O Ataque Silencioso
Capítulo 1 – O Ataque Silencioso
A noite estava escura na Rua dos Alfeneiros. Uma densa névoa branca cobria toda a extensão da rua, escondendo as casas do lado oposto e tornando-as nada mais do que silhuetas difusas de fachadas e árvores. Um gato solitário atravessou a rua calmamente, procurando por algo para comer, mas enquanto se aproximava da casa de número quatro para revirar o lixo, alguma coisa numa das janelas mais altas chamou a sua atenção e ele se deteve.
Um rapaz jovem estava debruçado no parapeito da janela aberta, seus tristes olhos verdes perdidos no infinito branco que cobria toda a paisagem. Ele passou inconscientemente sua mão pelos cabelos negros e rebeldes, como se tentasse achatá-los, e logo em seguida pousou-a sobre a cabeça de uma grande coruja branca que estava ao seu lado. A coruja olhou-o com seus grandes olhos cor de âmbar, emitiu um pio baixo e curto, como se o consolasse, e deu-lhe uma carinhosa bicada nas pontas dos dedos.
Se alguém passasse por ali naquele momento e olhasse para o triste jovem na janela não imaginaria que estava diante do bruxo mais famoso de todos os tempos. Harry Potter era o seu nome, e há quinze anos ele havia impedido o mais terrível de todos os bruxos das trevas, Lorde Voldemort, de dominar o mundo mágico com seu exército de criaturas das trevas.
Mas o custo dessa vitória havia sido muito grande para Harry. Na ocasião em que havia derrotado Voldemort, quando estava ainda com apenas um ano de idade, seu pai Tiago havia morrido em vão para tentar garantir a segurança de sua esposa Lílian e de se filho. Tendo acabado com Tiago Potter, o bruxo das trevas virou-se para Lílian e Harry, e deu a ela a escolha de fugir deixando o garoto, mas a jovem mãe preferiu morrer a entregar o filho ao Lorde das Trevas. E naquele momento, mesmo sem saber, Lílian havia dotado Harry de uma barreira protetora que rebateu o feitiço mortal de Voldemort lançou contra o bebê de volta a ele mesmo, destruindo seu corpo e tornando-o uma mera sombra do que fora antes.
Mas isso fora há quinze anos. Voldemort, desprovido de poderes e sem seu corpo, buscou sem descanso uma forma de voltar à vida, de reconquistar todo o poder que havia perdido quando fora derrotado por Harry. E no quarto ano em que Harry freqüentava a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, ele finalmente o conseguira. Utilizando suas artimanhas para atrair Harry para fora do castelo durante o Torneio Tribruxo, Voldemort utilizou uma poderosa magia e readquiriu seu corpo e seus poderes, tornando-se novamente o bruxo temido que sempre fora.
No ano anterior Harry encontrara-se face a face com o próprio Voldemort dentro dos salões do Ministério da Magia, quando fora tentar evitar que o bruxo das trevas pusesse suas mãos na profecia de Sibila. Esta profecia predizia que ele próprio, Harry Potter, seria o responsável pela derrota definitiva de Voldemort. Neste mesmo dia, perdera o padrinho Sirius Black, a única família que jamais tivera na vida. Apesar de Dumbledore, o diretor de Hogwarts, ter enfrentado Voldemort e impedido que ele matasse Harry, o mesmo não pôde ser feito com Sirius, que caíra através de uma cortina negra e perdera-se por lá para sempre.
Harry morava desde pequeno no número quatro da Rua dos Alfeneiros com os tios Valter e Petúnia Dursley, e com o seu primo, Duda. Todos eram trouxas – gente não mágica – e na opinião de Harry eram os maiores trouxas que já havia conhecido na vida. Eles não aceitavam que Harry era um bruxo, e achavam que isso era tão ruim quanto se pode ser. Haviam tentado, em vão, impedir que a magia se manifestasse no sobrinho, mas como não haviam conseguido, estavam empenhados em tornar da vida dele a pior possível enquanto morassem sob o mesmo teto.
Harry estava pensando no padrinho, olhando para o denso nevoeiro que cobria tudo a perder de vista. Quando conheceu o padrinho, Sirius convidara o garoto para morar com ele para que deixasse a casa dos Dursley para sempre. Mas como naquela época o padrinho era procurado pela justiça mágica por um crime que jamais cometera, Harry não pôde deixar os tios para trás e viver com alguém que realmente se preocupasse com ele.
– Mas – Harry sussurrou para si mesmo, em tom de desabafo – isso nunca mais vai ser possível. Sirius está morto, como meus pais.
Desgostoso, Harry afastou-se da janela e caiu em sua cama, em meio aos livros de magia que deveria estar estudando para o próximo ano letivo em Hogwarts. Não estava com a mínima vontade de estudar, não conseguia se concentrar nos estudos. Por um ano inteiro, achou que haveria uma família o esperando quando terminasse os estudos em Hogwarts, quando finalmente se libertaria da casa dos Dursley. Alguém que se preocupasse com ele, que pudesse dar-lhe um forte abraço quando chegasse a casa. Uma pessoa com quem pudesse conversar de seus pais, que os tivesse conhecido, mas a única pessoa que poderia fazer isso agora estava morta.
– Tudo culpa de Voldemort – sussurrou Harry com fúria – é ele quem destrói tudo que há de bom na minha vida. Se não fosse por ele, eu ainda teria uma família e um padrinho...
Harry socou o travesseiro com raiva, e deitou-se olhando para o teto. Edwiges piou baixinho novamente, olhando para o garoto na cama, abriu as asas e voou pela janela, desaparecendo nas brumas em busca de seu jantar.
Sozinho no quarto, Harry ainda remoía seu ódio contra Voldemort e seus asseclas Comensais da Morte quando duas enormes corujas marrons irromperam de repente pela janela aberta para dentro do quarto, quase o matando de susto. Harry estendeu a mão instintivamente para a varinha, que estava apoiada no criado-mudo ao lado da cama, enquanto as duas corujas descreviam uma curva graciosa no quarto e pousavam nos pés de sua cama.
Uma delas carregava um brasão de Hogwarts no peito e trazia um pergaminho selado na pata direita. Harry reconheceu imediatamente uma das corujas de Hogwarts, que traziam as listas de livros para o novo ano letivo. Ela deixou o pergaminho na cama e, estufando o peito, levantou vôo e saiu pela janela. A outra coruja, que era maior que a primeira, carregava um pesado pacote de papel pardo que também deixou cair na cama. Ela também possuía um brasão no peito, mas era bem diferente do brasão de Hogwarts e Harry não conseguiu reconhecê-lo. Lembrava uma espada ereta ladeada por duas serpentes que se entrelaçavam ao seu redor, mantendo suas cabeças afastadas da lâmina e viradas para fora.
Harry nunca tinha visto aquele brasão antes, e olhou para a coruja, desconfiado. Poderia ser um truque de Voldemort, ou de seus Comensais da Morte, e ficou imaginando o que é que haveria de tão pesado dentro daquele pacote.
Harry aproximou-se do envelope de Hogwarts primeiro, verificando se o lacre da carta havia sido violado, rompido ou se a carta havia sido de alguma forma enfeitiçada, mas tudo parecia normal pelo lado de fora. Harry abriu a carta, com a varinha nas mãos e olhando de soslaio para o pacote misterioso, e dois pedaços de pergaminho caíram do envelope sobre a cama.
Um deles havia sido escrito com a letra floreada e precisa que Harry imediatamente reconheceu como sendo a caligrafia da Profa. McGonagall, diretora da casa da Grifinória à qual pertencia Harry, num pergaminho timbrado com o brasão da escola. Nele estava escrita a lista de livros necessários ao próximo ano letivo, assim como o sempre presente aviso de que as aulas começariam no dia primeiro de Setembro e que seria necessário embarcar na Plataforma Nove e Meia, em Londres.
Harry olhou para o outro pergaminho, e seu coração deu um pulo. Era um bilhete pequeno, mas a caligrafia fina era inconfundivelmente familiar. Pertencia ao diretor da Hogwarts, Dumbledore, e Harry se sentiu um pouco constrangido ao lembrar-se que, no ano anterior, havia destruído vários itens da sala do diretor por um acesso de fúria causado devido à perda do padrinho. O bilhete dizia o seguinte:
Caro Harry,
Como vão as coisas com você? Espero que esteja tudo bem, e que esteja gozando de boa saúde. Estou lhe enviando esta carta para colocá-lo a par de uma solicitação feita a mim pela Sra. Weasley, mãe de seu amigo, o Sr. Ronald Weasley.
Como eles passarão o resto das férias de verão na casa de campo de uma amiga, no condado de Kent, ela pediu-me para indagá-lo se deseja acompanhá-los por um passeio no campo durante o resto de suas férias.
Como seu guardião, em face dos recentes acontecimentos, devo dizer que ficaria muito feliz se você acompanhasse a Sra. Weasley e seu amigo Ronald neste passeio. Acho que fará bem a você.
Sinceramente,
Alvo Dumbledore
Harry leu o bilhete com atenção, desconfiado. Um passeio por Kent, na casa de campo de uma amiga? Aquilo era muito estranho, decididamente suspeito e possivelmente perigoso. E se fosse uma armadilha de Voldemort? Como saberia se não estavam pretendendo tirá-lo da casa dos tios, para levá-lo para longe dos olhos dos membros da Ordem da Fênix, pudessem matá-lo sem levantar suspeitas? Olhou as costas do bilhete, como se estivesse procurando algo que denunciasse que ele fosse falso, mas não encontrou nada ali.
Olhou para o pacote trazido pela coruja desconhecida, em cima da cama, e sua desconfiança redobrou. A curiosidade em seu peito aumentando cada vez mais, ameaçando vencer o bom senso de não abrir o pacote, mas a vontade de descobrir o conteúdo levou a melhor. Deixando a carta de Hogwarts de lado em cima da cama, pegou o pacote nas mãos e sentiu que era pesado e bastante maciço. A sua preocupação desapareceu por alguns instantes quando olhou para o papel de embrulho e viu a caligrafia caprichosa da amiga Hermione, mas sabia que não poderia deixar-se enganar por uma ninharia como letras em se tratando de Voldemort e seus Comensais da Morte. Com um puxão decidido no papel pardo de embrulho, fez um rasgo suficientemente grande para descobrir o que era que havia recebido.
Debaixo do papel, Harry pôde ver o que parecia ser um livro couro azul muito grosso e bastante gasto, adornado com pequenas filigranas de uma prata já bastante enegrecida pelos séculos. Uma das bordas que se revelara no grande rasgo que Harry havia feito mostrava páginas feitas de um pergaminho amarelado e roído por traças, e uma lombada grossa do mesmo material da capa, onde com muito esforço podia-se ler as letras em prata “Lend...”. O restante estava oculto pelo papel de embrulho.
Harry tinha que admitir, se os Comensais ou Voldemort haviam lhe mandado o livro, estavam fazendo um excelente trabalho de pesquisa a respeito de seus melhores amigos. Um livro velho e gasto, absurdamente comprido e provavelmente muito chato – pensou Harry com um sorriso – era o presente que mais certamente se poderia esperar de uma garota como Hermione, que estudava como se a vida dependesse de cada linha de todos os livros nos quais conseguisse colocar seus olhos. Logo após este pensamento, sentiu um pouco de vergonha por estar sendo tão duro com a garota. No seu terceiro ano na escola, recebera um Kit de Manutenção de Vassouras da amiga, um presente que decididamente adorara receber.
Rasgou o resto do papel de embrulho e pousou o livro sobre a cama. O couro grosso, como percebeu agora que o papel havia sido retirado, possuía minúsculas escamas por toda a sua extensão, mas que em vários pontos já haviam caído e deixavam grandes lacunas. Faltavam alguns dos protetores dos cantos do livro, e algumas letras da lombada estavam tão gastas que era quase impossível ler o título “Lendas Mágicas do Século XII - Sergei Splinterson”, e o livro possuía fechos de prata onde se podia enxergar uma pequena fechadura, obviamente utilizada para trancar o livro e mantê-lo fechado. Quando pegou o livro nas mãos para vê-lo mais de perto, ouviu o retinir de uma pequena chave de metal caindo no assoalho de madeira de seu quarto, e ao olhar percebeu que era um modelo antigo, mas com um segredo muito complicado, feita de prata polida.
Harry pegou a chave do chão desconfiado, e colocou os dois sobre a mesa gasta do quarto que usava como escrivaninha. Sabia que não deveria abrir o livro, que era perigoso e não deveria confiar que ele viera da amiga. Rony já o havia alertado uma vez sobre livros que hipnotizavam pessoas para que nunca mais parassem de ler, e outros que faziam a pessoa falar em rimas o resto da vida. Também já tivera uma experiência nada agradável com livros de Voldemort, em seu segundo ano em Hogwarts, quando uma memória do jovem Voldemort dominara a mente de Gina, a irmã de Rony, para que abrisse a Câmara Secreta de Slytherin e libertasse um terrível Basilisco para acabar com todos os bruxos mestiços e nascidos-trouxas da escola. Na ocasião – pensou Harry com um aperto no coração que ele não pôde refrear – Gina quase morrera quando fora exposta ao mal que aquele diário continha, e que havia sugado quase toda a vida dela para se fortalecer o suficiente para sair das páginas do livro. Não poderia correr tal risco novamente até ter certeza de onde o livro viera.
Havia ainda, anexo ao papel de embrulho, uma carta dobrada endereçada a ele. Harry desdobrou o papel com cuidado, e viu que a carta também tinha a caligrafia de Hermione:
Caro Harry,
Desculpe estar mandando esta carta adiantada, mas meus pais e eu estaremos viajando para a casa de meus avós neste final de semana, e provavelmente não poderei lhe mandar nada como presente de aniversário amanhã. Como estávamos passando pelo Beco Diagonal hoje à tarde para comprar alguns materiais que estavam em falta, resolvi que lhe mandaria o presente hoje mesmo.
Encontrei este livro na Floreios e Borrões e achei que você gostaria, já que há muitas histórias interessantes nele que acontecem no período que aprendemos nas aulas de História da Magia com o Prof. Binns...
Harry se segurou para não rir alto e acordar os tios. Nunca conseguira ficar mais do que dez minutos atento às infinitas aulas do Prof. Binns, o fantasma que dava aula de História da Magia em Hogwarts. Duvidava que alguém jamais tivesse conseguido prestar atenção a tudo que o professor falava – com a exceção de Hermione, é claro.
...e isso pode ajudá-lo nas aulas do próximo ano, já que acho que você conseguiu os N.O.M.s necessários para continuar com a matéria até os N.I.E.M.s no final do ano que vem.
Por falar nisso, não consigo esquecer que as notas estarão chegando esta semana! Será que fui bem? Estou realmente preocupada, acho que errei umas dez questões do questionário de Transfiguração de McGonagall... 100 questões era demais, estava muito nervosa no dia, espero que não tenha errado tudo isso.
Bom, acho que é isso. Abraços, Harry, e feliz aniversário para você! Rony comentou alguma coisa sobre convidá-lo para ir à Toca na próxima semana, mas me parece que os pais dele estão muito ocupados para isso. Se precisar de mim, estarei de volta no final de semana que vem.
Não me mande corujas essa semana, meus avós são trouxas e não sabem nada sobre mim!
Abraços,
Hermione.
Harry colocou a carta de lado, junto com a que recebera de Hogwarts. Definitivamente parecia a amiga, mas uma pontinha de desconfiança ainda pairava sobre a cabeça dele, de forma que pegou uma velha blusa que pertencera ao seu primo Duda – todas as suas roupas haviam pertencido ao primo algum dia, os Dursley nunca gastaram um centavo em roupas para Harry – e amarrou o livro com ela. Colocou a chave num barbante comprido que encontrou num dos cantos do quarto e amarrou-a ao fecho de metal do livro, para que não a perdesse. Enfim, atirou o livro no fundo de seu malão de escola e colocou o resto de suas coisas por cima dele. Quando visse os amigos no trem perguntaria a Hermione sobre o presente. A garota ficaria feliz de ver que tomara precauções uma vez na vida.
Harry caiu na cama, o corpo cansado e a mente voando alto. As perguntas não deixavam de surgir em sua mente, numa confusão enorme. Hermione estava indo para a casa dos avós, então não poderia se corresponder com ele por algum tempo. Mantivera contato freqüente com os amigos durante o verão através do correio-coruja, mas evitara escrever sobre Voldemort, a Ordem da Fênix ou a AD – o correio poderia estar sendo vigiado de perto por espiões – e sentia falta de ter com quem conversar sobre estes assuntos que tanto martelavam a sua cabeça. Dumbledore comentara que talvez fosse viajar com os Weasley, mas Rony havia comentado com Hermione dele ir à Toca. Sentia saudades dos amigos, e definitivamente sentia saudades da casa de Rony, a melhor casa de bruxos que ele já visitara na vida.
O relógio marcou uma da manhã. Edwiges já havia retornado de seu vôo noturno, com um suculento rato morto como recompensa, e agora estava tranqüilamente devorando seu jantar dentro da gaiola. Harry sentia o sono começar a levar a melhor sobre as suas preocupações, as pálpebras estavam pesadas e a cabeça começava a divagar sobre coisas absurdas e sem sentido.
Snape e Draco riam de sua cara durante uma aula de Poções, enquanto o conteúdo de seu caldeirão ganhava vida e criava tentáculos venenosos para tentar agarrá-lo. Rony voava desesperado com sua vassoura, tentando defender o gol da Grifinória de centenas de Pufosos que a Murta Que Geme lançava contra ele. Harry andava pelos corredores do castelo para a próxima aula, mas quando entrou na sala havia uma Gina em cada uma das carteiras e Hermione estava dando a aula, gritando que ele era irresponsável porque esquecera de se vestir para a aula. Todas as Ginas da sala gargalharam de deboche, e ele percebeu horrorizado que tinha ido à aula vestindo apenas uma cueca suja. Um enorme dragão de cabelos louros e couro azul lia um livro de ponta cabeça, apoiado na cabana de Hagrid. Ele usava um colar de tampas de garrafa que Harry reconheceu como sendo de Luna Lovegood, e quando Harry se deu conta ele era uma grande chave que o dragão agarrou e enfiou num buraco de fechadura que ficava no teto da cabana. Harry ouviu uma gargalhada fria que sabia ser de Voldemort, e que vinha de dentro do buraco da fechadura, então ouviu a maldição letal ser pronunciada, um raio de luz verde vinha velozmente em sua direção, mas não podia fugir. Ele era apenas uma chave. Gritou por socorro o mais alto que pôde, e sua cicatriz começou a queimar tanto que luzes piscaram em sua visão...
Então ele viu que não era a maldição mortal. Algo se movia na direção dele com a velocidade de um raio, emitindo um rugido tão feroz que Harry jurou que o bicho iria despedaçá-lo ali mesmo. Ele não conseguiu definir os contornos da criatura, mas viu com nitidez os dentes afiados arreganhados em fúria, as garras poderosas e afiadas como navalhas levantarem-se para deferir o golpe fatal, e sua cicatriz doeu de forma tão aguda que ele achou que a cabeça explodira.
Harry acordou suado na cama. O dia começava a raiar na Rua dos Alfeneiros, mas a névoa espessa ainda não tinha se dissipado. Ele se levantou rapidamente, enxugando o suor do rosto e massageou a cicatriz dolorida, a cabeça latejando tão forte que parecia um tambor onde batiam com força. Com uma das mãos comprimindo a cicatriz, Harry cambaleou até a porta e a abriu, caminhando lentamente até o banheiro da casa. Despiu-se, abriu o chuveiro e deixou a água cair sobre o corpo, não conseguindo pensar em mais nada a não ser o desejo de que a dor parasse de martelar a sua cabeça. Quanto tempo ficou lá ele não soube, mas quando a cabeça finalmente parou de doer ele ouviu alguém bater na porta como se fosse derrubá-la.
– SAIA DAÍ AGORA MESMO, MOLEQUE! – rugiu uma voz de touro raivoso que Harry imediatamente reconheceu como a do tio, Valter Dursley – Já faz meia hora que está aí dentro e não vou gastar mais um centavo de água com você, seu imprestável!
Harry ouviu os passos do tio, que parecia afundar o assoalho da casa, afastar-se da porta decidido. Harry pensou em ficar mais um pouco debaixo do chuveiro experimentando aquela deliciosa sensação da dor ser levada embora pela água gelada, mas alguns segundos depois da saída do tio a água abruptamente parou de cair. O tio provavelmente fechara o registro para impedi-lo de gastar mais água.
Bufando de raiva, Harry enxugou-se e saiu do banho, dando de cara com o primo Duda no corredor, aparentemente esperando para poder usar o banheiro também. Isso enfureceu ainda mais Harry, que sabia que Duda gastava horas tomando demorados banhos que pareciam nunca servir de nada, pois continuava com o mesmo fedor de banha curtida que sempre o acompanhavam para onde fosse.
Apesar de ser maior que Harry em altura e peso, e seus músculos houvessem se desenvolvido bastante durante o ano de treinamento de boxe que o tio pagava para ele descarregar sua “energia contida”, Duda havia aprendido muito bem a temer Harry e não provocá-lo. Tinha medo do que podia acontecer caso se ofendesse o primo, e a idéia de ser transformado em uma lesma ou num sapo não pareciam lhe agradar – apesar de Harry achar que melhoraria muito a aparência de porco de Duda.
Harry virou-se para o primo e teve uma vontade quase irresistível de descontar sua raiva e sua frustração nele. Duda morria de medo de magia, e ameaçá-lo com qualquer coisa desse tipo era uma certeza de vê-lo tremer de medo, mas resistiu bravamente à vontade de se fazê-lo. Já aprendera os resultados de desafiar o Ministério da Magia e utilizar magia em casa, uma vez que bruxos menores de idade eram terminantemente proibidos de utilizar magia fora da escola. No ano anterior, se Dumbledore não tivesse intervindo no meio de seu julgamento por ter utilizado um feitiço do Patrono para salvar-se e ao primo, teria certamente ido parar em Azkaban, a terrível prisão dos bruxos.
No momento em que decidira dar as costas a Duda e continuar seu caminho pelo corredor, sua tia Petúnia apareceu pela porta que levava ao quarto de Duda, carregando uma enorme bacia com roupas sujas. Harry viu enojado as roupas sebosas e úmidas de suor que o primo usava em seus treinos de boxe pendendo nojentamente pelas abas da bacia, e imaginou o fedor horrível que deviam estar exalando. Para a sua surpresa, sua tia caminhou diretamente até ele e largou a bacia em seus braços.
_Tome, coloque estas roupas para lavar na máquina e estenda no varal as que já estão limpas. E não quero ouvir nenhuma reclamação de você hoje – acrescentou com firmeza quando um Harry indignado abriu a boca para protestar – Você vai fazer o que mando enquanto viver de graça sob este teto.
Harry achou que seria melhor ir sem protestar e evitar problemas naquela manhã. Não se sentia muito disposto a iniciar uma discussão acalorada com os Dursley, mesmo que estivesse coberto de razão. Torceu o nariz para o fedor azedo que exalava das meias sujas estrategicamente colocadas em cima da roupa suja, e desceu sem reclamar as escadas que levavam à área de serviço da casa de sua tia.
Sob o sol quente de manhã de verão, Harry caminhou da área de serviço até o varal pela terceira vez enxugando o suor do rosto com as costas das mãos. Tia Petúnia tinha triplicado o número de roupas que ele deveria lavar, desta vez vinda de seu quarto e do quarto dos tios. Tio Valter tinha passado por ali e ralhado com ele algo a respeito de “arrancar a sua pele se sua roupa aparecesse manchada”, e Duda assistia o trabalho forçado de Harry prazerosamente da sala, de onde podia vê-lo através da vidraça tomando uma colossal taça de sorvete de flocos. Olhando daquele jeito parecia um grande e rosado porco comendo lavagem. Seu rosto e a papada estavam lambuzados pelo sorvete que escorria do canto de sua boca flácida.
Harry tornou a olhar para o varal à sua frente e percebeu que já o lotara com as roupas enormes de Duda e do Tio Valter, que pendiam inertes com a falta de vento. Ele olhou mais uma vez para o primo, sentado na sala da casa vendo ele sofrer nas mãos da tia, e desejou profundamente que o primo sofresse um grave acidente naquele momento e se quebrasse da cabeça aos pés. Duda pareceu ter percebido o olhar de fúria de Harry, porque um segundo depois seu sorriso desapareceu e ele enveredou para dentro da casa, desaparecendo da vista. Caminhando para um outro varal mais próximo da sebe densa, mas bem aparada que crescia nos fundos da casa de seus tios, Harry colocou a bacia de roupas no chão e no momento que se abaixou para pegar a primeira peça, ouviu um ruído estranho como se algo murmurasse às suas costas.
Ele se levantou com um salto, sacando a varinha dos bolsos com uma agilidade que surpreendeu até ele mesmo, e ele deu um passo atrás apontando para a sebe escura à sua frente. Apurou os ouvidos, tentando distinguir algum outro som vindo da folhagem, mas não conseguiu distinguir nada além do farfalhar das folhas no parco vento que soprava naquela manhã. Encheu-se de coragem e caminhou cautelosamente, tentando fazer o mínimo de ruído possível, em direção à fonte do primeiro barulho. Aproximou-se devagar das folhas densas que ocultavam a sua visão do interior da sebe e, com a varinha erguida e pronta para lançar a azaração mais forte que veio em sua mente, puxou a vegetação com um gesto brusco.
O que viu deixou seus cabelos em pé, e ele teve que se segurar para não soltar um berro de espanto.
Em meio a uma grande poça de sangue coagulado que já se infiltrara pela terra fofa e úmida, estava um homem de meia-idade que Harry jurou que estava morto. Seus cabelos já meio esbranquiçados estavam desalinhados e várias manchas de sangue pontilhavam o seu couro cabeludo. Seu corpo estava numa posição estranha com os membros dobrados em posições ridiculamente impossíveis, aparentando que deveria haver vários ossos quebrados nos braços e nas pernas. O homem usava uma enorme casaca marrom que havia sido completamente dilacerada pelos ataques que haviam cortado todo o corpo dele e, Harry percebeu com espanto, havia uma varinha quebrada a seus pés. Um bruxo. O sangue cobria tudo o que Harry conseguia enxergar do corpo do desconhecido.
Harry não acreditava no que estava vendo, parecia bizarro demais para ser verdade. Havia um bruxo semimorto caído na sebe dos fundos da casa dos Dursley, sangue escorrera para todos os lados e ele não ouvira nada na noite anterior mesmo tendo ficado acordado até tarde. Seria um Comensal da Morte que a Ordem não tivesse podido fazer desaparecer dali? Balançou a cabeça, incrédulo. Duvidava que qualquer membro da Ordem, isso incluindo o auror aposentado Olho-Tonto Moody, pudesse fazer tal estrago em alguém com um feitiço. Eles teriam sido bem mais sutis em imobilizar um oponente e provavelmente o teriam removido antes que algum trouxa pudesse encontrá-lo.
O homem gemeu baixinho alguma coisa ininteligível, e o rapaz se surpreendeu em constatar que o moribundo ainda parecia consciente mesmo tendo perdido tanto sangue. Harry se abaixou e tomou o pulso do homem desfalecido, e percebeu que provavelmente ele não poderia sobreviver mais do que algumas horas – se é que chegaria a tanto. Precisava de ajuda rápida e o único lugar que sabia ser capaz de tratar ferimentos de bruxos se encontrava longe, numa antiga loja de roupas localizada em Londres.
Desesperado, olhando para os lados para ver se a tia Petúnia havia percebido que várias de suas roupas limpas agora estavam esparramadas pelo gramado dos fundos da casa, Harry pegou vários trapos da roupa do homem caído e amarrou nos ferimentos dele, sem saber direito o que estava fazendo nem se estaria ajudando ou piorando o estado do ferido. Levantou-se com um salto, recolheu rapidamente as roupas do chão e atirou-as à bacia, e desatou a correr pela rua colocando a varinha de volta no bolso da calça.
Só havia uma pessoa em toda a sua vizinhança que saberia o que fazer. Que tinha contato com o bruxo mais poderoso de todos os tempos e que participava como vigia de Harry para a Ordem da Fênix em segredo. Não sabia como é que ela poderia ajudar, mas tinha que tentar, tinha que avisar alguém da Ordem o que acontecera o mais rápido possível. Esbarrou em uma mulher de rosto fino e expressão desdenhosa que caminhava no meio da calçada e derrubou-a para cima da sebe de uma casa, lançando para o ar um saco de compras que estava carregando e espalhando o seu conteúdo por toda a calçada. Harry gritou um ofegante “me desculpe”, mas não parou de correr, ouvindo a mulher gritar palavrões às suas costas enquanto virava uma esquina no final da avenida.
A corrida prosseguiu no mesmo ritmo frenético por algum tempo e ele soltou um grito satisfeito quando viu finalmente, algumas casas à frente da esquina que virara, a fachada de uma casa de aspecto antigo e visivelmente mofado. Saltou por cima da sebe agilmente, e se precipitou com toda a velocidade para a campainha ao lado da porta de entrada. Jogou-se sobre ela como se quisesse derrubar a porta, e continuou apertando-a freneticamente até que ouviu uma voz feminina gritar alguma coisa de lá de dentro. Parou, então, de atacar a campainha e permaneceu nervoso em frente à porta, esperando a dona da casa caminhar lentamente até a entrada e abri-la com um puxão nervoso. Por um segundo Harry viu uma expressão de fúria nos olhos de uma senhora baixa e velha, usando um vestido florido e carregando um gato grande e gordo em seus braços, mas a expressão desapareceu instantaneamente e deu lugar a um rosto lívido de susto, como se tivesse visto um fantasma. Ela abriu a boca abobada, olhou para os lados rapidamente e lhe disse num sussurro tão baixo que Harry achou um milagre ter conseguido escutá-lo.
– Harry, ficou maluco? – disse desesperada mal reparando que um outro gato, mais novo do que o que carregava nos braços, saltara de um esconderijo e começava a travar uma batalha de vida ou morte contra o peludo coelhinho de suas pantufas - Não podem nos ver juntos, ou descobrirão tudo!
– Tive... que vir... Sra. Figg... – ofegou Harry, cuja corrida havia decididamente esgotado uma grande parte de suas reservas de fôlego – Lá... casa... ferido... não sei... o que aconteceu...
A velha senhora olhou desesperada mais uma vez para os lados da rua, como se esperasse que a qualquer momento alguém saltasse de trás da sebe gritando que descobrira o segredo que estavam escondendo, aproximou-se de Harry e disse num tom de voz ainda mais baixo que o anterior, de forma que ele teve que se inclinar na direção dela para conseguir entender o que ela estava dizendo.
– Vá para casa, Harry. É perigoso ficar aqui conversando comigo, pode haver pessoas neste momento nos espionando escondidas ou disfarçadas. Não se preocupe – disse ela com um sorriso – há um de nós de vigia para o caso de acontecer alguma cois...
– Não! – disse ele tão energicamente que a Sra. Figg se assustou – Há um homem caído nos fundos da casa de meus tios! Ele foi atacado, não sei pelo que, mas havia sangue por todo o lado e se a senhora não conseguir chamar alguém para ajudá-lo ele vai morrer! Precisa avisar alguém, chamar Dumbledore, Moody, Lupin ou qualquer um que possa levar aquele homem para o St. Mungus!
A Sra. Figg recuou como se Harry a tivesse esbofeteado, deixando cair o gato no chão e levando as mãos à boca como se sufocasse um grito silencioso. Alguns segundos depois , ela se recompôs e acenou afirmativamente com a cabeça para o garoto, indicando que compreendera a mensagem.
– Eu... eu avisarei alguém... vá até sua casa, Harry, você não pode ser visto conversando comigo, me desculpe... – disse ela, com o rosto expressivamente preocupado – Mandaremos alguém verificar o que aconteceu na casa de seus tios e... quando tivermos alguma novidade... você vai ficar sabendo, eu prometo.
Para Harry, isso era o bastante por enquanto. Despediu-se da Sra. Figg com um aceno de cabeça, e desceu para a rua, desta vez passando pelo portão de madeira branca que separava o jardim de grama mal aparada da calçada, colocou as mãos nos bolsos e saiu apressado pela rua, cuidando para fazer um caminho um pouco diferente do que fizera para vir, para o caso de alguém o estar observando descer a rua. Atravessou uma rua paralela àquela onde moravam os seus tios, tentando contornar a quadra pelo lado oposto, sentindo o cheiro do almoço sendo preparado nas casas sem graça que preenchiam aquele lado da cidade. Harry quase invejava aquelas pessoas que não precisavam se preocupar se Lord Voldemort ou algum de seus seguidores assassinos estava atrás deles. Quando avistou a casa dos Dursley ao longe vindo pela direção oposta da Rua dos Alfeneiros, ele ainda caminhava com passos rápidos e olhava constantemente por cima do ombro para verificar se não estava sendo seguido. Mal se voltou na direção do número quatro e viu que havia um carro que ele nunca vira antes estacionado na frente da casa dos tios. Curioso, aproximou-se com cautela da porta de entrada para ver o que estava acontecendo.
Era uma pequena e muito gasta van branca que Harry identificou como sendo de uma empresa que fazia reforma de sofás e camas, ou pelo menos era isso que estava escrito na lateral do veículo com uma tinta verde insossa e desbotada. O condutor do veículo, um homem de aparência forte vestindo um grande chapéu que lhe caía sobre os olhos e lhe ocultava a face, lia despreocupado um jornal apoiado no volante e fumava um cachimbo que Harry achou estranhamente familiar, mas que não conseguiu associá-lo a ninguém que se lembrasse naquele momento. A porta da sala estava entreaberta, mas todas as cortinas haviam sido fechadas, fato que o rapaz considerava extremamente suspeito se tratando dos Dursley já que eles mantinham as janelas bem abertas para exibir vaidosamente aos vizinhos todos os objetos caros que alguém pudesse enxergar por cima do muro.
Aproximando-se da porta de entrada, Harry ouviu alguém falar lá dentro alto o suficiente para ser ouvido apenas no interior da sala, e aquilo se parecia incrivelmente com o rosnado ameaçador que o tio sempre lhe reservara para os momentos que estava falando sobre Hogwarts, seus amigos ou magia. Como a possibilidade de se deparar com qualquer uma destas três alternativas antes do fim das suas férias de verão lhe parecesse extremamente convidativa, e caso o tio estivesse falando com outro bruxo como Harry tinha certeza absoluta que ele estava, a perspectiva de encontrar um rosto conhecido na sala da casa dos tios era muito grande. Avançou para a maçaneta e percebeu pela fresta que podia enxergar do interior da sala de estar, para o seu prazer, que o primo estava imóvel sob uma poltrona, com aquela expressão de terror que sempre ficava quando um bruxo entrava na casa perfeitamente normal dos Dursley. Sorrindo, Harry abriu a porta decidido.
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