Ataque na Plataforma 9/2
Capítulo Cinco
Ataque na Plataforma 9/2
O verão chegava ao fim em Londres. Os dias mais quentes iam dando lugar ao frio nebuloso do outono. As roupas folgadas e leves desapareciam das pessoas, que agora eram mais comumente vistas de casacos e blusões. A neve ainda demoraria a cair, mas o vento frio que a precedia já podia ser sentido. Os mendigos espreitados na entrada da Estação de King’s Cross batiam os dentes por causa desse frio.
Alvo Dumbledore, vestido como qualquer trouxa, sacou a varinha-mágica, tomando o cuidado de escondê-la sob a manga do sobretudo, e lançou um feitiço de reanimação sobre os mendigos, reunidos num embolo para absorver o calor uns dos outros. Imediatamente, uma fumacinha começou a brotar das orelhas de cada um deles e seus maxilares pararam de tremer. Dumbledore se sentia pessoalmente incomodado com esse tipo de situação. Gostaria de fazer alguma coisa por aquelas pessoas, mas tinha muito que fazer e não podia interferir nos problemas dos trouxas.
De uma certa maneira, estava infligindo a lei por ajudá-los. Contudo ninguém precisava ficar sabendo. Precisava?
Os mendigos conversavam animadamente agora, e assim como não viram o bruxo chegar, não o viram sair. Dumbledore quase trombou com uma senhora quando subia os degraus da estação – pediu-lhe desculpas e seguiu adiante.
A Plataforma 9/2 ficava na coluna entre as plataformas 9 e 10. Era uma passagem mágica que se abria apenas duas vezes ao ano para os bruxos e bruxas que estavam cursando a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. No resto do tempo, a passagem encontrava-se empiricamente fechada. E só podia ser aberta em ocasiões especiais, por ordem da própria direção do colégio.
Essa era uma das tais ocasiões especiais. Dumbledore fora convidado a reunir-se com o Diretor de Hogwarts, professor Dippet. O Expresso de Hogwarts aguardava-o do outro lado da barreira – e Dumbledore, que fora aluno de Hogwarts, não teve problemas para atravessá-la. Foi andando como quem não quer nada para o muro da coluna especial, completamente distraído em seus pensamentos – quem o visse agora poderia jurar que se chocaria contra a parede –, e então simplesmente atravessou a solidez dos tijolos. Acontecera tão rapidamente que nenhum trouxa deu-se conta. Dumbledore já caminhava pela plataforma invisível aos trouxas.
O maquinista do Expresso de Hogwarts acenou com o braço. Dumbledore foi até ele e apertou-lhe a mão como se os dois fossem velhos conhecidos. O trem lançava uma nuvem de fumaça sobre suas cabeças.
“É só embarcar”, alertou o maquinista, correndo em seguida para o seu posto no primeiro vagão.
Dumbledore entrou por um dos vagões intermediários e se instalou numa cabine mais ou menos pelo meio do trem. Sentado no velho Expresso pela primeira vez em muitos anos, Dumbledore foi tomando de nostalgia, revivendo o tempo de garoto. Havia se esquecido após tanto tempo da emoção de viajar na locomotiva, cruzando os campos e lagos, rumo ao grande castelo, enquanto o azul do céu se dissolvia no negrume da noite lá fora.
Passaria o fim-de-semana inteiro em Hogwarts, o que seria bom para matar as saudades. Mas já havia se decidido quanto à proposta de Dippet. Diria não. Dippet e Bargaroff estavam certos quanto aos seus sentimentos, sem dúvida, só que não podia abandonar tudo, assim sem mais nem menos, para dedicar-se ao magistério. Talvez dali dez anos... se ainda o quisessem...
O trem começou a locomover-se, ganhando velocidade, apitando, deixando para trás a plataforma.
Dumbledore recostou-se na poltrona pensando em tirar um cochilo.
Quando acordou, o castelo de Hogwarts se insinuava na paisagem emoldurada na janela. O maquinista surgiu no corredor.
“Dormindo?”
“É... um pouco”, mentiu Dumbledore, que caíra no sono a viagem toda.
“Tomei a liberdade de pedir que levassem a sua bagagem, embaixador”
“Não precisava ter se incomodado”
“Como não?”
Dumbledore trocou um último cumprimento com o maquinista e saiu para o frio da noite do povoado de Hogsmead: o único povoado inteiramente mágico da Grã-Bretanha. Mais à frente, uma carruagem o aguardava. Uma chuva fina caía quase sem se fazer sentir.
Um homenzinho corcunda e negro esperava por ele ao lado da carruagem. A carruagem, apercebeu-se Dumbledore, estava amarrada ao dorso de um animal horrendo; que ele reconheceu como sendo um Trestálio. Somente quem presenciou a morte de outrem podia ver um Trestálio, de fato. E não era uma visão agradável.
Dumbledore desviou os olhos. Desde os tempos de colégio que evitava olhar para aquelas coisas. Cumprimentou o homenzinho negro. Ele se apresentou como o Guarda-Caças de Hogwarts, mantendo o olhar fixo no chão, como se tivesse medo de Dumbledore – como se este fosse desintegrá-lo com um olhar.
“Frio...”, comentou Dumbledore.
“Eh, eh”, respondeu entre os dentes o Guarda-Caças (ele não mencionara seu nome), alçando em seguida com destreza para o topo da carruagem, onde se assentou.
“Se quiser pode vir comigo na cabine. Eu não me importaria, em absoluto”
“Naum, aum, aum”, foi a resposta.
Dumbledore não insistiu.
Subindo pela colina (os Trestálios eram animais extremamente fortes), Dumbledore viu com o coração cheio de emoção o castelo de Hogwarts crescer no horizonte, ao ponto em que ele não podia acompanhar todas as torres e torrinhas, os olhos percorrendo de um lado ao outro. A carruagem passou pelo portão de ferro que se fechou em seguida com um estrondo enorme.
Nada mais nada menos que o Profº. Dippet esperava pelo embaixador na soleira da escadaria principal do castelo.
“Meu caro Dumbledore, fez boa viagem, espero”
“Ah, não tenho cochilado tão bem há anos, Dippet”
“Bernard, precisa ver aqueles centauros na Floresta Negra, não é mesmo?”, comunicou o diretor ao Guarda-Caças, que se retirou com uma reverência tímida.
“Nenhum problema eu espero”, disse Dumbledore.
“Apenas rotina”, disse Dippet desinteressado. “Bem, imagino que esteja faminto, Dumbledore”
“Oh, sim, sim”
“Então, venha. Pois o banquete está nos esperando”
Ao longe, Bernard, o Guarda-Caças, desaparecia na escuridão, cambaleando de maneira peculiar, o pequeno corcunda.
Foi somente no último dia de sua estadia na escola de Hogwarts que Dumbledore tocou no assunto dos Sem-Varinha e do anel de fênix roubado. Mas Dippet, ao contrário do que ele acreditara, pouco sabia a respeito desse assunto. A fraternidade dos Sem Varinha, ele dissera, era muito antiga, e há tempos não se ouvia falar dela. Quanto ao anel, pela descrição parecia pertencer a Ordem da Fênix. Mas a Ordem também estava extinta, pelo que se sabia. No passado, fora um grupo vigoro de caçadores de bruxos e bruxas das trevas. No entanto, há mais de um século o grupo se desfizera, em circunstâncias desconhecidas.
“A sua história entretanto não deixa de ser curiosa, Dumbledore”, Dippet comentou pouco antes de sua partida. “Talvez fosse o caso de pedir proteção especial do Ministério. Antigamente, a Ordem dos Sem-Varinha costumava ser poderosa... e perigosa”
“Ou talvez não passe de um trote”, Dumbledore arriscou.
“Mas aquele anel...”
“Acha mesmo necessário um guarda-costas?”
“Quem sabe”, disse Dippet sombrio. “Porém vamos acreditar por hora que tudo não passe de logro de um assaltante qualquer querendo desviar a atenção do Ministério. Nenhum Sem-Varinha foi visto, tudo isso não passa de conjecturas”
“E esperemos que continue assim.”
No final da tarde, o Expresso de Hogwarts parou na plataforma 9/2 da estação de King’s Cross. Seu único passageiro desembarcou solitariamente, seus passos ecoando sinistramente na plataforma vazia. As luzes bruxuleavam na semiluz.
O maquinista veio para despedir-se.
“Foi um prazer”
“O prazer foi meu”, arrematou Dumbledore. “Está frio aqui”, observou.
“Quando entravamos em Londres, vi uma grande tempestade sobre a cidade”
“Éé”
Subitamente, o maquinista foi atirado para trás por uma força invisível. Dumbledore pegou a varinha, quase que por instinto.
“Largue isso”, disse uma voz do outro lado da plataforma. “Largue ou ele morre”
Um homem com capa impermeável amarela, o capuz puxado sobre a cabeça, olhava de uma distância segura para Dumbledore, enquanto com o braço estendido e palma da mão aberta fazia o pobre maquinista do Expresso de Hogwarts ficar dependurado no ar, de cabeça para baixo. Ele não usava varinha.
“Vamos, largue a varinha. Isso é uma ordem”
Dumbledore empunhou a varinha para ele.
“Eu disse... para... largar.”, erguendo o braço livre para Dumbledore, o Sem-Varinha murmurou um feitiço, que Dumbledore repeliu gritando:
“Protego!”
“Expeliarmus!”, desferiu o Sem-Varinha, em seguida.
A varinha de Dumbledore oscilou em sua mão e então foi lançada para cima, indo parar a uma distância considerável do bruxo.
“Agora não se mexa, Dumbledore. E não tente mais nenhuma gracinha”
Dumbledore ergueu as mãos para cima em rendição.
O Sem-Varinha moveu as duas mãos como um estranho malabarista, fazendo assim o maquinista ir contra o muro de tijolos na direção oposta a sua. O crânio do maquinista fez um som oco quando bateu no muro, e ele caiu esparramado no piso, imobilizado.
Dumbledore contemplou a cena, incrédulo. Era como estar no meio de um pesadelo louco. De repente, tudo estava de cabeça para baixo, e ele rodopiava no ar, vendo a poça de sangue alargar-se ao redor da cabeça do maquinista morto.
O Sem-Varinha estendeu as mãos, uma energia brilhante envolvendo-as, de um verde-escuro. Dumbledore fechou os olhos, temendo a morte. Era o seu fim, muito antes do que poderia desejar. Foi quando ele inesperadamente voltou ao chão, machucando a cabeça na queda, mas nada grave.
Fawkes, ele não sabia como, surgira repentinamente e atacava o seu agressor. As garras do pássaro cravaram-se na textura plástica do impermeável e num segundo a fênix levava o Sem-Varinha por um passeio sobre a plataforma 9/2. O Sem-Varinha se debatia, atemorizado. Fawkes largou o bruxo sobre o Expresso, deu um rasante, e atacou-lhe a face, arrancando um naco de pele e sangue com as garras, inclinando-se para bicá-lo.
O Sem-Varinha gritava.
“Saia de cima de mim, seu pássaro idiota. Saia de cima de mim! Saia!”
Uma corrente de energia passou pelos braços do Sem-Varinha, verde-escura, beirando o negro. Ele agarrou-se a ave fazendo-a explodir numa bola de fogo. Cambaleou para trás, finalmente livre do animal. Os ferimentos cobriam seu rosto de sangue. Merda! Preocuparia-se com isso mais tarde.
Um lampejo prateado passou pela sua orelha esquerda; o sangue brotou ali como uma flor.
Era Dumbledore. Ele recuperara a varinha nesse ínterim.
“Seja você quem for”, ele disse, a varinha apontada na sua direção. “Abaixe as mãos. Agora!”
O Sem-Varinha obedeceu sem pestanejar.
“ Quem é você? O que quer de mim?”
“Eu só quero um abraço”, disse o bruxo do teto do trem.
“Quê?”
O Sem-Varinha abriu os braços como se fosse correr para um abraço, e ao seu comando, o piso sobre os pés de Dumbledore cedeu e se elevou, jogando Dumbledore para trás e para o alto. Quando conseguiu se recompor, o Sem-Varinha havia desaparecido.
Dumbledore ficou a um canto, trêmulo. Fora por muito pouco. Se não fosse por Fawkes... Oh, não! Fawkes! O Sem-Varinha a havia matado! Lágrimas começaram a brotar em seus olhos. Fawkes morrera para salvá-lo. Pobre fênix!
Como se tivesse levado uma pancada, lembrou: Fawkes era uma fênix. As fênix renasciam das cinzas; eram imortais. Levantou-se e pôs-se a procurar por ela. Logo a encontrou junto aos trilhos do Expresso de Hogwarts, se contorcendo, aninhada as cinzas de seu antigo corpo. A ave deslumbrante de outrora não existia mais. Em seu lugar, havia um filhote, pálido, todo enrugado, feio, sem penugem. Mas seus olhos amendoados penetravam o azul dos olhos de Dumbledore da mesma maneira inquiridora.
“Fawkes”, disse, recolhendo-a.
A ave piou baixinho, em reconhecimento.
Após a batalha com o Sem-Varinha, a plataforma 9/2, parcialmente destruída, parecia um campo de guerra. E o silêncio mórbido, quebrado apenas pelo som da chuva, era quase um insulto.
Dumbledore atravessou a barreira mágica para a estação dos trouxas com Fawkes escondida dentro de um dos bolsos da capa. Lá fora, caminhou sorrateiramente pela marquise, evitando a chuva, e quando estava mais ou menos escondido dos trouxas, aparatou, desaparecendo com um estalo entre as fileiras de carros dos trouxas. Imediatamente, aterrissou no átrio do Ministério da Magia da Inglaterra. Sujo e com um pequeno corte sobressaindo na testa, o embaixador chamou a atenção dos guardas assim que eles o avistaram. Saíram correndo para socorre-lo.
Dumbledore abriu a boca para dizer que estava...
... bem. Não se saíra nada bem. Havia aparatado para longe da estação, indo parar num bairro distante que ele não conhecia direito. Uma placa indicava Rua dos Alfeneiros. Aquilo devia ser o Surrey, pressupôs pelo céu.
Ah, aquela fênix maldita! Havia marcado todo o seu rosto de pequenas cicatrizes. Puxou um pouco mais o capuz da capa impermeável sobre o rosto para encobri os ferimentos, não queria chamar a atenção de um trouxa que estivesse inconvenientemente olhando pela janela naquele momento. A chuva caía numa torrente sobre ele.
“Droga”, murmurou. Dumbledore estava alertado de novo. Ficaria mais difícil matá-lo sem despertar suspeitas. Tinha pretendido matar o embaixador e roubar-lhe os cabelos para tomar sua aparência, usando a Poção Polissuco que preparara. Depois destruiria o corpo, e diria aos agentes do Ministério que fora atacado por um bruxo misterioso, o qual assassinara o maquinista do Expresso de Hogwarts. Ninguém desconfiaria de nada, passar-se-ia com facilidade por Dumbledore. Mais tarde, pediria auxílio à Ordem da Fênix utilizando o anel de Bargaroff. Um plano perfeito desperdiçado.
Se Dumbledore entrasse em contato com a Ordem ficaria mais difícil enganá-los, senão impossível. Tinha de agir depressa se não quisesse estragar tudo de vez. E o Mestre não iria ser tão complacente como fora anteriormente.
Ao menos, descobrira o paradeiro de Fawkes. A fênix estava mesmo com Dumbledore como suspeitara. Tinha sido Fawkes que ele fora buscar no quarto de Dumbledore na pensão de Gobbel. De toda forma, foi bom não a ter encontrado daquela vez. O pássaro era mais esperto do que imaginara a princípio, talvez não cooperasse com eles.
Mas cooperaria, pensou, se achasse que ele era o seu querido Dumbledore.
A Fawkes era a chave para encontrar aquela pedra. E ele iria encontrá-la para seu Mestre. Custasse o que custasse!
Continua no próximo capítulo...
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!