O Vale das Sombras
Capítulo 6 – O Vale das Sombras
Harry estava sentado numa confortável poltrona de couro marrom, ao lado do amigo Rony Weasley, no centro da sala de estar da Sra. Morgan. Ao seu lado, soluçando convulsivamente encostada em seu ombro, estava a amiga Hermione Granger, que parecia não acreditar no que seus olhos viam. O rapaz de cabelos vermelho-fogo que conhecera há seis anos jazia sem vida sobre uma mesa no centro da sala.
Harry ainda se lembrava da cena terrível que acontecera fazia poucos minutos, a trezentos metros da mansão, perto do bosque escuro no final da estrada de pedras gastas. Tudo fora tão rápido que Harry mal tivera tempo de reagir. O bosque, sem aviso, transformara-se numa floresta negra e escura bem diante dos olhos deles. De dentro dela, um enorme cão negro, vindo da escuridão em meio às árvores, investira contra eles e atingira o amigo Rony, que não conseguira se proteger a tempo do ataque.
O mais incrível, pensou Harry, que tentava em vão aceitar a terrível desgraça que acabara de se abater sobre o outrora pacífico grupo, era que o amigo não apresentava nenhuma marca do ataque. Não fora ferido, as patas ameaçadoras do lobo não tinham rasgado sua pele, nem a terrível mandíbula havia tocado o seu corpo. Não havia sangue, não havia ferimentos. O amigo apenas caíra imóvel e sem vida ao lado de Harry, inexplicavelmente.
Não sabia quanto tempo ficara ali, agarrado ao corpo sem vida do amigo e ouvindo a gargalhada macabra do cão diminuir e desaparecer à distância, até perceber que Lothian ainda estava caído ao chão, paralisado pelo feitiço que Harry havia lhe lançado, com um brilho de terror nos olhos que Harry jamais vira nele. Sacando a varinha de seu bolso e balbuciando as palavras para desfazer o encantamento que o aprisionava, libertou o bruxo de seu estado de paralisia e voltou a abraçar o amigo, como se pudesse desta forma fazê-lo acordar. Depois de mais alguns minutos nesta posição, Lothian aproximara-se devagar dos dois e ajoelhara-se ao lado de Harry, pondo a mão em seu ombro.
– Harry – dissera com a voz embargada, e o rapaz se espantou em ver que Lothian também se emocionara com o que acontecera a Rony – devemos levá-lo à mãe dele. Não podemos deixá-lo aqui.
Com um gesto de varinha, Lothian fizera surgir ao lado de Rony uma maca que flutuava no ar, e com a ajuda de Harry colocara o corpo do amigo sobre ela, cuidadosamente. Usando a varinha para direcionar a maca, os dois bruxos seguiram o caminho de volta até o casarão, sem trocar uma palavra um com o outro.
Conforme se aproximara do casarão, Harry ouvira os risos agradáveis de Hermione e Gina, que conversavam sentadas em volta da mesa de vidro onde estavam os livros de Hermione. O rapaz se lembrou, com um aperto no coração, do sorriso alegre das garotar se transformarem lentamente numa expressão de terror, assim que os viram chegar. Gina viera desesperada, em auxílio do irmão, gritando o seu nome. Assim que se aproximou da maca e viu a expressão de terror nos olhos sem foco do amigo na maca, Hermione desmaiara. A emoção de ver o amigo sem vida fora demais para seu coração.
Agora estavam ali, velando o corpo do amigo na sala de estar da Sra. Morgan. Arthur e Carlinhos Weasley tinham voltado imediatamente da missão que foram designados assim que souberam o que havia acontecido, e agora estavam ao lado de uma arrasada Sra. Weasley, que parecia ter morrido ao lado do filho. Segurava a sua mão fria, com um olhar tão triste que Harry sentiu um aperto no coração só de olhar para o rosto dela.
Os outros irmãos Weasley já estavam a caminho, também, em virtude do acontecido. Fred e Jorge estavam fora do país viajando a trabalho e não puderam ser encontrados, tinham conseguido entrar em contato com Percy, mas ele não havia ainda respondido à coruja que o pai havia lhe enviado. Gui estava participando de um treinamento em Gringotes, e não poderia vir até o dia seguinte.
Além dos Weasley, estavam ali também Lupin e Tonks, que haviam voltado ao casarão junto com Arthur, deixando de lado a missão por ordem de Dumbledore. Ambos também estavam ali, ao lado dos rapazes, em silêncio mas visivelmente emocionados com a cena.
Num dado momento, Arthur Weasley levantou-se do lado da esposa e puxou um banquinho para sentar-se de frente para Harry. Seus olhos estavam vermelhos, sua expressão cansada e triste, mas ele reuniu toda a força que tinha e encarou Harry nos olhos.
– Harry, eu preciso saber exatamente o que aconteceu com vocês naquele bosque, o que aconteceu com o meu filho – disse com a voz falhando pela emoção. Harry sentiu seus olhos se encherem de lágrimas, também. Não queria reviver aquela cena mais uma vez, mas devia ao Sr. Weasley uma explicação detalhada do que acontecera, exceto pelos detalhes da luta que ambos tinham travado contra Lothian.
Harry contou tudo o que acontecera ali com os três rapazes, com todos os detalhes que conseguiu gravar daquele momento terrível que a criatura atacou Rony, mas deixou de fora a parte onde os dois lutavam contra Lothian, e ficou feliz em ver que o bruxo não fez menção de interrompê-lo. Todos ouviram atentamente ao relato de Harry, absorvendo cada palavra como uma esponja, e ninguém o interrompeu antes que terminasse o que tinha a dizer.
– Um cão negro? – perguntou Lupin a Harry assim que ele acabou, em tom bastante sério – veio do bosque e atacou Rony? Em plena luz do dia e com vocês três ali conversando?
– Sim – disse Harry, olhando para baixo. Não dissera a ninguém a sua suspeita de que seria o padrinho. Provavelmente só não ririam dele porque a situação não era nada engraçada – Mas não faço a menor idéia do que era essa criatura, nunca vi nada parecido antes – mentiu.
– Eu sei muito bem o que era essa criatura – disse Lothian, sério, abrindo a boca pela primeira vez desde que tinha falado com Harry, no Bosque. O bruxo estava encostado ao lado da lareira, distante da mesa, mas aparentemente bastante consciente do que estava sendo falado – Era um Sinistro, o maior que eu já vi na minha vida.
Harry achou que Lothian talvez devesse ter ficado quieto ao invés de dizer isso, pois criou na sala todo tipo de reação negativa. Os Weasley fecharam a cara imediatamente para ele, e Hermione levantou-se de um salto, fechando os punhos e avançando na direção do rapaz com a mesma expressão que avançara contra Draco uma vez na escola. Harry não sabia o que dizer para o rapaz. Será que o outro não tinha percebido a gravidade da situação? Não era hora pra fazer piada.
– Como você pode dizer um negócio desses?! – Berrou Hermione, fuzilando Lothian com o olhar, e tentando chegar até ele. No caminho, foi interrompida por Tonks, que percebeu que o rapaz não sairia ileso da fúria da garota – Isso não é hora de fazer brincadeira, seu idiota! Sinistros não existem! Não existem!
Hermione tentava se desvencilhar de Tonks, enquanto Lupin olhava para Lothian com cara de poucos amigos. Arthur, Molly e Gina olhavam para ele como se ele fosse insano, e até Carlinhos fechara a cara para o amigo. Harry também estava furioso com a brincadeira, mas por algum motivo que não sabia explicar, a coisa não parecia ser tão sem sentido assim.
– Bom, obviamente ninguém acredita em mim, não é mesmo? – disse, olhando a reação de todos e lançando um olhar particularmente feio para Carlinhos, que o olhava ainda com raiva – Mas vocês devem ter percebido que o que aconteceu de fato se assemelha aos relatos de um ataque de Sinistro.
– Mas essas coisas nem existem! – berrou Hermione, mais uma vez encolerizada – É tudo invenção da cabeça dos bruxos! A Profª. McGonagall nos disse...
– Ela disse o que todos os bruxos dizem destas criaturas, Hermione – interrompeu Lothian, impaciente – mas o fato que ela não acredite na existência de Sinistros não significa que elas não existam. Não significa que o que eu estou dizendo não seja verdade.
– Lothian, vamos pensar racionalmente – disse Lupin calmamente, tentando apaziguar a situação – Realmente, Hermione tem razão. Não há nenhum relato confiável da existência de Sinistros. Nenhuma morte foi verdadeiramente atribuída a essas supostas criaturas.
Lothian olhou com desdém para Lupin, e abriu a boca para argumentar algo, mas tornou a fechá-la e encostar-se à lareira, em silêncio, e não disse mais nada pelo resto da tarde. Os outros também nada disseram, limitando-se a lamentar pelo ocorrido ao amigo Rony.
Harry ficou o dia todo ao lado dos amigos, tentando consolar Gina e Hermione, que estavam bastante abaladas pelo que acontecera. Hermione estava tão fora de si que Morgan teve que dar a ela alguns feitiços para acalmar, como tinha feito com a Sra. Weasley, e ela foi levada ao quarto no andar superior onde estavam hospedados. A perda do amigo fora um golpe muito duro para ela, e quando finalmente ela conseguiu se acalmar o suficiente para relaxar e dormir, o dia já tinha acabado e a chuva, que agora não passava de pequenas gotas esparsas que batiam levemente nas vidraças do quarto, amainara o suficiente para deixar algumas estrelas serem vistas por espaços entre as nuvens.
Harry deixou o quarto de Hermione e encaminhou-se para o seu, que estivera dividindo com Rony. Caminhava triste e lentamente, pensando no amigo que havia acabado de perder, e que por algum motivo não conseguia acreditar que morrera. Quando chegou à porta e levou a mão à maçaneta dourada, ouviu alguém chamá-lo baixinho, à sua esquerda, e virou-se rapidamente para ver quem era, pegando a varinha enquanto fazia isso.
– Não acenda a luz, Harry. Preciso falar com você em particular. – disse um sussurro bem audível perto de Harry. Ele reconheceu a voz de Lothian.
– O que você quer? – perguntou Harry, mau-humorado, abrindo a porta do quarto – me deixe em paz, Lothian.
Lothian agarrou o braço de Harry, puxando-o para perto dele e o encarando com seus profundos olhos azuis. Um brilho decidido iluminava os olhos dele.
– O que é isso, Harry? Vai desistir de seu amigo assim tão fácil? – disse rapidamente, olhando profundamente nos olhos dele – Pensei que não quisesse que seu amigo morresse?
– Claro que eu não queria que ele morresse – sussurrou Harry brutamente, arrancando com violência seu braço da mão do bruxo que o segurava – Mas não há nada que fazer agora, não é mesmo? Ele já morreu!
– Tem certeza disso, Harry? – perguntou Lothian, com um olhar ainda mais demente no rosto – E se eu dissesse que você ainda pode salvá-lo, o que você faria, hein? Até que ponto seria capaz de se arriscar para salvar o seu amigo?
Harry fitou os olhos azuis de Lothian, que o olhavam com tanta intensidade que pareciam querer devorá-lo. O bruxo de cabelos prateados parecia apressado, nervoso, como se o seu tempo estivesse se esgotando rapidamente. Harry pensou, talvez fosse uma armadilha, talvez estivessem tentando tirá-lo de perto das proteções dos outros bruxos. Lothian podia realmente trabalhar para os Comensais da Morte.
– Eu daria a minha vida pelo meu amigo – respondeu Harry, sem pestanejar.
– Seria capaz de confiar em mim o suficiente para me seguir, Harry? – perguntou o bruxo, estreitando os olhos – Sem achar que vou levá-lo para uma armadilha do Lorde das Trevas?
– Sim. Se for para salvar o Rony...
– Ótimo – disse o bruxo, ajeitando sua capa de viagem preta e colocando-a sobre os ombros. Harry percebeu que não era como uma capa da invisibilidade, mas parecia aumentar as sombras que rodeavam o rapaz e deixá-las mais escuras – Se tiver que pegar alguma coisa, faça-o já. Estaremos saindo agora mesmo para a floresta. Temos pouco tempo. Apresse-se.
Harry entrou no quarto silenciosamente, e pegou a capa da invisibilidade de seu pai que estava dentro do malão. Quando fechou, deu uma olhada de canto de olho para o lado e notou que Lothian não olhava em sua direção, parecia entretido vigiando o corredor. Aproveitou-se dessa oportunidade e escreveu rapidamente no canto de um pergaminho um curto bilhete para Hermione, avisando que tinha saído com Lothian em direção à floresta. Rasgou o canto do pergaminho e deixou o papel no chão, num lugar bem visível, para que a amiga o encontrasse no dia seguinte quando tivessem notado a sua falta. Fazendo isso, caminhou até a porta onde Lothian o esperava e a fechou atrás de si silenciosamente.
Os dois rapazes, então, desceram a escada lenta e silenciosamente até o saguão lá embaixo, Lothian oculto pelas sombras que o cercavam e Harry invisível pela capa de seu pai. Eles ainda conseguiam ouvir as vozes do Sr. E da Sra. Weasley, na sala de estar da casa de Morgan, que não tinham saído do lado de seu filho desde que ele tinha chegado. Eles seguiram para o lado contrário da sala de estar, onde o corredor levava até a copa, e então à cozinha. Lothian gesticulou a varinha silenciosamente para a porta, que se destrancou sem ruído algum, e puxou-a lentamente para abri-la.
Eles saíram para o jardim florido de Morgan, sentindo as leves gotas de chuva caírem sobre as suas capas com um ruído seco e trazendo o frio gelado da noite. O ar da noite e o cheiro da grama molhada encheram Harry de esperança, e um pequeno brilho da lua conseguiu atravessar a cortina espessa de nuvens que ainda se dissipava, dando lugar ao céu estrelado e bonito de uma noite de verão. O rapaz respirou profundamente, deixando que a magia do momento o consumisse e o enchesse de esperanças, e seguiu atrás de Lothian, que já estava vários passos à frente.
Os dois seguiram silenciosamente, atravessando o gramado que rodeava a casa de campo, e em poucos segundos já estavam no deck de madeira da lateral direita da casa, de onde saía a estrada de pedras gastas que haviam seguido naquela manhã, e olharam para a grande porta de vidro que se abria para o salão de visitas da mansão. O mordomo da casa olhava desconfiado para o lado de fora, como se pressentisse a presença de algo que não deveria estar ali. Mas Harry e Lothian estavam invisíveis, e atravessaram a casa sem maiores problemas, chegando à estrada e apressando o passo na direção do bosque.
– Muito bom, Harry – disse Lothian, retirando o capuz de sua capa e deixando as gotas de chuva molharem os seus longos cabelos prateados – Agora que estamos longe da casa podemos nos deixar aparecer. Vou precisar que você ande pelo menos com a cabeça à vista, senão não vou saber onde você está.
A cabeça flutuante de Harry apareceu a poucos passos de Lothian, que deu um sorriso satisfeito ao ver que o rapaz tinha conseguido acompanhá-lo. Os dois bruxos continuaram seguindo no mesmo ritmo rápido em direção ao bosque que ficava no final da estrada. Lothian seguia na frente, no escuro, e os dois podiam ver a enorme silhueta verde surgir no meio da escuridão, a duzentos metros de onde estavam.
– Lothian, que história é essa de Sinistro – disse Harry, quebrando o silêncio – Pensei que essas criaturas não existissem. Pensei que fossem invenções de bruxos medrosos.
– Bom, é meio complicado – disse Lothian, com uma expressão preocupada, reduzindo os passos para emparelhar com Harry – Elas na verdade não existem, mas podem existir sobre certas condições.
– Como assim?
– Sinistros não são criaturas normais. Elas existem apenas numa dimensão anexa à nossa, a qual chamamos de Dimensão das Sombras. Não possuem corpos físicos, não possuem pensamentos, nem almas, nem nada. Sob todos os sentidos, eles não estão vivos, porque são incapazes de interferir em qualquer coisa. Apenas flutuam no lugar de onde vêm. Pensando assim – disse, olhando para Harry com um sorriso – elas não existem realmente no sentido físico que entendemos.
– Mas você disse que elas poderiam existir sob certas condições – perguntou o rapaz, olhando preocupado para o bosque que se aproximava cada vez mais – que condições são essas?
– Bom, os Sinistros são criaturas das sombras, e por essa razão acredita-se que elas são ecos de criaturas que já existiram, assim como a sua sombra é um eco do seu corpo. – disse o rapaz, levantando a mão e iluminando levemente a ponta de sua varinha. Já estavam chegando à orla do bosque – Como não podem existir sozinhas, elas precisam de um empurrãozinho para poder libertar-se de seu estado letárgico nas sombras e existir no mundo físico.
– Se elas são criaturas que não vivem nesta dimensão, devem ter ajuda externa para poderem chegar até aqui, não? – perguntou Harry olhando para Lothian. Percebeu que o bruxo sorrira novamente, confirmando – Então alguém a ajudou a se libertar e vir até aqui.
– Exato – disse o rapaz – e essa mesma pessoa que a libertou provavelmente a está controlando. Sinistros nunca agem por conta própria, são controlados por alguém.
Eles pararam na orla do bosque, acendendo as suas varinhas e observando as sombras que permeavam o seu interior. Podiam sentir a brisa gelada da noite acariciando o seu rosto gentilmente, e ouviam as árvores balançarem suavemente ao sabor da brisa. Nada parecia demonstrar que ali acabara de morrer uma pessoa.
Apesar da morte do amigo, Harry se sentia mais tranqüilo por dentro. Não revelara a Lothian que pensara que a criatura fosse Sirius, e sentia-se feliz por não tê-lo feito. Não queria parecer uma criança chorona frente ao rival.
– Precisamos nos apressar, Harry – disse o bruxo, avançando para dentro da floresta – temos até o nascer do sol para terminar o que viemos fazer. Pode parecer bastante, mas ainda temos que encontrar o Sinistro, o que vai demorar um bocado de tempo.
– Mas ainda não entendi o que viemos fazer aqui, Lothian – disse Harry, intrigado, enquanto acompanhava o bruxo que enveredava pela floresta e caminhava rapidamente à sua frente – Como é que encontrar o Sinistro vai poder ajudar o Rony?
Harry percebeu que conforme caminhavam para dentro do bosque, o chão ia se tornando de uma tonalidade mais escura. A luz das varinhas parecia penetrar cada vez menos na escuridão profunda da floresta, e as árvores tornavam-se maiores a cada passo que davam em direção ao interior da floresta.
– Como não são criaturas físicas, não podem causar danos físicos às pessoas – explicou Lothian, enquanto se abaixava para passar por debaixo de uma colossal raiz exposta – entretanto, não há defesas físicas contra o mal que elas causam. Seu ataque é preciso e são incapazes de errar seu alvo quando estão sendo controladas por alguém com suficiente vontade.
– Se eles não podem causar danos físicos, o que é que aconteceu ao Rony? Porque é que ele está morto?
– Sinistros espreitam suas vítimas por vários dias antes de dar o bote, aterrorizando-as antes de atacá-las. Sua força baseia-se no temor que as pessoas têm da lenda de que eles são arautos da morte – disse o rapaz, agora com um olhar interrogativo, como se tivesse acabado de lhe ocorrer algo – Falando nisso, você viu se o Rony comentou alguma coisa a respeito de estar sendo observado pelo Sinistro?
– Não – disse Harry, categoricamente – Acredite, se o Rony estivesse sendo perseguido por um cão negro gigante ele não sairia de dentro do próprio quarto.
– Estranho, muito estranho – disse o bruxo, olhando para a escuridão da floresta.
A floresta continuava ficando cada vez mais densa, e os arbustos rasteiros agora eram cipós espinhentos que enroscavam em suas calças, tentando detê-los de avançar mais para dentro da floresta. Uma sucessão de flores de coloração vermelha e violeta espalhavam-se ao redor dos rapazes, lançando um odor adocicado no ar. O perfume estranho das flores deixava a cabaça de Harry sonolenta, e ele percebeu que Lothian também parecia estar tendo dificuldades ao passar pela muralha de flores. Ele cambaleava levemente, como se estivesse adormecendo.
– Não deixe que o perfume das flores adormeça você – disse Lothian, esfregando as mãos nos olhos que pareciam estar pegando fogo, de tão vermelhos que estavam – Estamos quase lá, falta só mais alguns minutos. Vamos apertar o passo senão não chegaremos a tempo.
Harry sentia a cabeça pesar como chumbo sobre seus ombros, mas pensar no amigo morto em cima da mesa da sala de estar da mansão o mantinha acordado. Ele conjurou um feitiço Aquamenti sobre a própria cabeça, levando um banho frio que o ajudou a manter a consciência livre dos efeitos das flores malditas.
Harry e Lothian caminharam por muito tempo pela floresta, passando por entre as árvores gigantescas e desviando-se dos grossos arbustos espinhentos que tentavam bloquear o caminho dos dois rapazes. Conforme caminhava, Harry sentia que o ar ficava cada vez mais gelado, e as cores da floresta ficavam cada vez mais apagadas, como se estivessem entrando lentamente num filme preto e branco. Até a cor de suas vestes pareciam se apagar conforme se embrenhavam na floresta desconhecida.
E então, de repente, os arbustos acabavam. As árvores começaram a rarear, e o chão da floresta adotou uma coloração cinza como se coberta de restos de árvores queimadas. A copa das poucas árvores que restavam perdiam as suas folhas, ou as mesmas tornavam-se acinzentadas, e o que restava eram galhos esqueléticos como garras, que apontavam para o céu como mãos que imploravam. O céu, por sua vez, era escuro como a noite e nele caminhavam lentamente, como navios à deriva de um rio, nuvens cinzentas iluminadas por uma lua tão cheia como Harry jamais havia visto.
Adiante deles, o solo acabava abruptamente numa gigantesca rachadura no solo, como se um punhal gigantesco tivesse aberto uma ferida enorme no chão à frente. O abismo sem fim, negro como o céu acima, estendia-se a perder de vista dos dois lados dos rapazes, com paredões íngremes e recortados ladeando toda a sua extensão.
À distância, Harry podia ver pequenos pontos negros sobrevoando sombriamente os paredões de pedra nua. Rodeavam algo em círculos como abutres, descendo rapidamente e subindo, acompanhados de vários outros. Ele não podia definir o que eram aquelas criaturas ou o que é que estavam atacando, pois estavam demasiado longe para poderem ser identificadas, mas pensou consigo mesmo que preferia não ter que descobrir. Pararam de pé na beira do penhasco vertiginoso, que ocupava quase toda a linha de visão à frente deles, lado a lado, e o vento forte que soprava trouxe do fundo do abismo um odor terrível de morte e pestilência.
– Chegamos – disse Lothian, encarando o abismo abaixo com um olhar enigmático – o Vale das Sombras.
– Vale das Sombras? – indagou Harry, ainda olhando os estranhos pássaros negros à distância – Que raio de lugar é esse?
– Os Sinistros, quando caçam, não podem provocar danos físicos em suas vítimas, mas podem chegar a uma coisa muito mais importante que isso – disse sombriamente o rapaz de cabelos brancos – são capazes de retirar a alma de suas vítimas com a sua mordida, e trazê-la para este lugar.
– Quer dizer que o Sinistro que atacou o Rony está lá embaixo? Vamos ter que descer para encontrá-lo?
– Sim, teremos – disse Lothian, ainda olhando para o abismo à frente, com o olhar perdido na imensidão negra – Eles não são capazes de matar as suas vítimas. Eles a deixam oca, sem alma, num estado letárgico que lembra a morte. Então levam seu prêmio à pessoa que os convocou, que poderá fazer dela o que bem entender.
– Quer dizer que o Sinistro está levando a alma do Rony para algum outro bruxo? Mas por que motivo?
– Você se surpreenderia com as coisas que são possíveis de fazer com uma alma de bruxo, Harry. Infelizmente para nosso invocador, a lenda diz que o Sinistro deve vagar durante a noite toda para poder chegar à sua presença com a alma desejada, e é por isso que estamos aqui. Temos até o anoitecer para capturar o Sinistro e trazer a alma de Rony de volta ao corpo dele. Se demorarmos demais, Rony estará morto para sempre.
– E o que é que estamos esperando? – perguntou Harry exasperado, dando um passo na direção do abismo – vamos lá, precisamos encontrá-lo antes do amanhecer!
Lothian virou-se para Harry e viu os olhos do rapaz brilharem, como se algo muito importante estivesse para ser dito. O bruxo de cabelos brancos colocou as mãos nos ombros do rapaz e olhou profundamente nos seus olhos.
– É de vital importância que você permaneça perto de mim durante todo o tempo que estivermos dentro do Vale das Sombras, Harry – disse Lothian, olhando o bruxo nos olhos com um olhar que não admitia contradições – Se você se perder aí dentro, nunca mais conseguirá voltar. São poucas pessoas que são capazes de entrar sozinhas no mundo das sombras e retornar. Aqueles que conhecem o feitiço para abrir o caminho encontram dificuldade, e bruxos como você, que não o conhecem, se perderiam para sempre.
– Combinado – disse o bruxo – Então vamos logo!
Lothian fez um gesto simples com a varinha, e da mesma saiu um som que lembrava o uivo do Sinistro. De repente, como se estivesse estado ali o tempo todo, Harry percebeu um caminho estreito que descia os paredões de pedra acinzentada e serpenteava pelas rochas, seguindo em direção à escuridão.
– Há outras criaturas das sombras vivendo nesse lugar, Harry – disse Lothian, dando alguns passos na direção do caminho que acabara de aparecer – mantenha sua varinha sempre à mão para qualquer eventualidade. Estas criaturas de sombras não poderão ser espantadas com qualquer feitiço, mas são relativamente frágeis a magias que provoquem luz, como a Lumus. Se puder iluminá-las com a varinha, deixarão de perturbá-lo por algum tempo.
O bruxo de cabelos prateados estendeu a mão indicando a Harry para ir à frente, e os dois dessa forma enveredaram com passos rápidos pelo caminho estreito, descendo rápida e inexoravelmente para a escuridão sombria que os aguardava abaixo. Harry sentia o vento frio da noite envolvê-lo como um abraço gélido, e a luz pálida da lua indicar o caminho que levava ao destino dos dois rapazes.
Por algum tempo os dois seguiram por aquele caminho fracamente iluminado pela luz pálida da lua, parando de vez em quando para que Lothian pudesse se abaixar e examinar o chão pedregoso com a luz que emanava de sua varinha, como se estivesse tentando encontrar o rastro do Sinistro que levava a alma de Rony. Nestes momentos, ele parecia pronunciar encantamentos em voz baixa enquanto iluminava o chão, olhando fixamente para o ponto onde estava iluminando.
– O encantamento que eu utilizo é o é Umbra Indicas, Harry – explicou o bruxo, enquanto examinava uma pedra ligeiramente mais alta do que as outras. Para Harry eram todas iguais – Os Sinistros deixam um rastro de sombras pelo lugar onde eles passam que demora um dia para desaparecer. Ainda está fresco, então seremos capazes de encontrá-lo sem muita dificuldade.
– Mas estamos indo muito devagar, Lothian – disse Harry impacientemente – Como vamos alcançá-lo nessa velocidade se ele está correndo há pelo menos quatro horas na nossa frente.
– Ah, temos a sorte do nosso lado – disse Lothian, sorrindo para Harry e se levantando, batendo as mãos nos joelhos para limpar o pó cinzento que grudara em suas calças – Sabe, eu conheço um atalho para chegarmos à Fenda da Mandíbula, que é por onde ele vai ter que passar antes de seguir para seu mestre. Com sorte, estaremos lá em uma ou duas horas.
– Como assim – disse Harry, olhando para o bruxo com desconfiança – você já esteve nesse lugar antes?
Lothian olhou para o rapaz com impaciência, como se a pergunta fosse absolutamente desnecessária dada à importância do que tinham vindo fazer, e abriu a boca para responder à pergunta de Harry. Subitamente, sem que nenhum dos dois rapazes estivesse esperando, algo enorme, do tamanho de um carro, caiu sobre os dois numa massa gigantesca de penas negras e cheiro de enxofre. A força do golpe foi tamanha que Harry foi jogado para trás, arremessado contra o paredão de rochas com um baque surdo, o que foi a sua sorte. Se tivesse sido jogado na direção do abismo, teria se esborrachado nas pedras afiadas como navalhas do fundo.
Harry levantou a cabeça a tempo de ver o que havia causado tamanho golpe nos dois rapazes. Levantando-se a três metros de altura acima da cabeça dele, estava algo que se assemelhava a um gigantesco pássaro, mas a semelhança não passava do fato que os dois tinham penas. Tinha mãos humanas no lugar das patas, e cada dedo esquelético tinha garras negras do comprimento da varinha de Harry. Suas asas negras como a noite espalhavam penas conforme ele se debatia sobre a presa que acabara de abater. O seu pescoço comprido e escamoso acabava numa cabeça de bode, cujos olhos lançavam labaredas vermelho-sangue e cujas mandíbulas possuíam várias fileiras de dentes afiados como navalhas. A criatura exalava um fedor insuportável de enxofre, que queimava as narinas de Harry e não deixava que respirasse.
Num instante após o bote, a criatura levantou vôo segurando um corpo de cabelos prateados que se debatia inutilmente nas garras afiadas. A varinha negra da vítima jazia inutilmente caída aos pés de Harry enquanto a criatura se afastava rapidamente para o paredão de pedra do lado oposto do imenso abismo. Enquanto se afastavam Harry imaginou que terrível fim aguardava o rival nas garras do imenso monstro alado, e num estalo se deu conta de que agora estava sozinho na busca pela alma do amigo. Podia até imaginar em sua mente o Sinistro sorrindo inconscientemente, avançando numa velocidade estonteante até seu destino, mais certo do que nunca de que jamais seria detido.
Harry se levantou de um salto e agitou a varinha na direção do monstro alado lançando um feitiço estuporante, mas o mesmo rebateu inutilmente nas asas negras da criatura, que continuou voando na direção do outro lado do abismo. Só depois Harry se deu conta que teria sido pior se tivesse abatido a criatura. Teria derrubado Lothian naquele mesmo momento.
Sem saber o que fazer, vendo o rapaz ser levado pela criatura e sabendo que o Sinistro que roubara a alma de Rony levara vantagem de várias horas sobre ele, Harry fez a única coisa que conseguiu decidir no dilema que se encontrava. Pedindo desculpas mentalmente para Lothian, enfiou a própria varinha no bolso e começou a correr pelo caminho de pedras, atrás do rastro do cão negro.
Não foi necessário caminhar muito até que chegasse a uma bifurcação na trilha que descia o abismo. À sua direita, o caminho descia um longo lance de degraus de pedra e entrava numa caverna tão escura quanto o pêlo do cão negro que perseguia. Do lado esquerdo, o caminho continuava ladeando o paredão de rocha nua e se perdia na distância abaixo, penetrando na escuridão sem fim.
Harry não sabia qual rumo seguir. Se escolhesse o caminho errado, poderia se perder para sempre nos caminhos pedregosos do Vale das Sombras. Precisava saber qual caminho o Sinistro tinha seguido, e rápido. Harry se lembrou do encantamento que Lothian estava lhe ensinando no momento em que foram atacados, e resolveu experimentá-lo.
– Umbra Indicas – disse, gesticulando a varinha e apontando-a para a bifurcação à sua frente.
Por um breve instante, Harry imaginou que tivesse pronunciado errado o feitiço pois nada aconteceu, mas de repente, um rastro de fumaça negra começou a se materializar no ar, fino como a fumaça de um cigarro. Ela movia-se lentamente, como se estivesse sendo soprada por uma brisa invisível, mas era nítida o suficiente para não causar dúvidas a respeito da direção para onde seguia. A trilha de fumaça virava à direita da bifurcação e descia em direção à caverna.
Harry lançou-se em direção às escadas e as desceu dois degraus de cada vez, correndo o mais rápido que podia. Quando chegou ao patamar inferior, viu que a trilha de fumaça ficava mais espessa e dava estranhos círculos ao redor da boca da caverna, como se o cão tivesse hesitado por algum momento antes de seguir por aquele caminho.
– Estranho – balbuciou Harry para si mesmo – se ele vai direto para a pessoa que o invocou, porque hesitaria antes de entrar na caverna?
Harry entrou, seguindo com mais cautela para dentro da escuridão, afastando-a com o feixe de luz que emanava da ponta de sua varinha e examinando o interior do local. Viu com assombro que a caverna seguia num túnel longo e entrava cada vez mais na terra numa rampa descendente, cheia de formações rochosas pontudas que davam ao lugar a forma de presas gigantescas prestes a devorá-lo. Harry apertou o passo e seguiu pelo corredor por mais algum tempo, vendo que o fio de fumaça preta aumentava conforme seguia adiante. O Sinistro parecia ter diminuído o passo conforme entrara na caverna, e passara a andar com mais cautela, assim como Harry estava fazendo. Mas por quê?
Conforme se aprofundava mais na terra Harry percebeu que as paredes acinzentadas da caverna começavam a se alargar, abrindo-se num corredor maior e mais carregado de formações rochosas. Ao mesmo tempo, o tom acinzentado da caverna começava a desaparecer e era substituído por um brilho dourado que refletia a luz da varinha. Harry ignorou os bonitos reflexos dourados que tentavam chamar a sua atenção, e concentrou-se no fio de fumaça negra que já estava da grossura de uma corda de cânhamo, e que se alargava cada vez mais rapidamente.
Então, sem aviso algum, o fio de sombras que Harry estava seguindo se dividiu num número incontável de outros fios, que esticavam para todas as direções à frente de Harry. O rapaz parou imediatamente, estupefato, e levantou a varinha para examinar melhor o estranho fenômeno.
Olhando melhor, o bruxo percebeu que o grosso fio de sombras que seguia na verdade não se dividira. Parecia ter cruzado com um outro fio, maior e mais grosso, e de repente interrompera seu caminho. Harry iluminou o túnel largo que estava e percebeu que havia milhares de outros fios como aqueles, que se enredavam e entrelaçavam num padrão aparentemente aleatório, mas era visível que se interligavam uns nos outros como uma verdadeira teia.
Era ao mesmo tempo belo e assustador observar as teias de sombras que se entrelaçavam à sua frente, não deixando o menor espaço para que se movimentasse entre elas sem tocá-las. Harry agradeceu mentalmente a Lothian por tê-lo ensinado o feitiço para revelar os pequenos fios de sombra. Sem ele, jamais teria visto as teias de sombras e provavelmente teria passado por elas sem nunca sequer imaginar que elas estavam ali. Teria tocado as teias e obviamente teria soado alguma espécie de alarme, alertando o que quer que protegesse aquele local que algo passara.
Harry mirou a varinha para o teto da caverna, que estava pelo menos a uns dez metros de altura agora, à procura dos donos daquela teia de sombras. Não demorou muito, conseguiu definir bolsões negros no meio dos fios maiores de sombras escuras, aparentemente casulos usados para guardar o que era aprisionado, mas não viu nada que pudesse ter fabricado as teias. Imaginou, com um frio na espinha, que talvez o Sinistro tivesse sido capturado por aquelas teias, e se isso tivesse acontecido, Rony também estaria preso ali.
Como se para confirmar suas suspeitas, Harry ouviu um gemido agudo vir da direção dos bolsões negros. Harry apertou mais os olhos tentando distinguir melhor o som, que se repetiu mais alto. Parecia mais um guincho do que um gemido – Harry pensou.
De repente o rapaz distinguiu no teto da caverna uma porção de pequenos pontos de luz avermelhada, aglomerados num dos bolsões de sombra que vira anteriormente. Qual não foi sua surpresa ao ver que da forma negra surgiam longos e finos apêndices de sombras para todos os lados, como enormes patas aracnídeas. Os pontos de luz vermelha também se tornaram maiores e mais intensos, fixando-se nele e na varinha que jogava luz em sua direção.
Harry olhou para os lados apavorado, e viu que de todos os lados da caverna surgiam formas iguais, enchendo o teto da caverna de aranhas feitas de sombras. O rapaz olhou para os lados, em busca de uma saída, e percebeu que as aranhas que já estavam completamente formadas aglomeravam-se atrás dele, impedindo a passagem de volta ao desfiladeiro negro. Só restava a ele seguir em frente, em direção às teias de sombras. Harry preferiu não arriscar encostar nelas, e brandiu a varinha com energia na direção delas.
– Luce Solaris!
A ponta da varinha de Harry produziu um clarão que encheu a caverna escura de luz, a ponto do rapaz fechar os olhos para não ser ofuscado pela própria magia. Ouviu apenas os guinchos desesperados das aranhas sombrias na escuridão, pegas de surpresa pela magia luminosa do rapaz. O brilho quente da luz solar durou apenas um breve instante, enchendo a caverna tenebrosa de luz e calor, e tão subitamente quanto surgiu ele desapareceu. O rapaz, que parecia estar esperando por isso, abriu os olhos rapidamente e se atirou apara a frente numa corrida desabalada para o interior da caverna.
Quando achou que estava longe o suficiente do covil das aranhas de sombras, Harry parou e murmurou novamente o feitiço que revelava o rastro de sombras do Sinistro, mas para a sua surpresa não foi capaz de encontrar rastro algum. Girou a varinha em todas as direções, repetindo o feitiço, mas não viu nenhum sinal da trilha que o havia trazido até ali.
Harry parou, sem saber o que fazer. Logo a sua frente, o caminho se dividia não em dois, mas em cinco diferentes direções, cada um mais escuro que o outro. Imaginou se o clarão solar que usara não fora o responsável por apagar o rastro de sombras, mas tentou apagar esse pensamento de sua mente, sabendo que se fosse verdade teria poucas chances de continuar. Olhou mais uma vez para trás, e enveredou pelo caminho mais próximo, tentando manter a lembrança do amigo na mente.
Conforme descia por uma longa rampa, Harry também percebeu que o ar ficava mais quente e mais difícil de respirar. Após seguir por mais de uma hora pela trilha descendente da caverna, Harry parou por alguns instantes e tirou a blusa que usava debaixo da capa pois estava molhada de tanto suor. Tirou os óculos e passou as costas das mãos na fronte, tirando as gotas de suor que insistiam em correr por cima de seus olhos, embaçando a sua visão. A trilha começava a se nivelar e as formações rochosas em forma de presas começaram a rarear, como se ele estivesse entrando numa nova área da caverna.
Harry estava desesperado. Nos últimos minutos fora acelerando o passo cada vez mais, e agora corria a passos largos por entre as formações rochosas que compunham a caverna. Olhava desesperadamente o relógio de pulso como se para confirmar o que seus sentidos diziam claramente: que andara por horas naquele labirinto de cavernas e cada vez mais tinha certeza que não conseguiria encontrar o Sinistro que levara seu amigo. Faltavam poucas horas para o amanhecer e tinha cada vez menos pistas do paradeiro do monstro.
Foi com estes pensamentos que Harry notou que finalmente o túnel acabava e desembocava no que parecia ser um grande salão iluminado por uma luz alaranjada, que parecia ser a fonte do calor insuportável que já estava sentindo há algum tempo. Harry percorreu correndo os últimos metros que o separavam da saída da caverna, e assim que saiu sentiu o vapor quente que vinha de encontro ao seu rosto.
Harry saíra num patamar de pedra mais elevado que serpenteava de forma circular pelo que parecia ser a abertura de um grande vulcão em atividade. Mesmo estando a vários metros acima do lago de magma que borbulhava abaixo dele, Harry sentia-se sufocado pelo calor infernal que subia em grossas nuvens de vapor quente. Estreitou os olhos mais uma vez, e com um grito de surpresa que foi abafado pelo som do movimento da lava abaixo, percebeu ao longe uma figura negra que cambaleava pela borda do penhasco e seguia lenta, mas decidida, em direção ao outro lado do vulcão.
Não havia dúvidas que a figura negra era o Sinistro. Caminhava lentamente, como se estivesse ferido, e deixava por seu caminho um rastro fino de névoa negra que se dissipava a alguns metros atrás dele. Sua aparência naquele reino de sombras era ainda maior e mais aterrorizante do que antes, mas caminhando naquele movimento lento não parecia mais tão ameaçador. Parecia cansado e ferido.
Mas não fora isso que arrancara dos lábios de Harry o grito de surpresa que acabara de dar. Ao lado do monstro negro havia uma figura de tamanho humano, mais ou menos da mesma altura de Harry, feita de uma névoa fina e prateada. Parecia flutuar a alguns metros do chão e seguia lentamente ao lado do gigantesco cão negro de sombras. Harry não podia distinguir desta distância o rosto do amigo, mas o aperto que Harry sentiu no peito ao ver a figura flutuante ao lado do Sinistro não deixava dúvidas que era que o rapaz estava procurando.
Harry desabalou a correr atrás dos dois, mas parou de repente, medindo suas ações. Se tentasse se aproximar dos dois daquela forma, o Sinistro provavelmente o veria, e usaria suas últimas forças para correr do rapaz, deixando-o para trás para sempre. Não poderia se aproximar deles assim, abertamente. Teria que tentar emboscar o Sinistro se não quisesse perder a única chance que tinha de recuperar a alma do amigo. Parou atrás de uma pedra maior, analisando o ambiente à sua volta.
O caminho pelo qual o Sinistro subia com Rony contornava a borda interna do vulcão numa espiral que levava até o lado de fora. Era uma longa jornada, pois o vulcão parecia ter cerca de duzentos metros de largura e o caminho circulava a cratera umas três vezes antes de atingir o topo. Harry olhou para cima, por onde passava o caminho, há uns cem metros acima de sua cabeça, e viu que teria que tentar escalá-lo antes que o Sinistro passasse com Rony. Sem ter mais nenhuma opção, nem lembrar algum feitiço que pudesse ajudá-lo, Harry prendeu a varinha no cinto e começou a escalar o paredão de pedra que levava até o patamar superior.
Harry ofegava como se fosse desmaiar e queimava as mãos na pedra quente das bordas da cratera vulcânica, e seus olhos ardiam de tanto suor que entrava neles embaçando sua visão, mas continuava subindo decidido o paredão de pedra. Não importava o quanto tivesse que se esforçar, traria a alma do amigo de volta para o seu corpo, para a sua família. Via a forma enevoada do sinistro, contornando lentamente a espiral contínua, e apressava-se cada vez mais na escalada. Harry sentia o sangue escorrer de seus dedos onde eles se cortavam na rocha nua e afiada da borda derretida do vulcão.
Finalmente, após uma árdua e dolorosa escalada, o bruxo se içou para o caminho de pedra acima. Sentou-se, exausto mas alerta, observando a marcha lenta do Sinistro enquanto ele subia o caminho em sua direção. Harry olhou em volta e viu que perto de onde estava havia uma abertura estreita no paredão de pedra que ladeava o caminho, e foi naquela direção rapidamente. A abertura era pequena, mas se esgueirou o máximo que conseguiu e ali ficou, imóvel, aguardando a chegada do Sinistro.
Não precisou esperar muito. Apenas alguns minutos depois de ter se escondido, ouviu o arrastar pesado das patas enormes roçando no chão de pedra, e sentiu o cheiro de morte que parecia acompanhar todas as criaturas que habitavam aquele lugar terrível. Harry alcançou a varinha e a segurou firmemente, concentrado no caminho à sua frente. Esperava ansioso, ouvindo seu coração batendo forte e sua respiração ofegante, mas mantinha a atenção voltada para o caminho à frente. Só mais alguns segundos, e então poderia surpreendê-lo.
Quando finalmente viu a forma escura da criatura aparecer na fenda, Harry apontou a varinha na direção dela e gritou o mais alto que conseguiu, apertando os olhos para evitar ser ofuscado.
– Luce Solaris!!
Um clarão cegante encheu a cratera vulcânica numa fração de segundo, para então desaparecer. Harry abriu os olhos e se lançou para o lado de fora do buraco com violência para enfrentar a criatura de sombras. O que viu congelou o sangue em suas veias.
O Sinistro fora atingido em cheio pelo clarão de luz, e Harry pode ver que o ataque o havia ferido gravemente. Parecia ter perdido metade de seu corpo, pois a névoa do lado em que recebera o clarão havia se dissipado completamente, sobrando apenas uma parte da pata traseira. Seu rosto também fora afetado, pois havia apenas agora apenas metade dele, mas a parte que sobrara agora encarava Harry com um brilho mortal nos olhos avermelhados como sangue. Harry engoliu em seco, sabendo que agora estava frente a frente com a criatura de pesadelos que havia levado seu amigo.
O Sinistro moveu-se tão velozmente que Harry mal teve tempo de levantar uma defesa apropriada para o ataque. A névoa de sombras avançou em sua direção e atravessou-o como fizera com Rony, mas Harry ao invés de cair morto sentiu como se seus órgãos se congelassem. Notou, com assombro, que não podia mais mover seus músculos, e balbuciou um contra-feitiço tão rapidamente que quase não foi teve tempo de se abaixar para desviar do segundo ataque da criatura, que mirara desta vez em seu rosto. O ataque passou um pouco acima de sua cabeça.
Harry levantou novamente e mirou um feitiço Lumus no Sinistro, mas a névoa se esquivou rapidamente do feixe de luz da varinha de Harry. O rapaz seguiu a névoa com o faixo de luz, mas ela se movia cada vez mais rápido, esquivando-se de suas tentativas de atingi-la. O monstro parecia ficar mais forte quanto mais a batalha prosseguia.
O Sinistro avançou contra Harry como um raio mirando as presas de sombras na altura do peito do rapaz, mas desta vez o bruxo estava preparado para o ataque. Harry agitou a varinha em sua frente num formato circular enquanto pronunciava as palavras do feitiço.
– Luce Defensa!
Uma barreira de luz brilhante apareceu entre Harry e o Sinistro, como um enorme escudo circular. A sombra do monstro ficou menos densa, tornando-se apenas uma rala névoa, mas mesmo assim o monstro atravessou a barreira e Harry. Felizmente, desta vez o rapaz sentiu apenas um leve calafrio quando o espírito negro atravessou o seu corpo. O cão deu meia volta, recuperando sua forma densa enquanto se afastava do escudo de luz, e descreveu um arco longo no chão em direção ao rapaz de varinha apontada.
Harry lançou mais uma vez seu feitiço Lumus, tentando em vão atingir o monstro que descrevia piruetas no ar e tentava atacá-lo sempre que deixava uma brecha que ele pudesse aproveitar. Harry, por sua vez, alternava entre feitiços de ataque e escudos de luz para evitar as presas e garras do cão negro que tentava cada vez mais cercá-lo e forçá-lo a ir em direção da borda. A lava fervilhava abaixo de seus pés, lançando jatos de rocha derretida para o ar, como se estivesse tentando atingir Harry e ajudar o monstro negro. A forma prateada de Rony permanecia alheia ao que estava acontecendo, fitando o vazio com olhos mortiços e inexpressivos.
Finalmente o Sinistro pareceu se cansar de brincar com Harry e decidiu pôr fim àquela luta que não chegava a lugar algum. Numa tentativa de mudar sua estratégia de combate, flutuou na direção do paredão de pedra e atravessou-o como um fantasma, desaparecendo completamente da vista de Harry. O rapaz virou a varinha para todas as direções, em busca da sombra negra, mas não conseguiu encontrá-la. Desaparecera dentro da rocha do vulcão.
O ataque veio de baixo de Harry, que não estava esperando. A sombra negra do Sinistro materializou-se conforme saía do chão, arremessando Harry em direção ao abismo de lava ao lado. Harry viu seu corpo se afastando do paredão de pedra em câmera lenta, sendo jogado direção à morte certa abaixo.
Neste momento, algo pareceu ter despertado na névoa prateada do amigo Rony. Seu rosto, antes tomado inexpressivo, pareceu ter sido tomado por uma expressão de desespero, saindo completamente de seu estado letárgico. Quando o rapaz olhou para o amigo sendo jogado na direção da lava, não teve dúvidas. Agarrou Harry pela barra da calça e o segurou, evitando que caísse. Harry bateu as costas com força no paredão de pedra, mas felizmente não caiu.
– Arre, Harry – disse a névoa prateada, com uma expressão aterrorizada no rosto. Era igual ao amigo quando estava em desespero – Onde estou? O que está acontecendo?!
– Pelo amor de Deus, não largue! – gritou Harry, que tentava evitar que a varinha escorregasse de sua mão suada e caísse na lava abaixo – E cuidado com o Sinistro! Ele está aí em cima!
O monstro negro voltara a atacar, mas desta vez mirou as garras afiadas feitas de névoa na forma prateada de Rony. O ataque passou por dentro do rapaz e arrancou um grande pedaço da névoa prateada, que se dissolveu no ar imediatamente. Rony gritou de dor, mas não deixou cair Harry nem saiu do lugar onde estava. O terrível monstro, não satisfeito, enterrou suas presas de sombra no ombro de Rony, que agarrou Harry com ainda mais força enquanto se debatia para escapar do cão negro.
Harry não sabia se o rapaz seria capaz de agüentar mais um golpe da criatura em seu formato de névoa, então concentrou-se o mais que pôde em seu próximo feitiço para acabar de uma vez por todas com aquela batalha.
– Luce Involvere! – gritou, apontando a varinha não para o monstro, mas para Rony.
O encantamento de Harry atingiu a forma enevoada de Rony e instantaneamente uma luz forte como a do sol cobriu o rapaz, espalhando-se em todas as direções. O Sinistro emitiu um urro de surpresa e dor e largou imediatamente o espírito de Rony, que caiu sentado no chão de pedra nua, puxando Harry com ele.
O Sinistro cambaleou para trás tropeçando nas próprias patas, tentando se afastar da luz cegante que cada vez mais aumentava de intensidade, mas atrás de si encontrou apenas o paredão de rocha nua, que por alguma estranha razão não o deixou passar desta vez. O cão negro caiu por terra, ganindo desesperadamente enquanto a luz solar destruía lentamente a névoa que o compunha, desintegrando as sombras negras e deixando o corpo monstruoso da criatura cada vez menor. Por fim, com um uivo triste e sofrido, os últimos restos de sombra da criatura desapareceram num clarão prateado, deixando na pedra apenas as profundas marcas das garras aonde criatura de sombras desaparecera.
Harry ficou ali onde tinha caído no chão de pedra, ainda ofegante devido à batalha que acabara de acontecer, olhando para o ponto onde o Sinistro havia desaparecido. Sentia o corpo ao mesmo tempo quente devido ao calor infernal da fornalha de lava, e frio por dentro pelos ataques do Sinistro. Seu corpo, suado e dolorido, estava ralado em vários pontos e sangue e suor escorriam de suas mãos. Harry olhou o espírito do amigo que estava ao lado, boquiaberto visivelmente mas feliz com o que acontecera, e não pôde evitar sorrir também. Conseguira. Salvara a alma do amigo.
– Ei, Harry, o que está havendo? – perguntou a fumaça prateada com o formato de Rony, imitando exatamente a cara de bobo que Harry adorava no amigo – Onde estamos, e que raio de lugar é esse? Putz, cara, tá quente pra caramba aqui!
Harry soltou uma gargalhada gostosa, descontraída, e o cansaço sobre seus ombros pareceu dez vezes menor. Apoiando-se em seu braço menos machucado, Harry ficou de pé e ajudou o amigo a se levantar. Olhou ao redor e percebeu que não faltava muito para que conseguissem sair pela parte de cima do vulcão e finalmente se afastar daquele lugar maldito.
– Vamos ter bastante tempo pra discutir o que aconteceu depois que sairmos daqui, amigão – disse Harry sorrindo e enveredando o mais rápido que conseguiu pelo caminho sinuoso que subia até a boca do vulcão – não sei quanto a você, mas eu estou cozinhando nesse lugar.
– Pode crer, Harry – disse Rony, olhando para a lava que borbulhava abaixo de seus pés – Não estou nem um pouco a fim de descobrir se esse lugar vai entrar em erupção logo ou não.
Os dois amigos seguiram lado a lado pelo caminho de pedra, e algum tempo depois encontraram um caminho que saía pela borda do vulcão e enveredava novamente na direção do abismo. Rony soltou um longo assobio quando viu a gigantesca fenda no chão, e coçou os cabelos prateados. Harry achou engraçado o fato de que a alma de Rony agia exatamente como o amigo, e ficou imaginando como é que sairiam dali.
Seguiram por mais algum tempo por entre as fendas rochosas que ladeavam o abismo, e em breve estavam de volta ao paredão rochoso de pedra por onde Harry achava que tinham vindo, apesar de não se lembrar de ter visto o vulcão quando estava vindo com Lothian. O lugar todo parecia ter milhares de caminhos alternativos que serpenteavam pelo paredão de pedra ou levavam a cavernas que pareciam buracos de gigantescos vermes, escavados na pedra e levando até a escuridão. Harry achou melhor não se arriscar a encontrar mais aranhas de sombras.
Os dois rapazes seguiram pela estrada de pedra, enveredando por caminhos que cada vez pareciam se bifurcar mais, levando-os sempre mais para o fundo do abismo. Harry consultava o relógio desesperadamente para manter-se atento à passagem do tempo. Lothian dissera que eles traiam apenas até o sol raiar para terminar o que tinham vindo fazer, o que significava que tinha pouco menos de uma hora para encontrar uma forma de sair daquele lugar maldito. Mas quanto mais os rapazes enveredavam pelos caminhos tortuosos do Vale das Sombras mais longe de sair eles pareciam estar. Mesmo quando tentavam enveredar por um caminho que parecia subir, ele acabava fazendo um longo arco e tornava a descer cada vez mais.
Os monstros alados feitos de sombra pareciam não estar dispostos a atacar o bruxo que descia com o amigo, mas também pareciam não estar dispostos a desistir da presa. Sobrevoavam a dupla a uma altura considerável, observando cada movimento dos rapazes mas mantendo-se longe do alcance da varinha. Apesar de não se aproximar dos rapazes, eles se amontoavam nos caminhos sempre que os rapazes passavam, fechando o caminho impedindo que eles voltassem por onde tinham vindo. Harry podia ouvir o grito estridente que as criaturas emitiam ao longe, e imaginava o terrível fim que Lothian provavelmente tinha encontrado nas garras da criatura que o pegara.
Foi pensando nisso que os rapazes continuaram a descer o caminho de pedra. Lembrava agora que havia se esquecido de pegar a varinha negra do bruxo de cabelos prateados, e ficou imaginando o que diria aos Weasley assim que voltasse. Imaginou – com uma pontada de alegria que o assustou – que agora não havia mais ninguém para ficar entre ele e Gina. O pensamento o animou tanto que se repreendeu internamente por ficar feliz com a morte do bruxo que o tinha ajudado a recuperar a alma do amigo.
Alguns minutos depois, Harry parou, desesperado. O caminho que os rapazes já seguiam há pelo menos meia hora terminava abruptamente num beco sem saída, apenas com uma longa rampa que descia como um imenso escorregador e mergulhava nas profundezas escuras do abismo abaixo. Harry olhou para trás, estupefato, e percebeu que as criaturas aladas tinham se aglomerado logo atrás deles, fechando o caminho de volta como se tivesses estado o tempo todo levando os rapazes àquele lugar específico, armando a arapuca para apanhá-los naquele local. Alguns já sobrevoavam a cabeça dos rapazes, agora ameaçadoramente perto para atacar em vôos rasantes.
O Rony prateado gemeu assustado, aproximando-se de Harry e olhando para os monstros abarrotados ao redor deles. Alguns deles já se aproximavam o suficiente para que Harry pudesse distinguir as várias fileiras de presas afiadas na horrível cabeça de bode. O fedor de enxofre que já o sufocara antes estava mais uma vez se tornando insuportável, e Harry ficou imaginando o que é que faria naquele momento. Os monstros fechavam o círculo ao redor dos rapazes, lenta mas inexoravelmente.
Um grande exemplar dos monstros de sombra avançou contra eles, arreganhando a imensa bocarra na tentativa de agarrar uma das presas. Os olhos de fogo brilharam com uma intensidade maior do que nunca, fixos em seu alvo, de pé apontando a varinha em sua direção. Harry mirou o feitiço estuporante na cabeça do mostro e atacou, mas o feitiço rebateu novamente contra o grosso couro da cabeça da criatura, fato que lembrou Harry que já tentara aquilo antes. Abaixou-se rapidamente e por pouco evitou a mordida letal da criatura, que levou um bom pedaço de sua roupa.
Harry ouvia as outras criaturas grasnarem excitadas acima de sua cabeça, como se gargalhassem com a brincadeira. Uma criatura menor, aparentemente mais jovem, avançou contra eles com um grito estridente, mas esta levou uma generosa pedrada do Rony prateado bem no meio dos olhos, o que a fez perder o equilíbrio e cair ao lado dos rapazes, numa massa confusa de penas e garras letais. As outras criaturas grasnaram novamente excitadas, divertindo-se com a bizarra cena.
As criaturas finalmente haviam fechado o círculo contra os rapazes, impedindo sua fuga para qualquer direção. O jovem que havia se espatifado havia se recomposto, levantando-se e fechando fileiras ombro a ombro com seus iguais, num círculo mortal ao redor dos dois amigos, Harry mirou mais alguns feitiços de ataque que conseguiu se lembrar, mas as penas negras das criaturas pareciam à prova de feitiços, pois os mesmos eram rebatidos inutilmente para todas as direções. Quando não conseguiu ver nada além das penas negras e corpos escamosos, Harry desejou ter aprendido aparatação para desaparecer dali com o amigo.
Contudo, neste instante os rapazes ouviram um som tão próximo e familiar que se sobressaltaram. Harry sentiu novamente uma pedra de gelo afundar no seu estômago, tal era a sua surpresa. Um uivo longo e triste ressoou pela ravina, preenchendo todos com uma sensação de alívio e segurança. As criaturas se sobressaltaram e se afastaram, confusas, parecendo terrivelmente incomodadas pelo uivo contínuo que preenchia toda a cena. Uma a uma, alçaram um vôo torto e confuso para longe dali, desaparecendo à distância de deixando os rapazes sozinhos no patamar de pedra. Harry olhou ao redor numa mescla de alívio e preocupação, buscando a fonte daquele uivo que os havia salvado. Não demorou muito para encontrar a fonte dele, e foi então que o chão cedeu a seus pés.
Parado numa saliência de rocha bem acima deles, num caminho lateral que Harry jurava não estar ali há apenas alguns momentos atrás, estava novamente o cão negro que conhecia muito bem. Suas formas estavam meio enevoadas, os pêlos pareciam feitos da mesma sombra que era formada o Sinistro que enfrentara há apenas algumas horas atrás, mas os olhos bondosos e a expressão tranqüila não lhe deixavam dúvida. Tão certo ficou que o comentário de Rony apenas confirmou o que já sabia com o coração.
– Caraca, Harry – disse com os olhos arregalados, apontando para o cão negro parado na pedra logo à frente – Aquele lá não parece... o Sirius?
O cão deu um latido alto, claro, que fez os olhos de Harry se encherem de lágrimas. Harry sentiu o peito pesado, e deu um passo na direção da pedra onde estava o cão. Quase imediatamente, ele pulou da pedra e correu na direção do caminho à frente, que subia numa linha sinuosa mas constante até o topo do abismo. Correu por vários metros e parou, olhando para trás e dando mais um latido alto, como se quisesse que os rapazes se apressassem.
– Ele quer que a gente o siga, Harry – disse o espírito de Rony, que o pegou pelo braço e o puxou para cima – e parece estar com pressa. Vamos, temos que correr.
Harry pareceu sair de um transe. É claro que precisavam se apressar, o tempo dos rapazes estava se esgotando. Olhou para o relógio e, constatando o que o amigo dissera, enveredou pelo caminho de pedra correndo atrás do cão negro.
Correram sempre subindo, liderados pelo cão negro que parava de vez tempos em tempos, quando percebia estar muito à frente dos rapazes, levando-os na direção da borda do penhasco e em direção à floresta que ladeava as escarpas do abismo negro. Após alguns minutos de corrida, finalmente os rapazes pararam, ofegantes, na orla da floresta. O cão os esperava sentado aos pés de uma árvore.
Harry olhou para as árvores e pôde ver, não muito longe de onde estavam, a saída para o gramado da casa de Morgan. Ele podia ver as luzes das janelas da mansão e à distância podia ouvir as vozes abafadas que vinham da sala de estar, distinguindo claramente as vozes de Gina e Hermione, que pareciam desesperadas. O céu lentamente perdia a sua coloração escura e começavam a surgir tonalidades azuladas no horizonte, prenunciando o amanhecer.
Rony olhou para o amigo, e Harry pôde ver o quão ansioso ele estava para retornar à sua família, mas o rapaz olhou para o cão parado ao se lado. Os olhos do lobo seguiram do rapaz para a abertura na floresta, cujas árvores pareciam agora estar se aglomerando na borda da floresta, fechando rapidamente a passagem pela qual tinham vindo com um muro de troncos e heras. Num último olhar para o rapaz, o lobo se dissipou numa névoa cinzenta, que desapareceu no ar tão repentinamente quanto surgira. Harry achou melhor não tentar entender o que havia acontecido naquele momento, e correu para o gramado com Rony, atravessando a pequena abertura que restara na vegetação num salto. Ambos rolaram pela grama, e sentiram o frio orvalho da manhã cobrir seus rostos. Todo o cansaço pareceu cair de uma só vez sobre seu corpo, mas ainda assim sentia-se feliz por ter conseguido chegar. Levantou-se pesadamente, sentindo novamente as dores dos ferimentos que sofrera no Vale das Sombras e seguiu na direção da mansão de Morgan.
Harry e o espírito de Rony se aproximaram da varanda por onde ainda estava a mesa de tampo de vidro e as cadeiras de espaldar, e olhou pelas portas de vidro que davam acesso à casa. Pareciam estar todos ali, pois havia uma grande quantidade de vozes que choravam e outras que pareciam estar conversando, mas Harry não conseguia entender o que diziam. Ele levou a mão à maçaneta e abriu a porta de uma só vez.
Conforme Harry abriu a porta, várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. O espírito de Rony que estava ao seu lado desapareceu num clarão de luz prateada, e o corpo do rapaz, que ainda estava sobre a mesa, deu uma estremecida tão forte que arrancou gritos de Gina e Hermione, que estavam próximas do corpo do rapaz ruivo. Carlinhos, Arthur e Gui, que estavam perto da porta de entrada, olharam para Harry que entrava com uma expressão tão aterrorizada no rosto que pareciam ter visto um fantasma. A Sra. Weasley, que estava sentada numa poltrona mais ou menos no centro da sala e era consolada por Morgan, quase desmaiou quando viu Harry entrar na sala.
Todas as atenções se moveram lentamente de Harry, parado na porta da sala, para uma figura também surpresa, mas com um olhar frio e mortal, no lado oposto. O bruxo acompanhou o olhar de todos e seu coração deu um salto. Olhando para ele de pé do outro lado da sala, ferido mas visivelmente bem, estava o bruxo de cabelo prateado que Harry jurava que nunca mais veria na vida.
– Ora, ora – disse Lothian, mal escondendo sua surpresa ao ver Harry vivo entrando na sala, mas com um tom de voz visivelmente sarcástico – Acho que nosso amigo Harry não está tão morto quanto eu acreditava.
Harry jamais soube o que o impediu de matar Lothian ali mesmo. Chegou até mesmo a ameaçar levantar a varinha para azarar o bruxo, mas Rony ter se levantado tão depressa da mesa que alguns quase o azararam pensando ter se tornado um morto-vivo deve ter contribuído para evitar outra desgraça. A algazarra que se seguiu foi tão grande que abafou, pelo menos temporariamente, o ódio de Harry por Lothian.
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