O monstro de olhos verdes
Gina virou-se preguiçosamente para o lado. Por hábito, estendeu seu braço em busca do apoio costumeiro: o corpo de Harry. Com exceção dos dias em que ele viajava – ou daqueles em que brigaram –, tinha a mania quase instintiva de tocá-lo daquele modo como se quisesse se certificar que seu marido estava ali. Mas ele não estava! A mulher apoiou um cotovelo na cama e esticou a cabeça para procurar sinal do companheiro. Nada! “Será que já saiu?!” Conferiu o relógio. Deveria ter acordado meia hora atrás. Normalmente, estava desperta antes de Harry porque gostava de verificar primeiro se Sirius estava bem. Por que dormira tanto? Num segundo achou a razão. Deu um riso baixinho e divertido. A noite tinha sido ótima. Como fazia semanas não era. Gina abraçou seu travesseiro. Suspirou. Sim. Harry precisava de mais tempo para a família. Só assim para que todos fossem felizes. Fechou os olhos para relembrar alguns dos momentos que dividiram no quarto.
Ouviu o barulho da porta se abrindo, porém optou em fingir que continuava nas nuvens. Harry se aproximou com cautela. Caminhou em silêncio até perto dela. Olhou-a por instantes. Sacou a varinha e fez surgir uma bandeja sobre o criado-mudo. Em seguida, dirigiu-se até as cortinas, puxando-as com cuidado para abrir uma pequena fresta. O auror se surpreendeu ao girar o corpo e descobrir que a mulher estava desperta.
- Ah, você acordou – disse com um leve sorriso. – Trouxe seu café da manhã.
- Acordei muito tarde? – perguntou, erguendo metade do corpo e olhando com curiosidade para a bandeja. Havia suco, chá, torradas e frutas. E uma bela tulipa vermelha num vaso.
- Até que não. Humm, creio que você... precisava de... um descanso – comentou erguendo as sobrancelhas. Pareceu pensar um pouco e, na seqüência, falou: - Ahn, você me desculpa se ontem à noite eu fui um pouco...
- Um pouco? – Gina fingiu não saber do que se tratava, enquanto levava o suco aos lábios.
- ... bruto?
- Ah! – respondeu a ruiva, depositando o copo na bandeja. Balançou a cabeça levemente. – Não diria isso. Não houve... brutalidade, na verdadeira acepção da palavra. Afoito?
- Afoito? Nã – rebateu, divertido. – Isso me dá a entender que fui apressado... Acho que apressado não é o termo correto.
- É verdade. Foi quase o oposto disso. Não que tenha sido... aborrecido, sabe? – continuou brincando antes de comer uma uva e observar que Harry fazia uma careta engraçada, querendo rir. – Que tal se você dissesse que estava com... humm... vontade?
Harry não agüentou mais. Jogou-se na cama, abraçou a mulher e a beijou com carinho antes de soltá-la.
- Vontade é isso. Sempre tenho vontade de ficar com você – e tocou nos cabelos dela. – Gina, se já não deixei claro isso, vou reforçar. Eu lamento muito tudo o que aconteceu.
Ela piscou os olhos. Mordeu os lábios e também o abraçou.
- O que importa agora é que a gente voltou a se entender.
E ficaram quietos por um tempo. Abraçados. Precisavam disso. Um queria sentir que o outro estava por perto, a todo instante, a qualquer momento, sob a tempestade que viesse. Juntos.
*****
John Murphy encarava desanimado um pergaminho que estava preenchido pela metade. O auror tamborilou a mesa. Tinha de escrever ou Vada fecharia a cara de buldogue e o atormentaria até que finalmente o relatório fosse entregue. Lamentou pela segunda vez naquele dia – na véspera já o fizera uma porção de vezes – ter recorrido à maldição Imperius para controlar uma seita de bruxos amalucados que surgira na Irlanda. Seita a qual fora encarregado de vigiar para verificar se oferecia perigo. “Oh, por Merlin, por que Harry me deixou com isso?”, lastimava-se, lembrando que usara o feitiço proibido contra o líder do grupo porque ele teimava em incitar seus seguidores contra “os trouxas que queriam acabar com a magia no mundo”. Tinha sido uma decisão solitária. Não consultara ninguém. O tal líder emudecera, os fanáticos se calaram e ele pode levar todos para Azkaban. Pena que Vada o recebera aos gritos escandalizados perguntando se tinha sido ele, Murphy, que enlouquecera. Seus ouvidos ainda doíam ao recordar das palavras da secretária, que lhe empurrara nas mãos o dobro de papéis para preencher que costumava receber ao retornar de uma missão. O bruxo coçou a cabeça só de reviver as cenas da véspera. Como Vada fizera questão de ressaltar, era sabido até por criancinhas que as maldições imperdoáveis eram... imperdoáveis, tendo sido “liberadas” – e com muita cautela – durante o período em que Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado estava ativo. Murphy, que vivera na Índia até se transferir para sua terra natal após concluir o curso de auror em Bombaim, costumava dar pouca atenção a certas regras. “Não é minha culpa que na Índia algumas coisas são diferentes”, pensava, ao materializar uma xícara de café. Enfim, suspirou e pegou a pena para continuar descrevendo tudo o que se passara na Irlanda.
Nem bem tinha abaixado a cabeça quando ouviu passos familiares no corredor. Era bastante cedo para o departamento receber visitas. Mas sem dúvida alguém se dirigia para a sala. E pelo ruído dos “tocs, tocs, tocs” no piso só podia ser uma pessoa. Murphy se empertigou, com o sangue fluindo mais rapidamente pelas veias. Num segundo, a porta se abriu e uma mulher bonita entrou. Seus olhos verdes percorreram o ambiente e se surpreenderam ao dar de cara com o auror.
- Oi! Pensei que não ia encontrar ninguém aqui.
- Bom dia, senhorita Peterson – cumprimentou Murphy, aproximando-se para apertar-lhe a mão.
Pinsky deu a mão mecanicamente. Olhou ao redor. “Não tive uma noite muito boa. Por isso, vim aqui para encontrar minha tia e falar com ela. Sei que ela é sempre a primeira a chegar”. Murphy balançou a cabeça, concordando. Em seguida, justificou sua presença ali.
- Ah, maldição imperdoável é sempre um problema. Por isso, tem bruxo que utiliza um feitiço de camuflagem antes de recorrer a ela – murmurou a moça, com um ar penalizado. – Mas não se preocupe. Se quiser, falo com minha tia para que ela te dê mais um dia para concluir o seu relatório.
- Oh, faria isso, senhorita? – perguntou o auror, animado não somente com a perspectiva de ter mais algumas horas para escrever com calma o documento como também se entusiasmara com a oferta de ajuda vindo da mulher que adorava secretamente – ou que pelo menos ele imaginava que fosse um segredo bem camuflado.
- Por que não? Humm, se me der licença gostaria de me sentar um pouco e escrever uns recadinhos que preciso enviar... Vou adiantando meu trabalho assim.
- Quer se sentar na minha mesa? – ofereceu com gentileza.
- Não se incomode. Vou ocupar a mesa do Rony Weasley, que é esta aqui, não é? Pelo que me lembre, ele é um dos últimos a chegar...
- Ele ou o Harry. Bom, mas os dois são chefes. Eles podem – riu Murphy. – A mesa da sua tia também está...
- Por mil dragões, não! Tenho certeza que você conhece minha tia. Ela é muito ciumenta das coisas dela. Nem vou me arriscar a pegar um pergaminho dela. Pode deixar – sorriu enquanto se ajeitava na mesa de Rony e abria uma gaveta para pegar pena e tinteiro.
Por minutos trabalharam em silêncio. De vez em quando, Murphy a olhava de soslaio para admirá-la. Pinsky estava compenetrada. Escreveu um primeiro pergaminho e depois mais outro. A pena, mal apontada, começou a produzir borrões. Porém isso não a aborreceu. Abriu as gavetas de Rony em busca de um aparador. Numa delas, encontrou uma fotografia que mostrava o auror junto com a mulher, o filho, Harry, Gina e o sobrinho. Puxou a imagem e ficou admirando o grupo.
- Estava procurando um aparador de penas e achei esta foto. Que bonitos que eles são... – comentou com um ar distraído. – Creio que o departamento nunca teve um chefe tão... ahn... tão... agradável.
- É. Pode ser – respondeu Murphy, ligeiramente amuado. – Quer o meu aparador?
- Não precisa – sorriu Pinsky. E puxou sua varinha para apontá-la para o bico da pena, que imediatamente voltou a ficar fino. – Já dei um jeito.
Estiveram assim até que Vada surgiu. Abriu um largo sorriso ao ver a sobrinha e aprofundou uma ruga na testa ao observar que Murphy escrevia o relatório que ela solicitara que fosse entregue com urgência.
- Olá, Murphy. Espero que termine sua tarefa antes do almoço. Eu te disse. Quando se usa uma maldição imperdoável, o departamento de controle da magia fica doido e...
- Tia, podemos conversar um pouco?
Vada captou logo que a sobrinha estava preocupada com algo. Arrastou-a para sua mesa, que ficava bem na entrada da saleta de Harry. Passaram a conversar baixinho.
- O que você tem, minha querida? Ontem foi embora antes do expediente.
- Ah, já vieram te contar?! Que povo falador. Eu estou bem, tia. Só tive uma dor de cabeça que não me deixava em paz. Eu... – e ficou quieta, olhando para Vada, incerta se deveria abordar ou não o que martelava sua mente.
- Se não quiser falar, ok, mas não te darei sossego até descobrir.
- Não é nada, só que... Ontem, eu pedi que a Gina viesse me ver. Pedi que estivesse junto com a ministra nesta tarde porque uma comitiva chinesa está para chegar. Não é um grupo grande. Mas tem dois aurores. Daí, pensei que ela poderia ficar com os dois. Sabe, aurores gostam de trocar impressões sobre o trabalho, não é?!
- E o que isso tem a ver com essa sua carinha?
Pinksy mordeu os lábios.
- Gina recusou a oferta. Insisti e mostrei a mensagem que recebemos, com os nomes dos integrantes e tudo. Então, ela disse que havia duas pessoas ali que eram conhecidas do Rony e do Harry. Perguntei como, só que ela fez que não me ouviu. Ofereci de novo o trabalho e ainda acenei com a possibilidade de receber um pagamento extra. A Gina falou “obrigada, mas não quero”. Então, quando questionei o por quê disso, ela se virou para mim e falou, com raiva, para eu perguntar para o Harry.
- Foi com raiva mesmo?
- Tenho quase certeza que sim. Será que... será? – murmurou erguendo as sobrancelhas bem desenhadas.
Vada arregalou os olhos por um instante. Suas bochechas se inflaram. Soltou o ar ruidosamente, atraindo por instantes a atenção de Murphy, mas bastou um olhar zangado da secretária para o auror retomar seu trabalho.
- Querida, eu jamais, repito, jamais, dei a entender a quem quer que seja que você tem essa...
- Tia – suplicou Pinsky, receosa que Murphy pudesse ouvi-las.
- Estou falando baixo: que você tem essa paixonite pelo Harry.
- Mas... por que ela falaria comigo desse modo se não fosse por desconfiar...
- Pinsky, você nunca fez nada de errado! Até onde eu sei – resmungou Vada, semicerrando os olhos.
- Não! Claro que não. O Harry nem suspeita. Ele... não parece... Será? – emendou com uma nota de angústia na voz.
- É só você não bancar a deslumbrada. Outro dia por pouco você não se jogou nos braços dele.
- Que dia? – estranhou a jovem.
- Ah, a senhorita pode ter se esquecido, mas eu não! – disse, sacudindo o dedo indicador na frente da sobrinha. – Aquela história de ter medo de borboleta. Você se encolheu toda, correu para o Harry e ficou com aquela vozinha... “Harry, me ajude”.
- Que ridículo – Pinsky deixou escapar.
- Agora você acha ridículo. Espero não ver cenas como essa aconteceram de novo. Ou então Gina Weasley virá atrás de você. E com razão – bufou Vada. Na seqüência, porém, a secretária se amansou. – Minha querida, você sabe o que penso disso. Procure outra pessoa. Há tantos moços interessados em você. O Harry fez a escolha dele. E mesmo que ele não demonstre estar muito envolvido com o casamento, já que passa horas aqui, isso não quer dizer que ele vai se separar facilmente. Acredite em mim. Ele é maluco pelo filho! E nem adianta você tentar ser amiguinha do menino. Sirius é um garoto muito ligado à mãe. Pude comprovar no dia em que esteve aqui. Ele só falava nela!
Pinsky nada respondeu. Despediu-se da tia com um movimento da cabeça, abriu a gaveta de Rony e devolveu ao seu lugar a pena e o tinteiro. Depois, disse “tchau” a Murphy e foi embora, fazendo os saltos de seus sapatos finos ressoarem no assoalho do corredor.
*****
Rony cortava os legumes de seu prato em completo silêncio. Tinha aparatado em casa para almoçar fazia poucos minutos. Sentado a sua frente, James o observava curioso. Poucas vezes o vira tão quieto. Normalmente, ele gostava de fazer alguma brincadeira para ver se tirava o filho do sério. James, porém, era um menino muito bem comportado e freqüentemente quem acabava se aborrecendo era Hermione. “Você não o deixa comer direito”, reclamava.
Naquele momento, Hermione estava com Lilly que estava desperta e agitada. Rony mal tivera condições de dar um beijo na filha. A mulher correra a dar um banho na pequenina. “Ela quer se refrescar”, dissera, antes de se afastar do marido.
- Pai, você está doente?
- Não, não. Só estou pensando.
- Em quê?
- Hum?
- Em que você está pensando?
- Coisa de adultos. Coma suas ervilhas.
- Por que vocês sempre me mandam comer ervilhas quando não querem falar?
- Porque sua mãe sempre faz ervilhas – respondeu Rony, após um segundo em que se quedou admirando a sagacidade do filho.
Quando já estavam terminando a refeição, Hermione apareceu de volta, empurrando um carrinho de bebê.
- Ah, desculpe, Rony. Você sabe. Ela ainda é muito pequena e precisa de muita atenção nessa fase. Quer a sobremesa?
- Não, Mione. Almoce você. Eu cuido desta moça – respondeu, enquanto puxava a cadeira para perto do carrinho. – Muito bem, dona Lilly, é assim que será. Toda a atenção do mundo para você. Uma menina tão bonita merece isso.
- Não vai começar a estragá-la exagerando nos mimos, hein – observou Hermione. Tinha dito aquilo de pirraça. Adorava ver o marido tão dedicado aos filhos.
Após alguns minutos, Hermione deu-se conta do silêncio na mesa. James almoçava com calma. Rony não falava nada, exceto uns “oh, oh” que soltava quando Lilly resmungava. Olhou para o filho, que deu de ombros.
- Rony, alguma coisa errada?
- Hein?! Não. Por que estaria?
- Só estou estranhando o seu silêncio. Está preocupado com a investigação?
- Nã... errr, sim! Temos de resolver uns pontos nebulosos e o Harry me encarregou de uma parte deles.
- Sei. Você vai ficar ocupado com isso a tarde inteira? Quer uma ajuda minha? Por que não diz para o Harry que você vai ficar em casa e eu dou umas olhadas na papelada junto com você? Estou certa que ele vai entender.
- Ah, ele entenderia, sim. Hummm, mas não vai dar. Ahn, ainda bem que você puxou essa conversa porque eu preciso te contar um lance. Quando cheguei ao departamento, a Vada estava tendo gatinhos de tão agitada que estava. Tinha que resolver um problema. Ela queria usar o pó de flu e mergulhar a cabeçorra na lareira do Harry, mas não permiti. Eu sei que ele tentaria ter uma conversa esclarecedora com a Gina. E como ele se atrasou bastante hoje, imaginei que não seria uma boa a Vada aparecer lá. Então eu disse que eu resolveria o tal problema, qualquer que fosse ele.
- Fez bem, Rony. E o que era?
- Era só uma chatice da Charlotte. Nesta tarde vem uma comitiva de bruxos da China. E ela queria um auror presente na hora em que o grupo chegasse. Só porque dois aurores estariam lá. Daí a Vada falou que o Harry os conhecia e que, por isso, o ideal seria que ele fosse já que a Gina dispensou a tarefa. Respondi que tudo bem, eu iria!
- Isso que está te deixando assim quieto? – estranhou.
- Para ser honesto, eu estava preocupado com a sua reação quando souber quem são os aurores.
- Como?
- Esta tarde eu devo encontrar o Jin e a Mei.
Hermione não teve reação de cara. Seu cérebro transmitiu a mensagem instantaneamente para seu coração. Mei. Lembrou-se da vez que tinham recebido uma coruja enviada pela garota chinesa, desculpando-se por não poder comparecer ao casamento. E recordava-se também da lamentável cena de ciúmes que protagonizara na ocasião.
- Hmpf. E o que tem demais? Faz muito tempo que você foi discípulo de Mestre Lao.
- Eu sei. Só daquela vez, quando a gente recebeu a mensagem...
- Isso também faz muito tempo – cortou Hermione. – Já tinha me esquecido.
- Eu não – murmurou Rony, limpando a boquinha de Lilly que tinha regurgitado um pouco de leite.
- Você achou, por acaso, que eu teria um ataque de ciúme? – perguntou com o cenho franzido e afastando Rony do carrinho para pegar a filha no colo. – Ah, Lilly, seu pai não sabe te limpar direito.
- Eu limpei – protestou o auror, porém sem muita energia.
- Francamente, Ronald Weasley, você está enxergando olhos verdes em mim? – zombou Hermione, ajeitando a menina nos braços para que a cabeça dela se apoiasse em seus ombros.
- Não entendi.
- Uma expressão trouxa, Rony! Se você lesse mais livros trouxas, conheceria um monte delas. Dizem que o ciúme é um monstro de olhos verdes – impacientou-se. – E está muito claro que eu não tenho olhos verdes! – acrescentou, dando leves tapinhas nas costas da filha.
- Olha, eu não quis dizer nada, não. Só não sabia o que você iria pensar...
- Pensar o quê? Você é um homem casado, pai de duas crianças... E quer saber? Tem cara de homem casado e pai de duas crianças. Não é mais nenhum galã.
Rony ficou de pé. Por um minuto, mirou-se na porta de vidro de um armário tentando ver sua imagem refletida. Desistiu.
- Você deve estar certa. Bom, eu vou agora. Tenho ainda um tempo para analisar a papelada dos Dietrich antes de me reunir com a Charlotte. Até a noite, Mione – e se aproximou para dar um beijo na mulher. Ela, no entanto, tinha acabado de receber uma golfada de leite no colo.
- Lilly!
- Era isso que estava incomodando a menina. Ela deve ter se fartado de leite. Não adianta forçar a Lilly a mamar desse jeito – murmurou, numa tentativa de fazer piada.
- Forçar? O que você entende de amamentação?! – bronqueou Hermione, rubra.
- Tá bom, tá bom. Não está mais aqui quem falou – assustou-se Rony, que desaparatou ali mesmo, na cozinha.
Hermione limpou a sujeira em dois segundos. Lilly, aliviada do que a incomodava, finalmente sossegou no carrinho. E James, que fazia tempos, terminara sua sobremesa, olhava a mãe com a mesma curiosidade com que encarara o pai no início do almoço.
- Mãe, você está doente?
- Por quê? – perguntou com um tom de ligeira irritação.
- Porque seus olhos estão molhados.
- Não estão, não – teimou Hermione, e virou o rosto para que o filho não visse as lágrimas escorrendo. “Controle-se! Como você pode ter tantos ciúmes de alguém que nem conhece?!” Disfarçadamente, puxou um lenço e secou os olhos. Mirou para o teto, respirou profundamente e se endireitou na cadeira. – Estava boa a sobremesa?
James fez que sim com a cabeça. E ficou feliz de o almoço ter terminado. Caso contrário, também sua mãe o mandaria comer as ervilhas para fingir que nada se passara.
*****
Harry surgiu sem fazer alarde diante de um portão de madeira de tranca simples. Olhou ao redor. Havia uma vegetação densa. E, encostado numa árvore, aproveitando cada centímetro da sombra, estava Werner Schmidt, com sua inseparável maleta. O alemão puxou um lenço do bolso e enxugou gotas invisíveis de suor.
- Olá, Schmidt. Obrigado por ter enviado a coruja! Eu não imaginava que você conseguiria tão rapidamente a anuência de fräulein Dietrich para fazermos uma visitinha à casa do irmão.
- Não foi fácil, herr Potter. Não foi fácil – disse o homem de ralos cabelos louros. – Agora, entremos. Não gosto muito de casas isoladas no meio do mato. Olhe a poeira que se levanta.
- Poeira, Schmidt? Isso é só um pouquinho de terra carregada por vento. Isto aqui é a natureza – sorriu o auror. – Sabe, você é um tipo bastante peculiar.
Schmidt ajeitou melhor a alça da maleta que atravessava seu tronco. Adiantou-se e abriu o portão. Caminhou à frente de Harry segurando um pergaminho lacrado na mão. Depois de avançarem por um jardim em que as plantas cresciam desordenadamente, chegaram a uma casa de aspecto rudimentar. “Não se pode negar: os Dietrich tinham um estilo, o mais sem graça possível”, comentou o auror para si. O bruxo alemão bateu com os nós dos dedos numa porta de madeira escura. Levou um minuto para que alguém abrisse. Era um elfo muito velho e encarquilhado. Ele lançou um olhar muito feio para a dupla de estranhos. Schmidt estendeu-lhe o pergaminho, que foi aberto com um resmungo.
- Viemos aqui cumprindo uma determinação do Ministério da Magia. Pode ver que temos autorização da tia do seu senhor.
O elfo despejou uma série de exclamações quase ininteligíveis. Todas em alemão. Schmidt apertou os lábios fortemente e seu rosto se cobriu de tons vermelhos. Não se conteve. E, em seu idioma, passou um sabão no elfo. Harry, às suas costas, gargalhou.
- Herr Potter, não deveria rir. Se soubesse o que ele disse... – retrucou em inglês.
- Sossegue, Schmidt. Eu entendi. Tenho um sotaque horrível, mas até que sou bem razoável em alemão. Viver com herr Gutmann foi uma ótima escola. De vez em quando, ele deixava escapar coisas assim. Principalmente quando a carne queimava ou quando descobria que tinha acabado a cerveja trouxa – e mudou o tom de voz. Agora, tinha um toque entristecido. Recordou-se do velho amigo com saudades. – Ele era um bom gourmet.
O bruxo alemão pareceu não se importar. Observava a casa sem demonstrar curiosidade. Schmidt tinha sacado um bloquinho para fazer anotações.
- O que faremos?
Não tinha a menor noção de como deveria ser uma investigação.
Harry suspirou. Chamou o elfo e começou a interrogá-lo. A criatura mal abria a boca. Quando o fazia, limitava-se a dizer “sim”, “não”, “não sei”. Mas trouxe todos os documentos solicitados pelo auror.
- Tem certeza que não há maneira de chamar o seu senhor?
- Sim.
- E se acontecer uma emergência?
- Tenho ordens de procurar fräulein.
- Como sabe que ele está vivo? Seu senhor pode ter morrido de uma doença, um acidente?
- Eu saberia.
- Como?
- Pressentimento.
- Seu pressentimento pode me dizer se é possível enviar um recado para ele?
- Meu senhor disse que precisava descansar longe de tudo e de todos. E assim será. Ninguém irá importuná-lo.
- Meu palpite é que você sabe onde ele está, porém não quer me dizer.
- Não estou mentindo, herr Potter. Meu senhor está inencontrável.
- Oh, obrigado. A primeira informação útil do dia – disse, revirando os papéis e fotos que estavam na mesa.
- Qual? – perguntou Schmidt, com a pena a postos para anotá-la. – É algo excepcional assim estar inencontrável?
- Meu amigo, quantos bruxos você conhece que já recorreram a essa magia? Nenhum, não é?! – respondeu Harry, um tanto zombeteiro pois sabia que Schmidt estava diante de alguém que realizara o encantamento, embora o alemão nem desconfiasse disso. – É porque esse feitiço é de execução muito difícil. Não é para qualquer um. Se Styx Dietrich está inencontrável, isso só reforça o que sua tia dizia. O cara realmente é muito bom.
- Tenho a impressão que tem mais alguma coisa aí – arriscou Schmidt, sem obter resposta.
De fato. Harry sabia que, por ter utilizado tal feitiço, Styx tinha algo a esconder. A experiência lhe dizia isso. Ninguém aprendia do nada a se tornar inencontrável. Era magia para poucos.
*****
Rony estava assobiando quando Pinsky o chamou para entrar na sala da ministra. Queria dar a impressão de que estava despreocupado. A verdade, porém, é que se sentia estranho ante o eminente encontro que teria com a mulher que um dia fora apaixonada por ele. Tinha consciência que não era a primeira vez que se via nessa situação. Com Luna Lovegood, com quem tivera um affair nos tempos de Hogwarts, não experimentara tal sensação. Até porque nunca tinha se envolvido profundamente com a garota. Sabia que também não tivera nada demais com Mei. Mas sua memória insistia em dizer-lhe que admitira para a moça chinesa que, se já não houvesse alguém em seu coração – Hermione! -, ele teria se envolvido com a jovem naqueles distantes dias em que morara na casa de mestre Lao.
- Olá, Rony. Como está sua filhinha? – perguntou Charlotte, ainda sentada atrás de sua mesa. – Harry me contou como ela é bonita. Já escolheram uma madrinha para ela?
- Ah, sim. A Mione quer que a professora Minerva seja a madrinha.
- Minerva? Hummm – desinteressou-se a ministra, puxando um pergaminho. – Diga-me, rapaz, conhece mesmo estes dois aurores?
- Jin e Mei? Sim. Fiz meus preparativos para ser auror com sir McKinley e ele me levou a passar um tempo com um velho amigo, mestre Lao, que foi o orientador dos dois.
- Acha que eles são do tipo de gente que se aborrece com qualquer coisa? Sabe, tem essa briguinha entre os dois ministérios, o americano e o chinês...
- Eles são tranqüilos, ministra.
- Muito bem. Quero que você se encarregue dele enquanto converso com a chefe da comitiva. O ministro deles ficou lá, mas mandou um manda-chuva de saias para cá – comentou, azeda. – Até foi melhor que a Gina não tenha se acertado com a Pinsky. Afinal, você conhece os dois. Oh, por Merlin, teria sido bom também que Harry viesse.
- Ele está numa missão, ministra, como a senhora foi informada.
- Eu sei, eu sei... Essa história de arca já está começando a me aborrecer. Ele tem de passar tanto tempo nessas viagens para a Alemanha?
Rony não teve tempo de explicar para a ministra que, sim, Harry tinha de viajar para a Alemanha sempre que a investigação exigisse. Pinsky bateu à porta e entrou na seqüência, anunciando que os visitantes tinham acabado de dar entrada no prédio. Havia um espelho na sala em que Charlotte se mirou por um instante antes de se instalar em sua poltrona preferida, junto à mesinha do café. Rony, discretamente, também se olhou. Notou que a camisa estava quase escapulindo da calça. Tratou de se arrumar. E de repente percebeu que estava com as mangas arregaçadas. Atrapalhado, pegou a varinha e deu um jeito de ficar em ordem. Assim que terminou, viu que a ministra o analisava.
- Você gosta mesmo de cabelos compridos, Rony? Isso ficaria mais adequado se você fosse das Esquisitonas, nos bons tempos da banda.
- Humm, pensei que não estivessem tão compridos assim... – afirmou, tocando nos fios que batiam em seu pescoço. – Bom, não é uma cabeleira digna das Esquisitonas.
- Ainda, Rony. Ainda – emendou Charlotte, mandando que abrissem a porta porque uma figura num dos quadros saíra da ante-sala e fora até uma tela de paisagem que decorava a sala para dizer que os chineses estavam esperando.
Surgiu um grupo de bruxos do departamento de relações exteriores. Eles acompanhavam uma mulher sisuda e de cabelos grisalhos. Usava uma veste tradicional, com alguns bordados. Atrás dela vinha um homem baixinho e magro e de barbicha. Junto com ele outra mulher, um pouco mais jovem, mas não muito. Ambos trajavam paletós cinzentos, como se estivessem uniformizados. Dois homens, também com roupas formais, vieram em seguida, carregando alguns embrulhos nos braços. “E é um grupo pequeno”, pensou Rony, com vontade de rir. Súbito, mudou de humor. Uma moça de longos cabelos negros, que formavam uma cortina de seda em seu rosto, avançou com passos suaves. Os olhos escuros dela se voltaram na direção do auror ruivo. E de seus lábios brotou um sorriso que conferiu uma nova luz à face delicada.
Rony a saudou com um sorriso também. Admirou o perfil esguio da jovem. Era mais alta do que Hermione. E um pouco mais magra. Causava uma impressão de fragilidade, como se fosse uma flor de papel. Trajava vestes brancas. Um cinto preto com detalhes em vermelho sustentava o estojo de uma espada. Era uma imagem tão bela que deixava extasiados alguns dos bruxos ingleses que estavam na sala. Um a um, os membros da comitiva cumprimentaram a ministra. E o auror que estava ao lado dela. Quando Mei estendeu sua mão, ele se endireitou.
- Faz tempo, hein?! – disse meio risonho.
- Muito, Rony. E você continua o mesmo. Não. Creio que está até melhor. Que acha, Jin?
Foi aí que ele percebeu o velho amigo das montanhas. Também ostentava cabelos compridos, presos num rabo de cavalo. Estava elegantíssimo, com vestes negras e um cinto prateado.
- Está ótimo! Como vai, irmão? – sorriu o jovem.
- Não melhor do que você. Nossa, é a última moda na China? – brincou.
Abraçaram-se. Bruxos chineses e ingleses se entreolharam. A ministra virou para a chefe da comitiva para comentar que eles já se conheciam. A mulher fez que sim. Ela também sabia dos laços de amizades entre os aurores. Em seguida, ambas começaram a conversar e todos ficaram a postos, prontos para fazer um aparte ou apenas para ouvir o que tinham a dizer. Os três aurores se afastaram gentilmente e se colocaram mais para trás, onde ficaram cochichando disfarçadamente. Tinham muitas coisas para contar. “Então, você é pai?”, inquiriu Jin. “De duas crianças. Minha filha nasceu há poucos dias. Vocês precisam ver como é linda... Err, puxou a mãe, exceto pela cor dos cabelos”, riu. “Se tem algo de você, certamente é uma criança abençoada”, murmurou Mei, que após essa frase andou para outro lado, como se estivesse cumprindo sua função de guardiã. “E vocês, não têm planos de ter filhos?”, perguntou Rony, bem baixinho. Jin fez uma cara desanimada. “Não é tão fácil quanto imaginávamos”, suspirou.
Quando a reunião atingia o seu final, a porta se abriu para dar passagem a Harry. A surpresa tomou conta de todos.
- Oh, desculpem-me. Eu... Ahn, prazer. Meu nome é Harry Potter. Sou o chefe dos aurores.
Pinsky deslizou rapidamente do canto onde se encontrava e se aproximou do bruxo. “Harry, como foi que você entrou? Não havia ninguém na recepção”, cochichou entre um aperto de mão e outro. “Não. Acho que o seu ajudante de ordens deve ter dado um pulo no banheiro. Mas não tem problema. Aqui estão três grandes aurores”, respondeu num sussurro assim que cumprimentou um dos chineses.
- Harry, que bom que veio. Eu sabia que podia contar com vocês. Fique para jantar conosco. Acabei de convidá-los para irem até minha casa.
- Humm, lamento, mas terei de abrir mão desse encantador convite. Senhores, peço a licença de me darem alguns minutinhos para trocar palavras com os aurores. Acabei de chegar de uma missão fora e terei de partir para outro compromisso...
A chefe da comitiva chinesa fez um “ahhhh” de desapontamento. “Você é um bruxo muito famoso, senhor Potter”, disse num inglês perfeito.
- Obrigado, madame. Pelo que vi, vocês vão ficar alguns dias em Londres, não é?! Se aceitarem um convite meu para almoçar, pedirei para que a secretária do meu departamento acerte as agendas com o pessoal de vocês. Perdão mais uma vez. Prometo que tomarei pouco tempo de seus aurores. Até a próxima.
Harry fez sinal para que os aurores o seguissem até a ante-sala. Espantada, Pinsky foi atrás dele.
- O que houve?
Sua pergunta, no entanto, morreu no ar. O auror abraçou demoradamente Jin e Mei. Trocaram elogios e deram risadas. Harry quis saber de mestre Lao. “Continua nas montanhas. Já está bem velho, só que não arreda o pé de lá. Sempre diz quando sua hora chegar quer estar no lugar que ama”, contou o rapaz chinês. Pinsky os observava com os olhos verdes arregalados.
- Escute aqui, cara, do jeito que você apareceu, pensei que tivesse alguma novidade das boas... – começou Rony.
- Ah, não. Quer dizer, tenho de te repassar o que apurei. Aliás, Jin e Mei, quero o palpite de vocês. Venham jantar na minha casa amanhã, por favor.
- Jantar? – espantou-se Rony.
- Na sua casa? – continuou Pinsky.
Mei olhou para ela com curiosidade.
- Ah, perdão... Não quis ser intrometida. É que a ministra sempre conta com o Harry para os dias em que recebe visitas internacionais – respondeu, disfarçando o embaraço. – E eu acabo conferindo a agenda. Só para acertar com a da ministra.
Harry pousou uma mão sobre o ombro dela para tranqüilizá-la.
- Sem problemas, Pinsky. Anote aí que não estarei disponível nem hoje, nem amanhã.
- E onde é que você vai hoje? – cortou o cunhado.
- Para casa! Prometi a Gina que jantaria com ela esta noite. Nem que o mundo viesse abaixo.
- Ahhhh – replicou Rony, entendendo o que tinha acontecido entre o casal. Então, riu. – Muito bem, chefe. Pode deixar que eu conto os acontecimentos para o Jin e a Mei assim que estiverem liberados. Pelo menos, contarei o que sei até o momento. Ei, você pode fazer um favor para mim? Peça para a Vada avisar a Mione que vou demorar.
Enquanto Harry se despedia dos amigos, ocorreu-lhe que poderia solicitar para a própria Pinsky que desse o recado para Vada.
- Faz isso por mim, Pinsky? Se eu tiver que ir para a minha sala, sua tia vai me empurrar um monte de papéis para assinar. E definitivamente eu tenho algo mais importante a fazer – e sorriu. – Não conte essa parte final para a Vada, hein?!
E deixou a ante-sala da ministra sem perceber que Pinsky piscava os olhos verdes, num visível sinal de que estava agitada por dentro.
Demorei. Sorry! No próximo capítulo, Hermione finalmente encontra Mei. Que dizem? O monstro de olhos verdes vai atacar? (rs) Mais uma vez, obrigada pela paciência. E pelos comentários. Bjs, K.
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