Cap. 28



As memórias haviam chegado ao fim. Agora, ali estava ele, ainda de pé, junto da janela, onde passara a noite inteira recordando os fatos mais marcantes do seu passado. Tudo por causa do convite para o recital de Margareth.
Já era dia, apesar do sol mal iluminar a rua, oculto pelas nuvens cinzentas que marcavam presença naquela manhã.
Com as costas da mão, ele enxugou as lágrimas que as recordações lhe haviam provocado e respirou fundo, pronto para mais um novo dia, com a sua nova vida. Foi então que escutou um barulho e se virou para ver o que era: Tonks acabar de aparatar no meio da sala e o olhava, com ar desesperado. Estava loura. O cabelo rebelde caía desalinhado sobre seus ombros, como uma cascata disforme: o cabelo de Mary. O nariz também estava diferente, ligeiramente torto, um pouco curvo e com a ponta arrebitada: o nariz de Mary.
Tonks entendera tudo: as suas dúvidas, a sua dor, as suas lembranças… e com os seus poderes de metamoformaga, se transformara numa espécie de cópia mais alta e mais magra de Mary Hallow.
Lupin não conseguia falar. Não sabia o que dizer, como reagir… Jamais tivera qualquer intenção de magoá-la, mas a verdade é que nunca conseguira esquecer Mary e ultrapassar a culpa de ter sido o culpado pela sua morte, ainda que em legítima defesa. Trancara o seu coração para o amor durante tantos anos, se achando indigno de viver um amor, perigoso demais para qualquer mulher… Mas Tonks se apaixonara por ele, apesar do seu ar doente e cansado, apesar das roupas esfarrapadas, apesar da sua pobreza e, acima de tudo, apesar do fato dele ser um lobisomem. Tal como Mary, Tonks não se importava. “Menina tola, inconseqüente!”, era o que ele pensava de vez em quando… mas como poderia resistir a alguém que o amava por tudo aquilo que ele era? Não ia negar que se sentia constrangido do lado dela quando Tonks resolvia usar o cabelo com cores chamativas, nem que o entristecia a sua independência. Ela não era o tipo de mulher frágil, que gostasse que cuidassem dela… e ele adorava cuidar… Apesar de tudo, ela o amava como ele era e trouxera alegria à sua vida. Por mais que ainda se sentisse preso à memória de Mary, memória essa que ele se sentia traindo, no fundo sabia que o que Mary mais desejaria era que ele fosse feliz… E agora, ali estava Tonks, querendo ser igual a ela, com um brilho aflito nos olhos escuros, inquirindo:
- Você gosta mais de mim assim?
Ele não respondeu logo. Porém, uma lágrima que rolou dos olhos dela o fez se aproximar, levando um dedo aos olhos dela, para secá-la. Forçou um sorriso, tentando esconder a angústia que tomara conta dele, e replicou, tentando brincar:
- Eu gosto de você de qualquer jeito, sua tonta… até de cabelo curto, espetado e rosa-chiclete. – Soltou uma pequena gargalhada, mas ela soluçou:
- Você ainda ama essa Mary, Remus. Eu sei, eu vejo nos seus olhos.
- Shhh… - Fez ele, levando o dedo indicador aos lábios dela. – Mary está morta. Ela é passado. Você está viva… é presente… o meu presente. O que importa é o aqui e o agora.
Pela primeira vez, ele tomou a iniciativa de beijá-la. Foi um beijo doce, misturado com lágrimas salgadas. Lágrimas de felicidade. Tonks estava feliz. Ninguém sabia o dia de amanhã. Ninguém sabia o que poderia acontecer no meio daquela guerra terrível que estavam vivendo, mas ela queria aproveitar cada momento de felicidade com aquele homem maravilhoso… e que aquela paixão fosse e infinita enquanto durasse… e se algum dia tivesse que acabar, deixaria uma linda lembrança no seu coração.
Abraçados, os dois saíram da sala, deixando-a vazia. O convite de Margareth em cima do sofá… e, do lado de fora da janela onde Lupin passara a noite recordando o passado, uma estranha mulher loura, pálida, de olhos vermelhos e caninos afiados, chorava. Dos seus olhos escorriam lágrimas espessas. Lágrimas de sangue… e foi então a vez dela ir buscar algo ao baú das suas lembranças…

Remus a seguira até a orla de uma floresta. Ela parara junto de uma árvore e ele se aproximou.
Num ápice, ela o agarrou e abriu a boca, mostrando os caninos afiados, querendo se cravar no pescoço dele.
- Mary… - Falou Lupin, com doçura, tentando trazê-la à realidade. Em vão. Algo dentro dela a impedia de voltar a ser a jovem meiga de sempre. Algo a impedia de ser humana… e ia mordê-lo, sem dó nem piedade. Não o reconhecia… Algo dentro dela se debatia contra o monstro que tomara conta de si, mas estava tomada por um desespero que não a deixava ter controle sobre os seus atos nem mesmo reconhecer o homem que estava prestes a morder. Lutou com todas as suas forças contra aquele poder maligno. Lutou, lutou, até perder as forças. Conseguira. Não ia mais mordê-lo… e foi então que o viu cair na sua frente. Alguém o atingira com um galho de árvore na cabeça, deixando-o desacordado, ao mesmo tempo que um bando de vampiros os cercavam.
- Remus! – Gritou Mary, desesperada e apavorada, correndo para o corpo inerte do lobisomem. Abanou-o, mas ele não deu acordo de si. – Remus, acorda, por favor! – Chamou, soluçando. Nada. Ele estava desmaiado, não ia acordar tão cedo e ela tinha que levá-lo para casa quanto antes, cuidar dele, mesmo tendo que passar por todos aqueles vampiros, mesmo tendo que enfrentar o seu maior medo. Tinha que fugir dali com ele.
Nesse momento, um dos vampiros a puxou por um braço e exclamou, encarando-a, com um sorriso gélido e falando com um forte sotaque francês:
- Já chega, mocinha!
- Eu não sou uma mocinha! – Gritou Mary, se debatendo, em desespero. Só então fixou o olhar no homem que a agarrava e sentiu como se tivesse acabado de ser petrificada: era Gaston LeRouge, o vampiro que a mordera.
- V… você?! – Gaguejou, em pânico.
Ele sorriu, malévolo:
- Eu não disse que, um dia, eu ia voltarr para te levarr comigo, chérie?
- Não!! – Berrou ela, conseguindo se soltar sem saber como. Pegou do chão um galho de árvore e imediatamente o espetou no coração do vampiro, que soltou um uivo de dor.
- MORRAAAA!!!! – Gritou Mary, a plenos pulmões. Ele ia morrer. Ela estava livre. Livre para sempre, se a fosse verdadeira a lenda que dizia que a morte de um vampiro libertaria daquele mal todos quantos ele havia mordido.
Do peito de Gaston jorravam litros e litros de sangue. Contudo, ele ria. Os outros vampiros riam com ele. Gargalhadas sonoras, geladas e afetadas. Só então ela percebeu que um simples galho de árvore jamais poderia ter o mesmo efeito que uma estaca de madeira. Estava rodeada de vampiros. Remus estava desmaiado. Gaston não morreria e ela não tinha para onde fugir.
- Boa tentativa, chérie! – Elogiou Gaston. – Isso foi uma atitude digna de uma de nós. Você não pode negarr. É a forrça… do sangue. – Acrescentou com um tom terrivelmente irónico. Macabro mesmo.

Logo depois, ela fora levada pelos vampiros para uma terra distante, na Roménia, perto da Transilvânia, sede das festas vampíricas, onde Gaston a obrigara a se casar com ele e logo depois a levara para o seu palacete no interior da França. Se tornara uma escrava do marido, que mantinha guardado a sete chaves um revólver com uma bala de prata, com a qual ameaçava matar Lupin, caso ela o deixasse saber que continuava viva.
Gaston era Duque e Mary se tornara uma duquesa. A pouco e pouco, fora se conformando com a sua situação. Aprendera a viver como uma verdadeira vampira aristocrata, que dava festas e ia a outras, acompanhando o marido, vivendo entre a França e a Transilvânia.
Contudo, o seu coração não se corrompera e não esquecera Remus nem por um só dia.

Naquela noite, Gaston a autorizara a ver Lupin. De vez em quando fazia isso, com a condição de que ela não deixasse que ele percebesse a sua presença… e ali estava ele, nos braços de outra mulher. Ele a esquecera. Outra lágrima rolou pelas suas faces… e outra… e outra… umas de sangue, outras normais, de água, de sal…
Acabara. Não havia mais esperança de um dia se libertar do jugo de Gaston e voltar para os braços de Remus. Restava-lhe um consolo: pelo menos, ele encontrara alguém que poderia fazê-lo feliz. Era doloroso. Não conseguia deixar de sentir o coração apertado de ciúme e decepção… Mas era melhor assim. Se ele fosse feliz, ela também seria. Isso a consolou, apesar da certeza de que, agora, mais do que nunca, estava condenada à escuridão eterna.
A vampira se envolveu na sua longa capa preta de veludo, fechou os olhos, respirou fundo e se transformou num morcego, voando em direção a um horizonte escuro de nuvens carregadas. Tão carregadas que, naquele momento, a chuva se abateu sobre a terra, como se os céus fossem cúmplices das lágrimas de Mary Hallow.

FIM

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