Magia



Depois de dois dias sem sair do quarto, Harry se sentia mais pálido e mais faminto do que jamais estivera. Talvez a melancolia intensificasse todas as coisas, ele pensou. Sua cicatriz também tinha parado de queimar, e agora só formigava como se fosse uma nota suave da dor lancinante que poderia explodir a qualquer momento de novo. Seu quarto estava uma confusão de livros, jornais, roupas e farelos de pão.



No segundo dia em que não havia aparecido para ver Aurora, ela lhe deixou um recado numa folha de caderno colada na janela.



“Sinto sua falta, seu boboca.”



Ele encarou aquela mensagem por um longo tempo, enquanto a luz do quarto não estava acesa, para que ela não o pegasse desprevenido, olhando e pensando nela. Quando já não aguentava mais olhar para o teto, fazer tarefas, fazer a manutenção da Firebolt ou ler seus livros, ele deixou o quarto e comeu o suficiente para o seu estômago não roncar tão alto, decidindo sair para andar, sorrateiramente pelo quintal dos fundos,  sem ela.



Foi chato, solitário e exaustivo. O sol parecia mais forte sem Aurora e as coisas não pareciam tão brilhantes e bonitas. Até as crianças do parque aparentemente haviam se recolhido em casa para jogar videogame ou ficar na piscina, devido ao mormaço.



Harry voltou para casa sem cerimônia, e esperou o dia passar para que a noite chegasse e ele saísse pela porta como um gato de rua. Foi difícil se distrair, e até tentou sentar na sala para ver televisão com os tios, mas se arrependeu, como de praxe, após ouvir de Tio Valter que eles já estavam  prontos para chamar a funerária para retirar o corpo em decomposição de Harry do quarto.



— Sinto muito por acabar com sua festa. – ele disse quando ia saindo da sala.



— Esse garoto está muito estranho. – Tia Petúnia observou, sem realmente se importar, em voz baixa e ranzinza – Mais do que sempre foi.



Quando finalmente o céu havia se tornado azul anil e ele poderia facilmente passar despercebido pelas sombras, o garoto deixou a casa e começou a se encaminhar pela direção contraria a que costumava seguir. Só a quietude e o ar da noite acalmavam seu animo perturbado, e depois de alguns passos ele já se sentia mais leve, imaginando que dar uma volta em sua Firebolt seria revigorante.



Ele sentiu falta de ouvir outros passos além dos seus, passinhos saltitantes e estalados e, em seu intimo, esperou escuta-los depois de andar por alguns minutos, sem pressa. Mas eles não vieram, e Harry se sentiu decepcionado e sozinho, mas mais bravo consigo mesmo por querer que ela ainda o quisesse perto depois de sumir daquele jeito.



Outro som alcançou seus ouvidos, o de aros de bicicleta girando, e ele logo concluiu que era Duda afim de tirar um sarro com sua cara por razões como ter acordado soado e aos berros nas ultimas noites, por conta de pesadelos que envolviam um rosto ofídico, um cemitério e o corpo de Cedrico Diggory sem vida.



— Cansou dos seus amiguinhos, foi? – ele murmurou alto o suficiente para que o primo o escutasse, porém não foi a voz de Duda que respondeu.



— Eu não tenho amiguinhos. – Aurora respondeu, e emparelhou com ele, deixando a bicicleta seguir sem sua intervenção.



Harry  parou de andar e apenas a observou com atenção, e ela fez o mesmo. Freou sua bicicleta de tamanho médio de cor vermelha, e pela primeira vez estava usando tênis. Os cabelos estavam  soltos, a franja segura atrás da orelha permitindo que ele visse seu rosto. Ela não parecia brava ou chateada, e ele não sabia como sua expressão deveria estar, pois ainda se sentia um tolo, porém estava contente em revê-la.



— Desculpe. – ela disse, olhando para o pé que havia usado para se apoiar no chão ao frear.



— Pelo o que? – Harry questionou, se sentindo mais bobo que nunca.



— Isso é você quem me diz. – a garota deu de ombros, e eles fizeram silêncio.



Harry não sabia como dizer porquê se levantara daquele jeito na estufa e a tinha abandonado sem nenhuma explicação plausível, e ainda não tinha uma para oferecer naquele momento.



— Eu quem deveria me desculpar. – ele retomou a caminhada  e ela o acompanhou mantendo a velocidade baixa.



— Mas você não é muito bom nisso. – eles não conseguiram evitar o riso pela sinceridade dela – Eu não sei realmente o quê se passa na sua cabeça Harry, e você não me deve explicação de coisa alguma, mas se for culpa minha, eu tenho direito de saber  o que fiz, não acha?



Ele queria conseguir ficar bravo com ela por ser tão sensata em alguns momentos e fazê-lo se lembrar de Dumbledore outra vez, mas não conseguiu. Só pôde dar um sorriso triste.



— O quê você fez? – ele deixou as palavras flutuarem  no ar antes que a resposta viesse – Você foi a melhor coisa que me aconteceu nesse verão, e eu não deveria estar aqui com você me divertindo desse jeito.



— O que você quer dizer com... – antes que terminasse sua fala, a bike deu um tranco sobre uma pedra pontuda e se desequilibrou para o lado oposto de Harry, e a garota se estatelou no chão – Ai!



— Aurora! – ele se aprontou em ajuda-la a levantar -  Machucou?



— Não, tô bem. – ela aceitou as mãos que Harry estendia e levantou do chão, limpando os braços e a perna do lado que havia caído, deixando visível uma escoriação  leve na pele – Que pedrinha mais...



— Olha, se não é o esquisito e a namoradinha dele. – a voz de Mike se elevou sobre a de Aurora, seguida de risadas de chacota.



— Merda. – a garota murmurou, e Harry não encontrou uma definição melhor para aquela ocasião enquanto levantava a bike com um único movimento.



Mike e Duda lideravam o grupinho de garotos que os olhavam com olhos de lobo, como se eles dois fossem pedaços de carne grandes e suculentos.



— Foi chorar para sua namorada, Potter? – Duda disse com uma voz semelhante a que as pessoas usavam para falar com crianças pequenas – Cansou do travesseiro?



— Cala a boca, seu porco! – Aurora cuspiu para ele, e uma onda de risadas explodiu de novo.



— Você se acha muito corajosa, não é? – Mike se aproximou dela de forma ameaçadora – Não pense que vai se safar desta vez.



— Caí fora. – Harry disse lentamente e se colocou entre eles,  ainda segurando firme o guidão da bicicleta.



— Não mesmo. – um garoto alto de braços musculosos atrás de Duda estalou os dedos com barulho exagerado.



Antes que Harry pensasse em tentar estalar o pescoço para intimida-los, Aurora o puxou pelas costas da camisa e gritou alguma coisa, ele se virou, subiu na bike e esperou sentir o peso dela na garupa, no segundo seguinte já estava pedalando com toda força que podia para o mais longe que pudesse, desejando que Aurora se segurasse com força para não cair.



— Volte aqui, seu merdinha! – o garoto musculoso gritou, empurrando Mike para o lado – Você e essa..



— Tampe os ouvidos! – Harry gritou para Aurora, mas ela gargalhou o mais alto que pode para abafar as palavras sujas do outro, e pelo pequeno espelho retrovisor ele pode vê-la fazer aquele gesto obsceno com as mãos de novo.



— Não é covardia fugir de uma luta que não se pode ganhar. – ela disse mais para si mesma do que para ele – O nome disso é sabedoria.



Há muito tempo Harry não andava em uma bicicleta, e a sensação do vento lançando seus cabelos para trás foi maravilhosa, e ele riu sem medo das ladeiras ou das curvas fechadas que precisavam fazer; se conseguia manobrar uma vassoura, uma bike não iria intimida-lo. Queria poder ver o rosto de Aurora, saber se seus olhos estavam fechados de excitação, só conseguia ver os cabelos escuros voando pelo retrovisor.



Não estava muito afim de parar quando, depois de passarem por um muro coberto por cerca viva, alguma coisa surgiu no caminho, invisível, porém cintilante, como um campo de força, e fez eles baterem com estrondo e rolarem para o chão juntos.  Harry nem teve tempo de se preocupar com a dor em suas costelas, ou o galo em sua cabeça, nem mesmo de se virar para olhar Aurora, caída ao seu lado segurando o cotovelo e choramingando alguma coisa sobre pedras e rodas, ele precisava saber o que tinha impedido sua fuga.  



Ele foi engatinhando até o local onde a bike a pouco colidira com o nada, e levantou a mão para tentar atravessar a barreira invisível. Sua mão foi e voltou sem nenhum empecilho, mas ele ainda não estava louco, sabia o que tinha visto e era pura mágica. Harry olhou em volta freneticamente, tentando identificar um movimento anormal, um farfalhar de folhas, uma ponta de varinha ou uma capa.



— No que a gente bateu? – Aurora já estava sentada, vasculhando o chão com os olhos.



— Eu não... Eu não sei. – ele ainda não havia desistido de encontrar a origem daquele feitiço, e ficou de pé para andar ao redor.



— O que está procurando? – ele não respondeu, mas levou a mão ao bolso do jeans onde carregava a varinha, e não a encontrou ali – Isso é seu?



Ele se virou para encara-la e viu sua varinha nas mãos da garota, ela a girava entre os dedos para analisar com curiosidade, até levantar os olhos para ele, um pouco confusa. Deduziu que a varinha provavelmente deveria ter caído do bolso quando ele rolou no chão.



— O que é isso? – Harry já sentiu sua língua se enrolar, sem saber como sair daquela situação sem se denunciar.



— Um pedaço de madeira. – ele deu de ombros, e se aproximou para tira-la delicadamente de suas mãos e recoloca-la no bolso – Esquece isso, vamos sair daqui, alguma coisa me derrubou, e eu não sei o que foi.



— Isso é seu. – falou com seriedade, enquanto Harry a ajudava a levantar, ela tinha ganhado uma nova escoriação no cotovelo e nos joelhos – Porque você anda com um pedaço de madeira?



— Porquê isso importa? – ele evitou os olhos dela – Você se machucou mais?



Ela se desvencilhou das mãos dele e o encarou com as sobrancelhas unidas, como se alguma coisa nele simplesmente não estivesse certa. Harry apenas devolveu o olhar, sem balbuciar uma única palavra.



— Não, não machuquei. – Aurora lhe deu as costas e agarrou o guidão da bike para levanta-la – Vamos embora.



Ele sabia que ela não aceitaria ficar sem respostas, mas não havia como ser de outro jeito. Antes de subir na garupa, Harry ainda olhou envolta mais uma vez, intrigado e assustado.



— Harry, vamos. – ela chamou de novo, impaciente, e ele acatou.



Voltaram em silêncio absoluto, e tudo em que o garoto pensava era o quê ou quem havia criado aquela barreira no caminho deles, e porquê.



Quando pararam na frente do n°4, ele temeu que ela entraria em casa sem dizer nada, e isso seria o suficiente para não se aproximar mais, mesmo que lhe doesse muito. No entanto, assim que desmontou, ela travou a bike no lugar e o fitou com intensidade, de um jeito diferente, e isso foi como um balde de gelo caindo no estômago.



— Supostamente, não é para eu te entender, é? – ela falou – Posso ir embora qualquer dia dessa semana, e a única coisa da qual terei certeza é que você é uma pessoa boa e amável, mas que esconde alguma coisa, e que odeio quando me olha desse jeito quando te questiono, porquê eu não sei resistir e acabo cedendo e deixando para lá porquê os seus olhos são lindos, mas ai eu não consigo dormir depois.



Ela disse tudo muito rápido, gesticulando com as mãos e balançando nos pés parada no mesmo lugar, bufando no final e cruzando os braços.



— Eu deveria ir para casa. –  inspirou profundamente, vendo que Harry não correspondia ao seu apelo.



— Deveria. – foi só o que ele disse, mas sua voz estava afetada. 



— Você quer que eu vá? – os olhos cor de mel o fixaram impetuosamente.



— Não. – um alarme disparou dentro da cabeça dele, mas foi inevitável dizer essa única verdade  – Você quer ir?



— Harry. – ela disse seu nome do jeito mais terno e doce que poderia, quase como uma melodia – Você também está sendo a melhor coisa sobre o meu verão.



— Não quer me evitar? – ele pensou na expressão dela ao encontrar a varinha, e depois quando descobriu que era dele.



— Não. – ela mordeu os lábios – Preciso esquecer tudo o quê aconteceu para continuarmos andando juntos, não é? 



— Precisa. –  se sentia idiota por responder tudo com uma ou duas palavras, mas estava com medo de soltar qualquer coisa que o entregasse, sem querer – Você é curiosa.



Ele disse aquilo com um ligeiro tom de desafio, porque duvidava que ela aceitasse não saber seus segredos sem lutar mais um pouco.



— Sou, sou mesmo. – ela pareceu muito cansada de repente, descruzou os braços e passou as mãos pelo rosto, como se quisesse espantar o sono.



Sem aviso prévio, se aproximou e envolveu seus braços no pescoço de Harry num abraço aconchegante, mas sem aperto, e de inicio ele não teve reação, até que suas mãos foram para as costas dela, e ele relaxou sentindo o toque dos dedos pequenos em sua nuca.



— Estou frustrada, mas ainda não consigo desgostar de você. – ela cochichou, fazendo um sorriso surgir em seu rosto.



Alguns segundos depois, ela o soltou e destravou a bike, se dirigindo para casa sem virar para olha-lo outra vez. Harry sentiu falta da sensação do corpo pequeno e quente dela pendurado no dele pelo resto da noite.


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