Presente de Aniversário



10 de Março de 2000.


Seu corpo reclamava das longas semanas de inatividade. A mente, sempre tão ativa, dava mostras de querer variar um pouco os assuntos do último mês: Remus morto, saudade e dor; e raiva mortal de Severus Snape. Por isso, nos últimos três dias, Tonks vinha se aventurando pela casa, vagando ainda meio sem rumo pelos ambientes em que havia crescido, como que se resolvendo se era possível se interessar outra vez pela vida.

Ela se sentia cansada e esgotada, como quando se corre por muitas milhas até que as pernas fiquem dormentes. Ela toda se sentia assim, dormente, insensível a tudo o que não se referisse à sua dor maior. Pensou sem muita esperança se não existiria algum elixir relaxante para mente e coração. Oh, pois ela pensava nele agora. Uma vez aberta a comporta, não havia como voltar. Todas as emoções represadas desabaram sobre ela, afogando-a, levando-a pra longe, muito longe... e agora ela tentava nadar de volta para a terra firme.

Pálidos raios de sol atravessavam as cortinas cor de vinho e lhe aqueciam os pés nus. Era tão estranho pensar que em breve a primavera chegaria; e que lá fora haveria botões de flores nascendo sob a neve, filhotes de pássaros nos ninhos... a vida começando outra vez, enfim.

Haveria vida também para ela?

Tonks suspirou e farejou um levíssimo aroma de biscoitos recém-assados vindo do andar de baixo. Seu estômago roncou, lembrando-lhe dolorosamente de que não havia sido alimentado nas últimas dezesseis horas.

_ Por enquanto, os biscoitos vão ser meu objetivo de vida _ havia sido um pensamento tão banal e idiota mas sem saber porquê, lá estava ela de repente sorrindo. Ela sentiu o sorriso a aquecendo por dentro como se fosse mais um raiozinho de sol... que logo se apagou. Biscoitos não eram um objetivo muito nobre, afinal. Mas ela precisava comer de qualquer forma. Seus pés pisaram o macio tapete verde ornamentado com pequenas flores. As mãos seguraram o corrimão de madeira polida. Ela tocava, experimentava... como era se sentir real outra vez, depois de quase um ano inteiro vendo o mundo pelos olhos de uma estranha.

Mas Tonks ainda não havia se decidido qual das duas vidas era melhor. Ela se sentia fraca e frágil; como se a menor brisa a pudesse derrubar. O cabelo castanho-escuro caía opaco e sem vida pelos ombros, em mechas irregulares. O rosto estava abatido e ainda mais pálido; e enormes olheiras lhe adornavam os olhos, a despeito de todas as horas passadas na cama.

Ela sacudiu a cabeça. Sentir pena de si mesma nunca havia sido uma característica sua. E não seria agora que se tornaria.

A cozinha. Ainda a mesma, com seu piso de pedra esbranquiçada com pequenos veios coloridos, os móveis alternando madeira escura e tons alaranjados. Estava silenciosa e vazia. Ela enxergou a assadeira sobre a mesa e para lá se dirigiu, apanhando em cima da mesa um pergaminho assinado pela mãe. Tonks, então, se sentou, escolheu um biscoito bem assado e começou a mordiscá-lo com calma, experimentando, mais uma vez, a vida. Distraidamente ela leu o bilhete: Andrômeda precisara ir até o Beco Diagonal; estaria de volta para o almoço, trazendo comida tailandesa. E que ela não comesse todos os biscoitos!

Tonks deixou o bilhete de lado e percorreu a mesa com os olhos: biscoitos, torradas, geléia de laranja, ovos com bacon e chá, os últimos mantidos quentinhos por um dos famosos feitiços domésticos da mãe. Mas ela não se sentia com muito apetite. Apoiou o queixo nas mãos e se perguntava o que faria em seguida, quando seus olhos caíram sobre o Profeta Diário daquela manhã, largado de qualquer jeito sobre a mesa. Ela sorriu outra vez, aquilo era coisa do pai. Há quanto tempo ela não lia um jornal... parecia algo tão prosaico e distante de seu dia-a-dia habitual... Ainda indiferente, ela passou os olhos pelas notícias. Agora que a guerra estava terminada, voltaram as velhas notícias tendenciosas, boatos e fofocas de sempre. "Esquema de Corrupção Durante Governo de Cornélio Fudge Vem à Tona". Ela deu de ombros; era mesmo bem-feito praquele velho ganancioso e sedento de poder. "Termina o Casamento de Donaghan Tremlett". Ela deu de ombros outra vez, notando como era estranho ter perdido noites e noites de sono adolescente por esse mesmo homem, o baixista das Esquisitonas, e agora não sentir absolutamente nada.

Ela dobrou o jornal, pretendendo colocá-lo de volta no lugar. Foi quando notou a data, impressa em letras bem pequenas no alto da página. O ar lhe faltou como se houvesse levado um soco no estômago. Ela tapou a boca com as mãos enquanto os pensamentos giravam loucamente em sua cabeça; e o mundo subitamente saía de foco. Dez de março. O dia em que ele deveria estar completando quarenta anos. Duas lágrimas quentes e grossas escorreram-lhe pela face. Aniversário dele. E agora? No último ano, tempos difíceis, ela havia dado-lhe um suéter azul-acinzentado, um sobretudo novo de tweed e uma inesquecível noite de amor. E agora? O que ela lhe daria?

Por longos minutos ela pensou se o presente ideal não seria uma passagem de ida... para o mesmo lugar onde Remus estivesse. A lembrança causava-lhe mais uma vez uma dor quase impossível de suportar. Ela piscou os olhos outra vez, fazendo as lágrimas pararem. Que pensamento ridículo fora aquele? Estava tão, tão cansada daquilo tudo... viver soterrada pelas emoções... queria voltar a ser dona de si mesma.

_ Ah, droga.

Tonks tentou esvaziar a mente, mas o desejo de dar algo a Remus Lupin persistia.

_ Mas o quê, Merlin? O quê?

Ela começou a relembrar a vida de seu amor à procura de uma resposta. Não doía mais tanto assim, ou talvez ela estivesse se acostumando com a dor; e logo seus pensamentos se voltaram para aquilo que mais a atraía nele: suas contradições. Homem e fera. Compreensão e teimosia. Inteligência e fragilidade. Docilidade e força.

Ela suspirou e deixou a mente vaguear livre pelas lembranças; e então, ela se fixou no último pensamento racional. Oh, céus. Forte. Como Remus havia sido forte... realmente... muito mais forte do que qualquer outra pessoa que ela houvesse conhecido, embora não o parecesse à primeira vista. E num piscar de olhos, as peças foram se encaixando e a inspiração começou a brotar dentro dela.

Forte. Remus havia sido mordido. Perdido o pai. Os dois melhores amigos. Vira o terceiro melhor amigo trair a todos. Havia sido escorraçado de lugares sem fim; e lhe haviam sido negadas chances acessíveis a qualquer bruxo que possuísse menos de um décimo de toda capacidade e inteligência que ele, Remus, possuía. E o que ele havia feito? Se entregado à derrota, como ela estava fazendo agora? Ele se recusara a viver, por algum acaso? Ela sorriu orgulhosa. Não. Ele havia ido em frente, sempre em frente, sempre humano, sem guardar rancor de quem quer que fosse, sempre com um sorriso nos lábios. Por mais machucado que estivesse por dentro, ele jamais havia se recusado a lutar. Seria vergonhoso e indigno ela continuar naquele estado.

Tonks sentiu alguma coisa quente a preenchendo, a partir do coração, e então se espalhando até os dedos dos pés. Era aquilo. O presente que ela daria a seu grande amor seria agir exatamente como ele sempre havia sido.

_ Rancor à parte, é claro _ ela se lembrou, amarga. Mas agora isso não importava. Seu coração batia rápido, os olhos viam tudo novo e o estômago roncava mais do que nunca. Puxando para si um prato, ela se pôs a comer. Iria precisar de muita energia a partir daquele instante.

*

Severus Snape estava curvado sobre seu prato de sopa, sorvendo o líquido quente de forma elegante, sem produzir um único ruído.

Os últimos dias haviam sido uma seqüência indefinível de tons cinzentos e pesados; de fato, apesar de frio por fora, a tempestade rugia dentro dele. Que idiota havia sido ao ir procurá-la. Nunca havia tido sorte com mulheres, não seria agora que isso ia mudar. Mais cedo ou mais tarde as coisas sempre davam errado. Mas que se danasse essa lamentação toda. Não iria mais procurá-la, pelo menos não por enquanto. Havia sido um erro, ela tinha ficado ainda pior e precisava, agora, de todo o espaço possível para se recuperar. Por mais que doesse admitir, ele agora fazia mal a Tonks; mas, estranhamente, isso fazia sentido e o deixava satisfeito.

Privado de cor, ele havia se tornado mais soturno e rabugento do que nunca, os olhos fitando o pôr-do-sol sem o apreciar; e Snape nem ao menos havia notado a ausência da professora substituta a seu lado. Depois da sopa, ele colocou sem muito entusiasmo um pedaço de torta em seu prato; e ficou remexendo o recheio de carne com um garfo. Brincar com comida era uma tolice sem tamanho mas ele não sentia um pingo de apetite. Talvez devesse voltar para as masmorras e corrigir alguns deveres enquanto Potter não descia para a detenção. Era realmente uma boa idéia, ele poderia, se conseguisse, adiantar o...

Snape ergueu os olhos numa súbita inspiração. Seu coração vacilou. Ele piscou uma, duas vezes para se certificar. Mas não havia erro. Era mesmo ela, caminhando pelo Salão Principal em passos decididos, o queixo erguido, o sobretudo vinho esvoaçando atrás de si. Ela sorriu ao passar pelo trio e aquele sorriso... oh céus, era o sorriso *dela*. O real, o verdadeiro, aquele que deixava os olhos negros um tantinho apertados e fazia surgir uma covinha de cada lado do rosto. Em algum momento *ele* havia começado a sorrir também, porque agora ela trazia os cabelos cor-de-rosa e espetados que ele sempre havia odiado.

A visão varreu com força espantosa todas aquelas resoluções frouxas; e ele sentiu estranhíssimos ímpetos de ficar de pé, correr até ela e tomá-la em seus braços. Mas bastou um olhar dela, breve e gélido, para que ele congelasse na cadeira, sentindo explodir dentro de si uma mistura de frustração, saudade, confusão, vontades e desprezo. Quando Tonks se curvou sobre o Weasley, sussurrou algo no ouvido dele e deu-lhe um estalado beijo na bochecha em seguida, a poção que fervia dentro dele ficou completa: a devida dose de ciúmes havia sido corretamente adicionada.

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Um dia atrasado (é dia 9), mas: parabéns, Snape! Já deu os parabéns pro nosso morceguinho preferido? Espero que sim. Ele está precisando de um pouco de calor humano depois dessas semanas difíceis. Agora que o bicho vai pegar ;)

Adoro vocês, Morgana (atualiza, menina!), Maria Cláudia (mais SS/N, whee! =D), Carina Snape, Vanessa e Lady Gray. E se vocês estão gostando desse casal, Snape/Tonks, vão agora mesmo ler a fic da Maria Cláudia, Sussurros ;)

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