O Apagueiro



Capítulo 10
O Apagueiro


Fuja. Agora.
Adolf sabia que era vigiado. Podia sentir muito bem. A presença do desconhecido era próxima. A Pedra... a coisa que trazia no pescoço... alertava-o. A voz... a voz na cabeça dele... repetia a mensagem – fujagorafujagora! fujagorafujagora! – incessantemente. A voz que gritava, e que quase o levava a loucura. A voz Dele.
Dobrou a esquina. Postes iluminavam a rua coberta de paralelepípedos na noite escura, sem estrelas e lua. Becos e vielas surgiam em túneis negros. Fazia muito frio e ele estava desprotegido, desagasalhado. Também estava faminto. A garganta seca, os olhos fundos, os cabelos desalinhados e úmidos.
Por onde andara? Usara o poder da pedra por um longo período, mas ela começava a assustá-lo. Havia períodos que caía num sono profundo e acordava em lugares distantes e desolados. Já não atacava as pessoas. (Mestiços e prostitutas e efeminados que sujam a Grande Pátria da Alemanha!) Tinha medo. A pedra, ou o que havia nela, queria levá-lo a algum lugar – não sabia onde. Momentos de inconsciência eram mais freqüentes que momentos de lucidez agora. A última vez que adormecera, despertara numa região gélida e solitária, em meio a uma intensa nevasca, com o corpo arroxeado e duro por causa da friagem. Desesperado, desejou com todas as suas forças retornar a Viena e, por sorte, conseguiu transportar-se... daquele jeito. Com o Poder. O Poder que o dominava, quando ele, Adolf, é quem deveria dominá-lo.
Temia que fosse tarde demais para voltar atrás. Por mais de uma vez, tentara se livrar da pedra. Mas então se lembrava da Alemanha (da sua Alemanha) e dos judeus infectos (como aquele que o rejeitara na Academia de Artes), e concluía que sem a força que emanava do grotesco talismã suas ambições – a purificação, a perfeição – seriam impossíveis. Havia sido a Providência Divina quem lhe enviara aquele presente, aquele dom. Seria heresia recusá-lo. O preço a pagar seria alto, contudo. Porém estava disposto a sacrificar-se pela Raça Ariana. Ainda que pagasse com a vida ou que o Diabo lhe levasse a alma.
Às vezes, acometiam-lhe pensamentos sobre pactos com o demônio. Sua mãe, que havia sido católica, dizia sempre que o Diabo se manifestava de formas estranhas e curiosas. E se fosse o Diabo naquela pedra em lugar de Deus?
Não!, Adolf replicava para si. Era o Divino! Tinha de ser Ele! Antes o Diabo procuraria os judeus infecciosos ou a negrada maldita – que eram seus chegados. Pois a profanação do sangue, a deterioração eminente da pureza alemã, isto sim provinha do Maligno. Ele lutava por Deus! Lutava pelo Sagrado! Lutava pela sobrevivência de seu povo. Um herói, evidentemente. A Providência Divina o reconhecera, no fim de contas. Era o Escolhido!
Então por que o poder o enfraquecia? Como se lhe tirasse a vida...
Provação! Provação! Provação!
Sim!, ele pensou, rindo debilmente. Deus lhe enviara uma provação! Um teste! Nenhum poder – nenhum grande poder! – seria entregue de mão beijada. Era preciso merecer. Era preciso pagar o preço. “Tudo na vida tem seu preço”, já dizia seu pai, que tomara estivesse no fogo do Inferno.
Ele se esgueirou por outra rua; uma praça pública despontava mais adiante.
“Provarei ser digno, meu bom Deus”, murmurava. O queixo batendo. “Vento frio... noite fria... fria...”, o ar que expelia pela boa e pelas narinas condensava-se em névoa.
Abraçou-se ao próprio corpo. Os lábios azuis. As pernas cambaleando. Tropeçou num paralelepípedo solto. Enfraquecido, deixou-se cair. Rolou pelo chão, ralando a pele aqui e ali. Fechou os olhos e foi dominado pelo cansaço (fazia três noites não dormia) e pela fraqueza de seus músculos magros. “Eu assumo daqui, Trouxa”, ouviu antes de perder-se num sono nebuloso.
No instante seguinte, Adolf tornou a levantar. Porém já não era o mesmo. Era outro alguém. Era a coisa que se escondia na pedra.
Era Grindewald.
“Quem está aí?”, disse ele. O tom de sua voz era rouco e inflamado. Anos e anos após seu confinamento, sua extraordinária arrogância continuava presente, uma constante imutável, somente comparável a sua perversidade indescritível, que o corpo frágil que ocupava disfarçava tão bem.
Elevou um dos braços para as sombras ao redor e repetiu a ordem. Nada se movia. Mas o mais antigo dos bruxos não podia ser facilmente engabelado. Retrucou um feitiço e fez com que seu perseguidor fosse revelado.
Caído ao chão, derrubado do alto de uma marquise, estava Tessio – o Sem-Varinha que outrora surrupiara o corpo de Bargaroff do cemitério. Ele se contorcia na calçada; o corpo alfinetado por centenas de milhares de agulhas invisíveis.
“Quem é você?”, indagou Grindewald, apertando rosto de Tessio com o pé.
O Sem-Varinha gemia de dor.
“O que você fez comigo?”, gritava, pálido. O feitiço agora se fazia sentir como estiletes varando-lhe a pele cor de bronze. Obviamente, ele sabia que aquilo era apenas um encantamento. Mas a dor alucinante era real. Ela era bem real.
O pé de Grindewald (o pé de Adolf) pressionou-lhe o nariz até fazê-lo sangrar.
“Resposta errada.”
Navalhadas, facadas, machadadas; era o que Tessio juraria percorrendo-lhe o corpo. Ele sentia-se enlouquecer. A dor tamanha o fazia ver estrelas. A noite parecia mais turva e o frio mais presente. Não conseguia pensar em nenhum contra-feitiço que pudesse salvá-lo.
“Tessio! Tessio! Eu me chamo Tessio!”, berrou aos céus. A sola do sapato sujo de lama do garoto – Tessio o julgava apenas um menino – enterrava-se na sua boca, dificultando-lhe pronunciar as palavras corretamente.
Grindewald tirou o pé do rosto do infeliz para que ele pudesse falar. Começava a articular a pergunta seguinte quando Tessio reagiu. Estirando a mão com a palma bem aberta, Tessio bradou um feitiço estuporante qualquer. Desprevenido, Grindewald foi lançado para trás. Aterrissou com um baque seco na rua molhada.
“Seu filho da puta...”
Tessio preparou outro golpe. No entanto, a expressão maravilhada no rosto do garoto fê-lo retardar o ataque.
“Você é um Sem-Varinha!”, exclamou o garoto, às gargalhadas. “Por um momento, pensei que fora descoberto pela maldita Ordem da Fênix.”
Tessio, que não era muito inteligente e pouco sabia da Relíquia, ficou sem entender nada.
“Então você... é um dos nossos?”
“Eu sou seu nobre senhor, Grindewald. Temporariamente resumido a esse corpo patético de Trouxa.”
“Grin... Grindewald?!”, Tessio repetiu, incrédulo.
Grindewald – escondido por trás do rosto jovem de Adolf Hitler – sorriu. Uma tremeluzente radiação azul iluminava os traços suaves daquele rosto. Afinal, Tessio percebeu a Relíquia no pescoço do garoto. Ela brilhava intensamente como a mais bela jóia.
“Oh, Meu Senhor”, Tessio ajoelhou-se. “Eu... não sei como me dirigir a Vossa Excelência... estou muito emocionado. Não posso acreditar que é mesmo você.”
“Não pode?”
“Sim, eu posso... não foi o que quis dizer... Claro que é você!”
“Tudo bem... Tessio? Este é o seu nome, não é? Tessio.”
“É, Meu Senhor. Peço perdão pelo golpe... eu não sabia, eu não imaginava...”
“Ninguém está falando disto, está?”, retrucou Grindewald. “Não teve a menor importância.”
“Mil perdões! Mil perdões!”, Tessio continuava repetindo.
“Cale-se!”
Grindewald tornara a ficar sério. Espremeu os olhos e vasculhou as redondezas.
“Tem mais alguém com você?”, perguntou a Tessio.
“Não, Meu Senhor. Eu estou só.”
“Minha preciosa Fawkes foi reavida?”
“Não, Meu Senhor. Não conseguimos reavê-la. Peço-lhe mil perdões.”
“Pare de se desculpar o tempo inteiro”, rugiu Grindewald. “Isto me irrita”
Tessio silenciou-se.
Grindewald aguçou os ouvidos. Se a Ordem da Fênix tinha a posse de Fawkes, então ele poderia ser facilmente localizado.
De repente, gritou:
“Tome! Pegue a pedra!”, arrancou-a do pescoço e estendeu-a para o Sem-Varinha.
“O que foi? O que está acontecendo?”, excitou Tessio. Olhava para todos os lados e só via desolação na rua vazia.
“São eles! A Ordem da Fênix! Este corpo é frágil. Não posso dar conta de todos, e nem você. Vamos! Pegue a pedra e suma daqui!”
Um feixe vermelho surgiu das trevas e atingiu Grindewald no peito. Tessio estirou o braço na direção do disparo. Disparou contra aquele ponto. Parou. Aguardou.
“Meu Senhor, como você está?”
Grindewald não respondeu.
“Meu Senhor?”
“O que está havendo?”, era a voz de Adolf, que retornara a consciência de seu corpo. “Quem é você, negro?”, disse para Tessio, temendo que se tratasse de um assalto. Procurou pela pedra. Ela desaparecera. Sentiu um calafrio. Oh, não!... o negro a roubara, pensou.
“Devolva-me a pedra”
“Mas, Meu Senhor, eu não estou com ela”
Foi quando Adolf avistou a pequena preciosidade azul caída na sarjeta. Rastejou-se para lá. A meio caminho, um par de botas interrompeu-lhe a passagem. Um homem alto, de cabelos ruivos e olhos incrivelmente azuis postava-se a sua frente e mirava-o de cima, imponente.
Era Alvo Dumbledore.
“Dumbledore”, Tessio o reconhecera. “Afaste-se do garoto. Ele é nosso.”
“Está enganado. Não vou permitir que faça mal a este menino”, respondeu Dumbledore, firme.
“Fazer-lhe mal...”, Tessio ia dizendo. Então compreendeu tudo. Dumbledore não sabia quem o garoto era. O que ele representava agora. Era muita sorte sua, pensou.
“Sim, eu irei matá-lo”, caçoou Tessio. “Esse Trouxa asqueroso que ousou profanar a relíquia do nobre senhor Grindewald.”
“Não enquanto eu estiver aqui”, Dumbledore não podia imaginar o tamanho de seu erro. “Também vingarei Bargaroff. Farei os Sem-Varinha pagarem caro por terem-no assinado.”
“Palavras, palavras”, retrucou Tessio.
Os bruxos se posicionaram para lutar. Dumbledore trazia sua varinha, o outro, seu punho forte. Ambos eram bruxos poderosos. Mas Tessio era o mais experiente em batalha.
Dumbledore atacou primeiro. Tessio esquivou-se e contra-atacou. Dumbledore protegeu-se com um feitiço-escudo, uma decisão pouco acertada. Limitado ao próprio escudo, foi repetidas vezes atacado pelo seu opositor. Tessio não permitia que Dumbledore atacasse. E o escudo roubava-lhe todas as energias. Fora encurralado, pensou Dumbledore, sentindo a proteção ceder pouco a pouco. De onde estava, não via o garoto. O garoto devia estar com a Relíquia ou o Sem Varinha já teria fugido, conjeturou. Precisava sair daquela situação depressa. Era insuportável. Num golpe repentino, mirou a varinha para o chão e mandou algumas dezenas de paralelepípedos pelos ares. Um destes atingiu Tessio na altura do ombro, e ele recuou praguejando.
Dumbledore aproveitou-se de sua distração e correu para Adolf. O garoto estava caído no chão, pasmo com a batalha que presenciara. Então, pensou Adolf. Existiam outros com o Poder. O negro tinha o Poder – era o que o chocara. Ele não podia ter! Não podia! Não podia!
“Rápido, siga-me”, disse-lhe Dumbledore.
“Quem é você?”, quis saber.
“Não importa. Eu vim salvá-lo.”, pegou o garoto pela gola da camisa e puxou-o para cima.
“Hei, não me puxe assim”, replicou Adolf.
“Quer morrer?”, Dumbledore apertou o passo em direção a praça adiante.
Adolf encolheu-se ante aquela voz poderosa.
“Escute: eu estou fraco. Preciso me recuperar. Portanto não podemos aparatar.”
O Sem-Varinha era incrivelmente poderoso, mais do que julgara a princípio. Naqueles breves minutos que durara a batalha, ele conseguira levá-lo a exaustão. Dumbledore reunia suas últimas forças para que não desmaiasse.
Entraram na praça. Não havia sinal de Tessio. Mas ele não tardaria a aparecer.
“Você tem a Relíquia?”, perguntou Dumbledore.
“Quê?”, disse Adolf, surpreso. Mas compreendeu que o homem se referia a pedra que trazia no bolso da calça. “Sim, está comigo.”
“Ótimo. Aqui, vamos nos esconder atrás dessas árvores.”
Os dois esgueiraram-se por entre os arbustos cuidados da praça, desmantelando a grama bem aparada e quebrando o caule das flores e plantas. Uma árvore grande mantinha-os razoavelmente escondidos. Porém as luzes da praça, espalhada por toda parte, faziam do esconderijo pouco seguro. Se ao menos estivesse tudo escuro, pensou Dumbledore.
“Dê-me a Relíquia”
“Você não parece muito bem”, retrucou Adolf. “Melhor que eu fique com ela”
Dumbledore olhou-o com desconfiança.
“Sabe, ela faz coisas... com a gente”, o garoto apressou-se em dizer. “Nos enfraquece. Como se nos roubasse a vida. Eu sei que parece loucura, mas... é verdade.”
“O quanto você sabe sobre ela?”
“Pouco”, mentiu Adolf. “Um cara – um cara velho – apareceu certa noite. Ele cambaleava pelo meio da rua. Pensei que estivesse bêbado. Fui... fui saber se ele estava bem. E ele me deu isto. Disse que o segredo precisava ser protegido. Que segredo era este?”
“Será melhor você não saber.”
“Mas...”
“Se souber mais do que já sabe”, disse Dumbledore. “Eles o matarão.”
“Aquele homem? O negro?”, Adolf assumira quase instantaneamente que o negro era o inimigo.
“Ele também. Mas eu me referia as pessoas que represento. Eles não acham seguro que uma pessoa que esteve em contato com a Relíquia por tanto tempo continue viva. Acreditam que a Relíquia poderia possuí-lo... de alguma forma. Já aconteceu no passado. Mas com bruxos – bruxos que desejavam este poder maléfico – e não com alguém como você – um Trouxa.”
“Trouxa?”, repetiu Adolf.
“É quem não é Bruxo.”
“Você e o negro são bruxos?”
Dumbledore assentiu.
“Convenci os outros a me deixarem vir sozinho. Eles estão próximos daqui, no entanto. Um sinal meu, e dezenas deles aparecerão. Mas não podem encontrar você – não posso permitir que matem um inocente desta maneira. Não foi sua culpa que meu amigo Bargaroff aparatasse justo onde você encontrava-se naquele momento. Foi um infeliz acaso, não é mesmo?”
Um vulto moveu-se a alguns metros dali. Tessio caminhava pela praça com o nariz erguido – como se farejasse o ar.
“Esse negro novamente”, murmurou Adolf para Dumbledore. “Nós deveríamos matá-lo.”
“Não gosto de matar, mas bem que gostaria de matar este.”
“Então mate”
“É melhor não me arriscar. Pode ser que eu erre o alvo. Estou muito debilitado. Vamos aguardar.”
Adolf apertou a pedra em seu bolso. Poderia facilmente matar aquele crioulo dali do esconderijo. Mas então o bruxo saberia que ele mentira sobre a Relíquia – não fora assim que ele a chamara? –, saberia que ele a conhecia bem. Era melhor não fazer nada... por enquanto.
Tessio aproximava-se com as mãos estendidas. Quem o visse andando pela praça daquele jeito, pensaria que fosse cego.
“Ele vai nos ver”
“Malditas luzes elétricas!”, era a primeira vez que este pensamento acometia Dumbledore.
“Faz alguma coisa”, sussurrou Adolf. A pedra firme em seu punho fechado.
“Mas o quê?”
“Eu sei lá”
“Só se... mas eu não tenho certeza... não sei pra que serve...”, Dumbledore pensava em voz alta.
“Do que você está falando?”
“Do apagueiro de Bargaroff”, retirou de dentro da capa um pequeno artefato dourado e apresentou-o para Adolf. “Isto é um apagueiro.”
“E o que ele faz?”
Dumbledore riu.
“Gostaria de saber”
Para a infelicidade destes dois, naquele instante o vento mudara de direção e suas vozes chegaram aos ouvidos treinados de Tessio. O Sem-Varinha sorriu e partiu para cima deles.
“Incedium”
Imediatamente, os arbustos e a árvore que os protegiam romperam em chamas laranjas. Dumbledore disparou as cegas contra o Sem-Varinha.
“Venha. Precisamos fugir.”
Mas era tarde. Tessio já os havia alcançado.
“Expeliarmus!”
A varinha de Dumbledore voou pelos ares e desapareceu.
Adolf correu para trás de Dumbledore. Se o negro matasse o bruxo ruivo, pensou. Aí sim atacaria.
Foi quando uma coisa estranha aconteceu.
Num redemoinho de fogo, ardente e brilhante como a luz do sol, um pássaro – o pássaro mais maravilhoso que Adolf já vira em toda a sua vida – surgiu entre Dumbledore e Tessio. O fogo roçou brevemente o nariz escuro de Tessio e encrespou-lhe um pouco a pele.
“Maldição!”, bradou para Fawkes. “Avada Kedrava!”
Para a sorte do Sem-Varinha, Fawkes foi atingida pelo feitiço mortal e explodiu em chamas. Suas cinzas desapareceram no chão escuro.
Acuado e desarmado, Dumbledore fez a única coisa que lhe era possível fazer. Ergueu o apagueiro que Bargaroff construíra tempos atrás e acionou-o, esperando por nada menos que um milagre. Ainda viu o rosto de ébano de Tessio fitá-lo repleto de ódio mortal antes que sobreviesse a escuridão total e toda a praça afundasse nas trevas profundas. E no silêncio.

Continua no próximo capítulo...

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