu, Andie! – Bella não suportaria mais um minuto encarando aquela coisinha meiga – Mas você vai ter que pentear o meu cabelo!

Com um sorriso vitorioso, Andie acomodou-se para trançar os longos cabelos da irmã, enquanto esta contava – entre inevitáveis acessos de riso – o que acontecera na laje.

Andrômeda saiu do quarto com a certeza de que faria com que ao menos duas pessoas daquela casa fossem felizes juntas, assim como ela se sentia feliz com o Ted. Bateu, então, na porta do quarto de Sirius.

High, higher than the sun
You shoot me from a gun
I need you to elevate me here

Era tarde da madrugada e a massa de calor, lutando contra si mesma, transformara-se em uma tempestade torrencial. Sirius foi obrigado a levantar e ir fechar a janela. Uma poça d’gua começara a fazer barquinhos das embalagens de doces espalhadas pelo chão. Acendendo um velho candeeiro – estava realmente escuro, apesar dos clarões dos raios – o garoto teve que admitir que o quarto estava realmente um chiqueiro, bem pior do que o dormitório que dividia com Pontas, Rabicho e Aluado na torre da Grifinória.
- Limpar! - girando a varinha nos dedos, Sirius descobriu que não tinha o menor jeito para serviços domésticos: a maior parte da bagunça espremera-se debaixo da cama do garoto e ainda havia muita tralha no chão. “Ao menos o assoalho está seco.”

Espreguiçando-se e arrastando os pés, Sirius entrou no banheiro. Pensara seriamente em voltar a dormir, mas já não tomava banho havia três dias e era decididamente preocupante descobrir que o cheiro impregnado no quarto não vinha das meias velhas. Largou as roupas no chão e enfiou-se no chuveiro.

At the corner of your lips
As the orbit of your hips
Eclipse, you elevate my soul

A água – fervendo, diga-se de passagem – fê-lo despertar. Parecia que seu cérebro andara estuporado desde... Desde beijar e depois discutir com Bellatrix na laje. Aliás, parecia que toda a sua vida tinha se resumido naquele beijo e que tudo que houvera antes era um passado remoto. Pensando nisso, teve uma vaga lembrança de Andrômeda falando com ele... Quando isso fora mesmo...? Ah! Hoje de manhã! Mas o que ela queria? Nada contra Andie, mas não se dera ao trabalho de prestar atenção no papo dela. Captara algumas palavras, em sua opinião, bem sinistras: “Bella”, “laje”, “entocados como toupeiras” e “seu nariz está descascando”. Realmente os ombros e o nariz de Sirius estavam queimados demais. O que exatamente Andie havia dito? Ela estava insinuando alguma coisa... Aí a água do chuveiro esfriou de repente.

I've got no self-control
Been living like a mole
Now going down, excavation

Murmurando um monte de palavrões, Sirius Black, toalha enrolada na cintura, desceu as escadas em busca do porão e do maldito “aquecedor mágico de água”. Se aparecesse alguém reclamando de como estava quase nu, que fosse dar queixa no ministério. Tinha certeza que fora o abestalhado do Régulos que usara toda a água quente. “Idiota” - pensou só por pensar. Atravessou a cozinha e desceu até o porão sem se preocupar em acender a luz. A chuva lá fora fazia tanto barulho que mal ouvia os próprios pensamentos. No meio da tubulação achou o aquecedor. Parecia não haver nada de errado. Abriu uma válvula, fechou outra e concluiu que teria que esperar uma nova leva de água quente. Já ia voltando, tentando lembrar, ao mesmo tempo, do papo furado de Andrômeda e (involuntariamente) do beijo de Bellatrix. “Clark!” Algo quebrou na cozinha. Sirius parou no meio da escada do porão. Perguntou, a voz abafada pela chuva:

- Quem está aí?

Não houve resposta.

- Monstro?

O garoto subiu os degraus restantes. A cozinha estava escura demais, até mesmo para seus olhos acostumados. Havia um vulto perto da pia. Uma luz se acendeu e Sirius fechou os olhos, protegendo-os da claridade repentina. Piscou algumas vezes. Régulos. Esquecera que o irmão era sonâmbulo. Olhou para a porta e viu quem acendera a luz.

I and I in the sky
You make me feel like I can fly
So high, elevation

- Bellatrix? O que m…?

Ela, esplendida numa camisola curtíssima, nem olhou para ele, embora tivesse reparado que o primo estava só de toalha.

- Ah, Sirius...! Vá se vestir! Eu não conseguia dormir, desci aqui e encontrei esse idiota do teu irmão – empurrou levemente o garoto, afastando-o dos cacos do copo que ele derrubara – Venha Régulos, de volta para a sua cama!

Sem saber porquê, Sirius seguiu-os. Bella foi empurrando Régulos até o quarto do menino. Fê-lo deitar e saiu fechando a porta. Na escola também era ela que tinha que ficar correndo atrás dele. Régulos mal terminara o segundo ano e já mostrava-se um pequeno desastre. Talvez fosse a homenagem ao estranho tio "Alphard" no meio do nome. A garota virou-se para o corredor e deu de cara com Sirius.

A star lit up like a cigar
Strung out like a guitar
Maybe you could educate my mind

- Hei! Você não estava na cozinha?

Sirius deu de ombros:

- Eu vim ver você devolver o mané.

Bella ergueu uma sobrancelha:

- Por quê?

- Sei lá! Você precisa saber de tudo?

- E você precisa sacudir os ombros?

Sirius encarou-a, piscando. Bella sentiu-se enrubescer.

- Ah... Quero dizer... Seus ombros estão descascando!

Bella abaixou a cabeça, detestava ficar vermelha na frente dos outros. Esperava que Sirius risse. Só que ele não riu. Simplesmente saiu da frente dela e apoiou os cotovelos no corrimão da escadaria. Disse, muito sério:

- Tomei muito sol lá na laje.

Mordendo os lábios, Bella também apoiou-se no corrimão:

- É, eu também.

Sirius franziu ligeiramente o cenho. Dos confins de sua mente a voz de Andie surgiu e fê-lo dizer:

- Foi legal, né? Eu e você, nós, na laje...

Bella mordeu os lábios com mais força, a voz meiga de Andrômeda também soava em sua mente. Assentiu, balançando a cabeça. Podia sentir o calor que Sirius irradiava. Lá fora a tempestade, se possível, se agravou.

Explain all these controls
I can't sing but I've got soul
The goal is elevation

- Ah… Bella? – Sirius nunca se sentira intimidado, se é que já experimentara algo semelhante, diante de nenhuma garota.

- Hum? – Os cabelos escuros escondiam o rosto cheio de vergonha.

- Eu queria... Queria me desculpar por ter sido grosseiro com você. Não é sua culpa eles – apontou os quadros dos antepassados que cobriam as paredes – terem sido horríveis. Você não é como eles, você ainda pode escolher...

Digging up my soul
Now going down, excavation
I and I in the sky
You make me feel like I can fly
So high, elevation

Bella sentiu o chão sob seus pés desaparecer. Sirius estava tão próximo que nem o rugido da chuva a impedia de ouvir-lhe as batidas do coração. Murmurou baixinho, sem saber se estava pedindo para que se calasse ou chamando-o para si:

- Sirius...

Ele acariciou os cabelos dela:

- Estão molhados...

Bella sorriu:

- Eu estava tomando banho.

Sirius sorriu também, achou que Régulos era um cara de sorte. Bella virou o rosto lentamente, para encarar o primo. Os olhos escuros dele a engolfaram como um feitiço estuporante. Perigosamente próximos, como na laje...

Love, lift me out of these blues
Won't you tell me something true?

- É uma questão de escolha - Sirius acariciava os cabelos dela com as pontas dos dedos. Certo, já não se sentia mais tão intimidado - Agente é livre para escolher nossos caminhos, sabe?

Os lábios dela tremeram.

- Sirius, você sabe que não haverá mais volta se nos entregarmos a isso.

- Já escolhi o meu caminho, Bella.

E a beijou.

I believe in you

-Sirius...

Ele abriu os olhos, gostava desse novo modo dela lhe chamar: baixinho, num sussurro suave e sensual. Encarou Bellatrix, linda, os cabelos negros caindo pelo rosto.

- Hum?

Bella sorriu, de verdade. Naquela época ela sabia ainda como fazer isso.

- Nós estamos encrencados...

Ele fez uma cara totalmente de cafajeste:

- Tenho outro jeito de chamar o que agente fez...

Dessa vez ela gargalhou.

- Bobo! – e levantou do enorme sofá da sala principal, se espreguiçando. Sirius sentia-se demasiado preguiçoso para levantar, mas acompanhou com os olhos cada movimento de Bellatrix à procura da camisola. A prima era tão bonita, tão perfeita, que deveria andar sempre nua, para que todos pudessem admirá-la. Percebendo os olhos de Sirius a seguindo, Bella tocou a toalha, que acabara de encontrar, na cara dele. Rindo, Sirius foi até ela, sem se preocupar com a toalha e tentou impedi-la de vestir a camisola.

- Sai Sirius! – Bella tentava desvencilhar-se dos braços fortes do primo.

- Só se você falar sem rir!

Ela tentou ficar séria, mas era muito difícil o fazer com os dedos de Sirius afundando em seus quadris.

- Não dá! Você ‘tá fazendo cócegas! – E ria.

Sirius envolveu a cintura dela com os braços e a ergueu do chão.

- Ah! Não me deixa cair!

- Nunca!

Rindo, Bella fechou os olhos e sentiu os lábios de Sirius brincando perto de seu umbigo. A garota jogou a cabeça para trás e esticou os braços. Um movimento desajeitado e lá se foi um caríssimo vaso de cristal. No alto das escadas, uma porta rangeu de forma agourenta. A chuva tinha parado e a queda do vaso fora bem audível. A voz horrenda de Walburga ecoou pelos corredores:

- Quem está aí?

Não ouvindo nenhuma resposta, a matriarca concluiu que fora o vento e voltou para dentro de seu dormitório. Assim que a porta fechou, Bellatrix vestiu a camisola e correu escadas acima, não sem antes murmurar "Eu disse" ao primo. Depois de reencontrar a tolha, Sirius Black voltou para seu próprio quarto, o cérebro tão vazio que atirou-se na cama sem nem lembrar da água quente.

A mole, digging in a hole
Digging up my soul
Going down, excavation
I and I in the sky
You make me feel like I can fly
So high, elevation

Elevation...
Elevation...
Elevation...

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