Uma Sonata..
Uma sonata para os imperfeitos
"... ,e ela disse com a expressão mais melancólica no rosto.
— Desgraça, meu filho."
(O Vampiro Lestat – Anne Rice)
De novo. Aquela melodia incessante de Apassionata martelava os ouvidos do homem de longos cabelos louros, recostado no batente da porta dupla do salão. As teclas do instrumento eram dedilhadas com perfeita sincronia, ainda assim com paixão e até mesmo furor. As mechas da cor sublime do ouro iam para trás e para frente, como se Draco as comandasse, mas era apenas uma ilusão. A textura sobrenatural daquelas notas fizeram um arrepio correr pelo corpo de seu pai. Desgraça, meu filho. Eram as únicas palavras que lhe vinham a mente, naquela fria noite, a sexta consecutiva que encontrara o menino na luxuosa sala do piano. Sabia o quão perturbadora e deliciosamente fascinante era aquela visão, ah, seu anjo de alabastro se curvando a cada nota, mas simplesmente não conseguia impedir seus pés de o levaram até lá. As cortinas estavam puxadas para cada extremo da janela, onde se via a tempestade rugir por detrás dos vitrais trabalhados em vários tons de carmim. E de novo começava a tortura, volátil como somente a música pode ser, as primeiras notas da melodia de Beethoven. Um trovão rasgava os céus e iluminava de azul metálico, o rosto da pseudo-estátua sentada em frente ao instrumento de dor e paixão de Lúcio. Ele sabia que acontecera algo, quando seu filho chegara para o feriado de Natal. E desde então ele tem se sentado todos os dias depois do jantar naquele salão há muito esquecido na imensidade daquela mansão e tocado aquela sonata maldita. Se ao menos Lúcio pudesse compreender uma ínfima fagulha de tudo o que sua cria estava sentindo. A dor, sim, mas não a física, uma dor moral e sentimental. E, tendo perdido o único fiapo de esperança, aquilo o abateu mais do que todas as torturas que sofrera até aquele dia. Desprezo era, com certeza, o pior castigo que recebera em vida. As teclas do instrumento gemiam com toda aquela fúria tão paradoxal a sua serena figura de estátua-anjo, saído direto do Les Innocents.
“Que se deixe exaurir por esta fúria, pequeno. Mas se lembre que tens um compromisso comigo e não vou aliviá-lo por causa disso.” Era o que os olhos estreitos e lascivos do pai diziam, um pouco antes de dar as costas para o salão onde tocava o seu anjo particular.
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