Née Black
“And one day she discovered that she was fierce, and strong and full of fire, and that not even she could hold herself back because her passion burned brighter than her fears."
- Mark Anthony
Faux pas. Décadas antes, Narcissa havia aprendido o significado daquela expressão em meio às diversas aulas de etiqueta - cortesia da mui antiga e nobre casa dos Black e de sua mãe Rosier - que assistira junto a suas irmãs. A tradução de ‘faux pas’ era literalmente ‘passo em falso’, e o termo era constantemente usado para indicar uma enorme quebra de etiqueta, causada de forma intencional ou não, que sempre levava a momentos constrangedores.
Bellatrix sempre fora especialista no faux pas intencional, com sua incontrolável necessidade de dar tapas de luva de pelica em todos a sua volta, e Andrômeda, enquanto convivera com as irmãs, era seu oposto, sempre fazendo comentários acidentais sobre o que não devia e constrangendo a si mesma e a outros. Narcissa, talvez mortificada pelas irmãs mais velhas, levara sempre a sério demais essa lição, e raramente cometera aquele tipo de indiscrição. Acreditava até mesmo que nunca havia tido aquele problema, sempre tão atenta à etiqueta e às regras, sendo a dama que sua mãe sonhara. Até aquela noite.
A questão era que um faux pas não necessariamente se resumia a palavras, e era de senso comum que os piores deles eram ações. Atitudes tomadas sem pensar, guiadas por algum tipo de instinto, que nunca terminavam bem. Porque, por mais forte e recompensador que esse tipo de sentimento primal possa ser, cedo ou tarde a realidade virá bater à porta. E, no específico caso daquela noite, a mente de Narcissa atentou-se ao que ela fazia muito mais tarde do que sua razão teria preferido.
No momento em que os lábios de Rodolphus tocaram os seus, ela devia tê-lo parado, lembrado-se de quem eram, onde e quando estavam, mas um tipo de instinto tomou conta. Seus desejos e frustrações tomaram conta, e ela não soube se afastar daquele homem como devia, conseguiu apenas entregar-se a algo complicado demais para quem já tinha uma vida tão bagunçada.
Seus lábios se abriram sob os dele sem esforço algum, como se aprofundar um beijo por natureza proibido fosse o próximo passo natural. No canto de sua mente, Narcissa sabia que aquela pessoa não era ela, que estava vivendo um momento em que se tornara uma caricatura de si mesma, ignorando sua personalidade e princípios em prol de algo que esperava não ser uma fuga. O problema era que, naquela noite, ela não seria capaz de garantir nada.
Sua vida havia se transformado, em apenas vinte e quatro horas, num turbilhão de emoções confusas, pressões, decepções e decisões que ela não sabia tomar. E, por mais que adicionar Rodolphus àquela equação fosse uma enorme irresponsabilidade, as fortes mãos dele em sua cintura pareciam a única coisa capaz de levá-la além de uma realidade tão complicada.
Numa vida de intensa cobrança e responsabilidade desmedida, Narcissa encontrava em Rodolphus Lestrange o limiar entre quem fora um dia e quem poderia ser. Ela evitava a todo custo ponderar sobre onde a vida a teria levado, caso não tivessem tomado tantas decisões por ela. Seus pais, seus tios, suas irmãs, Lucius - até mesmo o Lorde e a Lady das Trevas, ao decidiram que estava na hora dela ser a protagonista das decisões importantes de sua vida, o fizeram sem consultá-la. Era como se aceitar aquele beijo fosse a primeira decisão ativa, por pior que fosse, que tomara em anos.
Os lábios de Rodolphus deixaram os seus por um segundo longo demais, e foi o retorno do toque deles, desta vez em seu pescoço, que a fez perceber o que estava acontecendo. Não estavam mais de pé no meio de sua sala de estar, mas amontoados no sofá mais próximo, Rodolphus sentado debaixo de Narcissa, que havia puxado o vestido até a altura dos joelhos para poder acomodar-se no colo do homem, de frente para ele. A intensidade subira rápido demais e, por mais que suas mãos se agarrassem desesperadamente aos cabelos dele e que a situação toda a fizesse sentir-se viva como nunca, aquela definitivamente não era ela.
Empurrá-lo contra o encosto do sofá e afastar-se com pressa fora uma decisão bem menos consciente do que aceitar o beijo fora, por mais que ela não quisesse admitir, e encarar Rodolphus parecia impossível. Faux pas, como lembrava de suas lições, como evitara a vida toda. E, ao tentar encarar o ex-cunhado, entendia a razão. O nível de constrangimento que sentia seria suficiente para enterrá-la.
— Cissy… — Rodolphus se levantou, soando extremamente confuso, enquanto ela fitava os próprios sapatos, ainda imundos da visita à masmorra de Lucius. — Está tudo bem, não tem nada demais, nós somos dois adultos.
— Não tem nada demais… — Narcissa o repetiu, lambendo os lábios e cobrindo o rosto com as mãos. — Tem certeza, Rodolphus? Eu pensaria com mais afinco, se fosse você. — Ela foi finalmente capaz de encará-lo, apenas para se arrepender ao ver a preocupação estampada no rosto dele. — Nós somos dois adultos e exatamente por isso não devemos nos portar como dois adolescentes. Estamos no meio de uma confusão imensa, e eu agradeço seu suporte de maneiras que não pode começar a imaginar, mas… Não devemos começar a confundir as coisas!
— Confundir as coisas? Perdoe-me, Narcissa, mas elas estão bem claras para mim. — Rodolphus respondeu, a preocupação e confusão deixadas de lado para mostrar um princípio de irritação e até mesmo leve ofensa. Ele arrumou as próprias roupas, amassadas pela atividade anterior, e Narcissa sentiu o próprio rosto queimar de vergonha. O que diabos eles estavam pensando afinal? — Estamos, de fato, no meio de uma situação de merda e o seu mundo está de pernas para o ar, eu entendo, mas eu sabia muito bem o que estava fazendo quando te beijei, por mais fora de hora e de próposito que possa ter parecido. Beijei uma mulher linda, que sofreu muito, e foi muito menos feliz do que merecia! Ah, e a razão pela qual eu consigo te ajudar? Porque eu entendo isso! Eu entendo que o mundo foi injusto com você, que merecia mais, e talvez tenha começado a desejar que eu fosse capaz de amenizar isso… de me aproximar de você, de…
— Você entende porque passou pelo mesmo. — Narcissa respondeu, sem ao menos pensar. — Porque sofreu o mesmo tipo de coisa vinda da minha irmã… — ela parou, para pensar por alguns segundos, e deixou-se cair sobre uma poltrona. — Você descobriu que a pessoa por quem se apaixonou nunca te amou, que estava interessada em outra pessoa. — ela lambeu os lábios. — É claro que as histórias de Bellatrix e Lucius tiveram fins bastante diferentes… mas não muda o fato de serem similares, do nosso sofrimento como pessoas não amadas, deixadas de lado e esquecidas, ter sido similar. A irmã de sua esposa, o mestre de seu noivo, o quão cruel eles foram em suas escolhas…
— Não posso negar, — Rodolphus deixou-se cair no sofá onde há pouco estiveram juntos em uma situação muito mais agradável. — mas o meu ponto, Cissy, é que o tempo cura tudo e nós… merecemos uma segunda chance.
Narcissa permaneceu calada por alguns segundos, sem encarar Rodolphus diretamente. O belo rosto da loira estava contorcido em uma expressão que ele não sabia decifrar, mas ele também não quis imediatamente confrontá-la. A situação era toda confusa e complicada, e era normal que ela precisasse de espaço e tempo para digerir. Ele só esperava, com toda a sua alma, que ela entendesse seu ponto, que visse as coisas como ele via. Não havia nada de errado no que eles fizeram, e eles mereciam aquela chance de felicidade.
— Eu acho... — Narcissa lambeu os lábios. — Que está na hora de você ir, Rodolphus. — ela se levantou, e virou de costas para ele, respirando de forma pesada e cansada. — Tenho muito a decidir e você já me deu a ajuda que podia. Novamente, muito obrigada pelo apoio e pela ajuda.
— Cissy… — Rodolphus se levantou, e tentou aproximar-se da bruxa que, ao ouvir seus passos, afastou-se ainda mais. — Por favor, me escuta…
— Não. — ela respondeu, bruscamente, e girou nos calcanhares para encará-lo, a antiga expressão que ele não conseguiu decifrar transformada em raiva. — Eu não vou escutar. O que vai dizer? Um monte de coisas lindas? Um belo discurso sobre como ficou tanto tempo próximo a mim sem perceber o quão linda eu era, e como você queria ser a pessoa a me fazer feliz, dividir uma vida comigo? — ela riu-se amarga. — Perdoe-me, Rodolphus, mas eu já ouvi esse mesmo discurso! É um clássico vindo de homens rejeitados por Bellatrix, que parecem sempre ver em mim uma chance de ter o que não puderam, ou o mais próximo possível disso. — ela negou com a cabeça, e fitou o chão. — A irmã mais nova, bela e calma, muito mais tolerante e amigável do que o furacão que é a mais velha… aquela que seria a perfeita esposa! Parecida o suficiente fisicamente, apesar de loira, afinal ainda são irmãs! Oh, mas de personalidade oposta! O prêmio de consolação perfeito! Sinto muito, Rodolphus, mas eu não vou aceitar as migalhas da minha irmã mais uma vez! — sem perceber, ela estava gritando. — A razão pela qual estamos aqui é que eu não sabia que estava fazendo exatamente isso no passado. Eu não vou passar por outro Lucius, Rodolphus… agora, por gentileza, gostaria de ficar sozinha.
Rodolphus não tinha ideia de como as coisas haviam mudado tanto tão rapidamente dentro da cabeça dela e, por mais que entendesse os medos de Narcissa, não podia deixar de sentir-se levemente ofendido pelas acusações dela. Depois de tantos anos, ele esperava que as pessoas se esquecessem de que ele um dia fora apaixonado por Bellatrix e o deixassem viver em paz.
— Acha mesmo, Narcissa, que eu ainda quero um ‘prêmio de consolação’ por ter perdido a sua irmã? É ofensivo me acusar disso, como se eu quisesse qualquer resquício da Bellatrix na minha vida, depois do que ela me fez! Sua irmã, por mais amigos que sejamos agora, arrastou meu coração e meu orgulho no chão de todas as formas imagináveis! Se eu ainda não a tivesse superado, se ainda a amasse ou sequer desejasse, não poderia nunca andar de cabeça erguida, porque não teria amor próprio algum, Narcissa! Hoje, nesse sentido pelo menos, não quero ver a sua irmã nem pintada de ouro! Não a receberia de volta na minha cama, e muito menos no meu coração, mesmo que ela se arrastasse a meus pés pedindo perdão! — ele jogou os braços ao lado do corpo, cansado, e percebeu que Narcissa ainda não o olhava. — Se você de qualquer forma me lembrasse dela, eu nunca teria te beijado, pois teria nojo de mim mesmo! Não sou as ‘migalhas da sua irmã’, Cissy, e preferiria morrer do que ser… mas, aparentemente, minhas palavras não são o suficiente! Como eu não vou ser a pessoa a conseguir te convencer da verdade, vou deixá-la sozinha como quer, para continuar se convencendo desses absurdos, porque se tem uma lição que aprendi na vida é a não ficar onde não me querem. Boa noite, Narcissa.
Rodolphus saiu da mansão sem que Narcissa tivesse sequer tempo de olhar para ele. A loira se segurou na poltrona à sua frente, temendo cair quando as lágrimas tomaram conta de si. De repente, o peso de tudo o que havia acontecido caiu sobre ela, soterrando-a num misto de confusão e desespero. Naqueles poucos segundos de solidão, ela percebera que precisava de Rodolphus mais do que gostaria de admitir e que mandá-lo embora fora talvez uma ideia muito pior do que parecera a princípio. Ele era seu apoio e, sozinha na escuridão de sua própria Mansão, Narcissa sentia-se mais vulnerável do que nunca estivera. O fedor da masmorra ainda parecia estar entranhado em suas narinas, de forma que ela acreditava que ficaria lá até o fim de seus dias, mas outro cheiro parecia perturbá-la ainda mais: o perfume de Rodolphus, que fizera questão de se alojar em suas roupas, lembrando-a dolorosamente de todas as recentes decisões que desejava esquecer. Ela ansiava desesperadamente por um longo e exagerado banho, com todos os sais e óleos que ela possuía, e mais que tudo precisava aprender a lidar com aquilo sem o apoio de Rodolphus. O primeiro seria resolvido em poucos minutos, já o segundo… ela não sabia se era possível.
— Regência? — Melinda tentou evitar o teimoso sorriso que queria surgir, mas sem sucesso. Ela podia ver a quilômetros as intenções do pai, sem precisar acessar sua mente para tal. Voldemort, por outro lado, não parecia fazer questão de escondê-las.
O homem bebericou o líquido no copo que segurava - absinto, ela imaginava - e deu de ombros, com um sorriso divertido demais para alguém como ele estampado no canto dos lábios. A bebida era mais um sinal do que estava acontecendo: usualmente, ele escolheria uísque de fogo, mas, por alguma razão que ela não compreendia muito bem (e temia que talvez preferisse permanecer ignorante, se fosse uma filha normal, mas eles estavam longe daquilo), a bebida verde tinha algum tipo de significado para seus pais. Aquela brincadeira governamental era muito menos inocente do que parecia.
— Como posso me defender, minha cara filha? — ele colocou o copo sobre a mesa do escritório e deixou-se relaxar na cadeira, enquanto a jovem bruxa tomava o assento oposto ao dele, dando risada e rolando os olhos. - Sua mãe sempre teve um paladar aguçado para o poder, e eu estou mais do que feliz de saciar sua fome por um breve período.
— “Por um breve período” — ela repetiu e franziu o cenho, tentando não deixar passar em sua expressão o quão chocada estava com a falta de vergonha do próprio pai. — E pretende, eu imagino, ter a oportunidade de saciar outros tipos de fomes e vontades no futuro próximo, após este “breve período”. Muitos soberanos foram depostos por muito menos no passado, o que Kingsley dirá se descobrir que está brincando com a coroa dessa forma? Usando-a para seus ganhos pessoais? — tentou parecer chocada, mas sem sucesso.
Melinda não conseguiu decifrar a expressão do pai por alguns segundos, quando esta se manteve daquela forma neutra que ela sempre temera e que a irritava imensamente, exatamente pela frustração de não saber o que ele estava pensando ou sentindo. Isso, no entanto, mudou em poucos segundos, quando ele levantou o copo em um brinde na direção dela.
— Ele tentaria me depor pelo cansaço, falando em minha cabeça incansavelmente com sua eterna chatice, já que não tem poder de fato para nada mais que isso. — Voldemort cruzou os braços e não resistiu a soltar uma contida risada, depois que a filha se rendeu ao riso face a seu comentário. — Pelo menos por enquanto, pois eles vão tentar diminuir meu poder na primeira oportunidade… e é por isso que eu acompanho essa corja de bruxos insuportáveis tão de perto.
— E agora vai apresentá-los a uma Rainha tão ou mais atenta e controladora. — Melinda sorriu e roubou o copo do pai, com uma expressão desafiadora no rosto. — Além de mostrar à futura Rainha quão interessantes e divertidos podem ser seus desafios como soberana. E como poderia Bellatrix Lestrange resistir a algo tão imensamente satisfatório quanto supervisionar Kingsley Schackelbolt e seus bichinhos de estimação no Ministério? — Melinda levantou o copo em um brinde. — É genial, e quase cruel. Ah, como ela amará ser Rainha… — ela bebeu, enquanto o pai assentia, parecendo mais preocupado do que deveria estar naquela situação específica. — Algum problema?
Voldemort levantou-se e andou até a janela, com as mãos nos bolsos e a expressão fechada e pensativa. A súbita mudança preocupou Melinda, que novamente se via incapaz de decifrá-lo, e a jovem deixou o copo repousar sobre a mesa para levantar-se e seguir o pai, que fitava de sua janela o jardim da Mansão. Ela sentia como se ele nem mesmo percebesse mais sua presença ali, de tão perdido nos próprios pensamentos.
— Pai…? — ela o tocou no ombro, receosa, mas ele não teve nenhuma reação brusca, apenas virou a cabeça para encará-la.
— Desculpe-me… é só que, por melhor que o plano seja, uma questão ainda fica: o amor pelo reinado será suficiente para que ela volte a amar o Rei? Não sei se tenho tanta certeza quanto você, minha cara filha. — Voldemort suspirou e deu de ombros. — Mas acredito que descobriremos. — ele limpou a garganta e se recompôs. — Agora, se me dá licença, eu preciso rapidamente ensinar sua mãe a reinar. — Ele plantou um beijo na testa da filha e passou por ela na direção da porta, enquanto Melinda o encarava sem saber como reagir. Ela sabia exatamente o que dizer, mas, nesses momentos em que ele se mostrava mais aberto, raramente conseguia não se deixar impressionar. — Ah, e Melinda? Para todos os efeitos, nós dois estamos na Albânia. Como você mesma disse, Kingsley não aprovaria nossa pequena brincadeira, e não quero precisar matar meu Ministro com três meses de reinado. — ele disse da porta, num tom quase divertido e muito diferente do que usara nos últimos meses.
Melinda sorriu e assentiu, resistindo ao ímpeto de suspirar inconformada, mas no fundo agradeceu-o por dar um final mais leve à conversa, que fora tão rapidamente de leve a triste. Voldemort não era nenhum especialista em sentimentos, contudo estava aprendendo rápido a lidar, ou não, com eles. — É uma grande mansão, com uma biblioteca quase obscena, e eu ainda não terminei de desvendar o livro que você me deu sobre Artes das Trevas no meu último aniversário. — ela sorriu animada. — Um tempo livre será útil! — Voldemort assentiu e girou a maçaneta, murmurando algo parecido com “Pode ficar com o absinto”, mas ela o chamou antes que pudesse sair. — Ela ainda o ama. Nunca deixou de amar. — as palavras haviam saído sem que ela as pudesse controlar, e ela viu ao longe o corpo do pai tensionar. — E sabe disso… agora, ela precisa apenas aprender a amar a si mesma e a você ao mesmo tempo…
— Assim como eu devo aprender a amá-la. — Voldemort respondeu, sem olhar para a filha, e saiu da sala, deixando-a lá para terminar um absinto que não parecia mais tão interessante. A semana que tinham a frente, sim, trazia promessas… e ela mal podia esperar.
Mais uma vez, Bellatrix estava sozinha no quarto que um dia fora seu. Menos de uma hora antes, havia aceitado prosseguir com aquela loucura de ser regente do país, e finalmente percebia o quão despreparada estava para aquela sandice. Voldemort estava louco, e ela mais louca ainda de ter aceitado. O que ela devia fazer era voltar para a França, ser guardiã daquele país como prometera, e não se aventurar de Rainha apenas pela diversão. Ela escolhera, meses antes, se afastar dos olhos do público, e não entendia quais forças a haviam levado a desviar-se de seu caminho. “Ambição, curiosidade”, ela tentava se convencer dentro da própria mente, mas sabia que a palavra correta seria saudade. Saudade de casa, da filha, dele. Bellatrix fechava os olhos e tentava se odiar por incluí-lo nessa lista, mas era muito mais forte do que ela. Aqueles dois dias haviam sido o suficiente para colocar tudo em dúvida, e para fazê-la sentir tudo aquilo que não devia.
— Tarde demais para desistir, majestade. — a voz de Voldemort atrás de si não era mais tão incômoda como fora dias antes, e ela se batia mentalmente por estar tão relaxada perto dele. Os dois realmente se tornariam amigos como gostavam de dizer por aí? Ela duvidava, não pela disposição ou capacidade de ambos, mas pela tensão que nunca parecia deixá-los. Era como se ela estivesse agarrando-se a uma corrente e, no momento em que a soltasse, cairia diretamente nos braços dele. O problema era que soltá-la se tornava cada vez mais tentador.
Bellatrix girou nos calcanhares e o viu encostado ao dossel da cama, observando-a com uma expressão neutra - possivelmente para evitar que ela soubesse o que ele pensava sobre o que via claramente em sua mente. A gravata de Voldemort estava solta, o que não era uma visão incomum a ela no passado, mas provava apenas seu ponto anterior: eles estavam andando em uma direção perigosa, e ela estava aceitando aquilo tudo fácil demais. Um canto de sua mente ainda a bombardeava com todo o peso do que havia acontecido, lembrando-a que três meses não podiam ser o suficiente para fazê-la perdoá-lo. “Você poderia ter morrido”, a voz ganhava força à medida em que ele se aproximava, finalmente parecendo preocupado. “A mão dele em seu pescoço, a varinha pronta, a expressão nos olhos, não se esqueça.”, ela involuntariamente deu um passo para trás, e ele parou. “Sem chances de se explicar, a morte como recompensa por vinte anos de lealdade,” foram as mesmas mãos que ela temia que a ampararam, quando ela tropeçou em uma das cadeiras e quase caiu.
— Nunca mais. — foi somente o que ele disse, ao ajudá-la a se levantar. Voldemort se afastou imediatamente, respirando profundamente e penteando os cabelos com as mãos. Ela não precisava de mais palavras. — Eu, hm, eu quis… eu vim dizer que já mandei os papéis para o Ministério. Por isso a brincadeira, mas… Eu posso cancelar a “viagem”, se assim preferir, se realmente essa ideia toda foi uma tolice.
— Não precisa. — ela respondeu, tentando se recompor de… Nem ela sabia descrever o que acontecera. — Eu aceitei, tarde demais para fugir, majestade. — ela forçou um sorriso, e se aproximou dele ainda um pouco trêmula. Bellatrix sabia que não conseguiria simplesmente ignorar o que acontecera segundos antes. — Sobre… nós, sobre tudo isso… Sabe a pior parte? — ele a olhou pelo canto dos olhos e negou com a cabeça, dando-lhe a segurança, com um gesto tão simples, de que ele não havia vasculhado sua mente procurando pela resposta. — Eu… Algumas vezes, na França, logo depois que eu me mudei… — ela suspirou e lambeu os lábios. — Eu não ia te contar, ou contar para ninguém, mas eu sonhei… Sonhei com Hogwarts. Eu revivi a coisa toda e, quando eu acordei no meio da noite, metade desesperada e metade aliviada… Foi você que eu procurei ao meu lado. Eu sei que é controverso e sem sentido… mas é a verdade. A única pessoa no mundo que podia me confortar era a mesma responsável pelo terror. E, por mais assustada que eu estivesse, sempre voltava a dormir com a impressão de que seria tão mais rápido se você estivesse lá comigo… — ela fitou os próprios sapatos e cruzou os braços, incerta. — E eu sei o que vai falar, que talvez fosse mais fácil se nós dois estivéssemos passando por isso tudo juntos, mas…
— Eu não ia falar isso. — ele respondeu, aproximando-se lentamente dela. — Na verdade, eu não ia dizer nada. — Voldemort pensou por um momento, e subitamente mudou de direção e se dirigiu ao closet. Bellatrix, antes se sentindo exposta e insegura, não sabia agora se estava mais confusa ou irritada.
Voldemort permaneceu no closet por vários minutos, deixando-a cada vez mais impaciente. Por alguma razão, ela não o seguira, e sentia-se traída por ter ficado sozinha em um momento tão vulnerável e sincero. Até que ele voltou, e ela começou a entender, por mais que não conseguisse ainda acreditar: ele havia trocado de roupa, e se dirigia até a cama vestido num roupão e calças que ela reconhecia como as que ele usava para dormir.
— Talvez seja uma proposta ousada, — ele disse, sem olhar para ela enquanto puxava a varinha para afastar os lençóis. — e você provavelmente vai negar. — Bellatrix sabia o que ele ia dizer, e sentia os olhos marejarem apenas de pensar no que estava por vir. — Mas preciso tentar: Eu realmente espero que você não precise de mim essa noite, ou em nenhuma noite por vir, mas… somente por precaução, você me permitiria estar aqui? Ao seu lado, como falhei em estar no passado? Sei que não poderei estar sempre, com nossa situação, e que quando voltar para a França eu não terei essa oportunidade, exatamente por isso, não podia deixar de ao menos tentar enquanto eu posso…
Bellatrix sentiu as próprias pernas falharem enquanto o observava subir na cama, no lado que fora sempre dele, e estender-lhe a mão, com um princípio de sorriso. Ele estava semi sentado na cama, as costas repousadas sem esforço na cabeceira, e ela não conseguia evitar de pensar que aquilo era tudo o que ela havia desejado por muito tempo. De todas as pessoas no mundo, ele sempre fora a única que a entendera, que poderia aconselhá-la e confortá-la. Algo lhe dizia que aquela era a maior contradição da história, e possivelmente era mesmo, mas ela não teve muito controle sobre as próprias pernas quando se viu andando na direção da cama. Seu lado nostálgico, ou sem juízo algum, lhe seduzia a brincar com o que poderia ter sido. Com quem eles poderiam ter sido em outras circunstâncias. Além, é claro, da promessa de uma noite com a garantia de poucos ou nenhum pesadelo - ela tinha uma teoria de que ele usaria seus poderes de manipulação mental para tal e, por mais que devesse, não conseguia ver problema algum naquilo.
O robe de seda da bruxa ficou esquecido nos pés da enorme cama, e ela sentou-se ao lado dele, agradecendo por ter escolhido uma camisola quase modesta (longa e sem transparências, apesar das alças finas e do decote nas costas) para seus próprios padrões, ou se sentiria ainda mais desnuda do que se sentira quando ele a observou se aproximar. Ela ficou quieta por alguns segundos, assimilando o que eles estavam fazendo, e desligando todos os avisos de alarme de sua mente, antes de falar.
— Então, como faremos isso? — a pergunta era quase incômoda, e a forma como ela brincava com as próprias unhas denunciava seu princípio de desconforto.
Voldemort, muito para sua gratidão, começou a rir, quebrando a tensão que havia se instaurado ao redor deles, por mais que ela não entendesse o motivo do riso, a princípio. — Perdoe-me, vossa graça, compreendo que talvez este não seja o melhor momento para rir, é só que a maneira como falou…
— O que tem? — ela perguntou, num misto de curiosidade e irritação. O que ela poderia ter dito que fora assim tão engraçado? Ela desejava apenas compreender como aquilo tudo seria… nenhum pedido extraordinário.
— É que eu nunca imaginei minha mente ligando o adjetivo “virginal” a você, minha cara, mas temo que é o único aplicável, porque da forma como falou… se aquela não é a visão de uma virgem em sua noite de núpcias, não sei o que é.
Tão instintivamente quanto suas ações anteriores, Bellatrix se viu avançando na direção de Voldemort, no intuito de dar-lhe um tapa na altura do ombro face ao comentário desnecessário do Lorde - que parecia por demais satisfeito consigo mesmo. Ah, como aquele sorriso convencido a irritava, e ela sentia que se tivesse que remover o dito sorriso na base do tapa, ela o faria. O que Bellatrix, ou mais precisamente seu instinto, não havia calculado era o equilíbrio necessário para fazer aquele tipo de movimento brusco na cama macia sem consequências - ou consequência, na forma de uma queda que teria sido imensamente mais feia, se Voldemort não a tivesse segurado pela cintura e evitado um acidente possivelmente doloroso. As mãos fortes em sua cintura aproximavam desnecessariamente os corpos, e a coisa toda servira apenas para aumentar o sorriso convencido dele, que parecia se divertir como nunca.
Outro tapa seguiu ao primeiro, agora sem a desvantagem do desequilíbrio, e a expressão dele não se modificou um milímetro. Parecia que ela precisaria de muito mais força para afetá-lo. Bom, se fosse o caso, ela o faria com prazer. O terceiro tapa foi ainda mais forte, o som da mão dela estalando contra o peito semi descoberto dele - agora ela notava - ecoando no grande quarto. Ela o estava provocando, e foi perceber a extensão daquilo quando, por volta do quinto tapa, viu-se sendo jogada no outro lado da cama por ele, que usou o peso do próprio corpo para prendê-la abaixo de si e segurou os pulsos da bruxa contra a cama na altura da cabeça. Daquele ângulo, ela podia ver as marcas vermelhas que deixara na pele alva do bruxo, que ainda não demonstrava nada além de diversão na expressão.
— Não tinha sido informado que havíamos partido para a agressão física, vossa graça. Peço desculpas se meu comentário quanto a sua momentânea… modéstia a ofenderam. — Voldemort provocou, mais próximo dela do que precisava para prendê-la na cama. Ele estava adorando aquilo tudo e ela sabia, por mais que não conseguisse parar.
— A ofensa nada tem a ver com minha modéstia, milorde, e sim com a certeza que tenho de que você nunca sequer chegou perto de alguém a quem o adjetivo “virginal” poderia se aplicar… — ela provocou, levantando a sobrancelha e Voldemort fez menção de dizer algo, mas se calou, fazendo apenas um aceno negativo com a cabeça.
— O que fazer com você, Vossa Graça? — ele se aproximou um pouco mais, notando a falta de reação dela, que em momento algum tentou se soltar, ou mesmo se afastar.
— Não sei, majestade. — ela deu de ombros. — Estava apenas dizendo a verdade.
— Em defesa de virgens que você diz que eu não conheço… entendo. Oh, Bellatrix, o quão pouco me conhece. — Voldemort riu-se, e Bellatrix não teve tempo de responder, pois a porta do quarto se abriu abruptamente e o Lorde saiu de cima dela em um segundo, pulando para o outro lado da cama e olhando para a porta, onde uma chocada Melinda os encarava boquiaberta.
A princesa olhou para o casal na cama e para a porta algumas vezes, antes de lamber os lábios e, claramente escondendo um sorriso, perguntar: — Estou, hm, interrompendo algo? — mesmo que ela não obtivesse resposta verbal, o tom escarlate no rosto da mãe e o olhar fuzilador do pai seriam o suficiente para sanar suas dúvidas.
— De modo algum, Mel… — Bellatrix limpou a garganta. — Estávamos apenas…
— Treinando. — Voldemort se levantou da cama, fechando o robe ao andar na direção da filha, com a expressão fechada, beirando a irritação. - Como sabe, há anos ensino artes das trevas a sua mãe e, por mais que não seja muito ortodoxo, às vezes para se defender é necessária força física. - “Além do que, imaginei que os Zabini houvessem te ensinado a bater em portas antes de entrar.” Ele terminou, na mente dela, que tossiu e cruzou os braços.
— Oh entendo… De fato, entrei para o time de quadribol pelo mesmo motivo. — ela forçou um sorriso. — Vou deixá-los continuar… o treino. Como regente vai precisar e muito saber se defender…
Melinda saiu do quarto antes de sequer dar a chance para que eles respondessem. Voldemort manteve-se de pé, afastado de Bellatrix, e quieto por diversos minutos, sem saber o que dizer ou fazer. Para ele, aquela falta de conhecimento, de tato, era absurdamente incômoda. Afinal, ele era o Lorde das Trevas, o bruxo mais poderoso que já vivera, e se encontrava rendido e desconfortável com algo tão banal. A realidade, contudo, era que o incômodo vinha do quão não banal a coisa toda era.
— Melinda... — foi Bellatrix quem chamou sua atenção, com um sorriso um pouco mais relaxado, ajeitando a cama que eles haviam bagunçado. — Sempre a nos surpreender. Garanto que ela terá motivos para teorizar e conspirar com as amigas o suficiente para nos deixar em paz pelo resto da semana. — ela mordeu o lábio e deixou-se rir, mesmo que Voldemort soubesse que ela estava se forçando a melhorar o clima entre eles. — E, pelo jeito, — ela apontou o lugar a seu lado — creio que vamos achar essa paz uma benção… considerando, bem, tudo.
Voldemort expirou pesada e audivelmente, deixando o ar que nem sabia ter prendido sair de seus pulmões, tamanho o alívio que sentira - e mal pudera esconder - frente à reação dela. Ele esperava, logicamente, após ‘bem, tudo’ como ela muito bem colocara, que Bellatrix se fecharia novamente atrás de uma parede de gelo, escondendo-se dele e te todos os problemas mal resolvidos que eles ainda tinham - dentre eles, a inegável e potente tensão sexual que se recusava a deixá-los, e que era ainda mais forte em situações como a de minutos antes. Uma brincadeira, que poderia ter se estendido além dos limites que ela queria estabelecer, se não fosse por Melinda, e que poderia ter causado uma Bellatrix muito diferente da que o convidava de volta à cama. Ele se perguntava, ao vê-la aberta e pacífica, se Melinda não havia lhes feito um favor em vez de um desserviço ao interrompê-los. Ele tinha a plena consciência do quão instável Bellatrix ainda estava, e talvez o fim não tão inocente para a brincadeira teria sido o pavio para uma nova briga.
Pela manhã, ele agradeceria à filha por inconscientemente tê-los ajudado ao atrapalhar. Pelo momento, ele aceitava não verbalmente o convite da duquesa, andando na direção dela, que o esperava com um sorriso quase tímido.
— De fato. — ele respondeu, ao sentar-se ao lado da bela mulher. Num gesto que antes ou em outras situações teria parecido tão banal, ele tomou a mão de Bellatrix, e devolveu o sorriso sutil, ainda que quase inexistente àquele ponto, que ela o oferecia. — E eu creio que, se podemos escolher, sermos poupados pela nossa filha é a melhor das opções, afinal ela também está trancafiada como eu e terá muito tempo para me infernizar. — Bellatrix riu-se e concordou com a cabeça. — Quanto a você, vossa graça, terá mais oportunidades de evadir-se, mesmo que ela não sossegue… afinal estará imensamente ocupada, Kingsley e o resto do Ministério o garantirão.
— Quando não o próprio Rei. — ela respondeu, com um tom de desafio na voz. — Buscando me orientar, é claro, e guiar nesta jornada.
— O Rei, minha cara, está de férias para assuntos oficiais. — ele respondeu, no mesmo tom. — Este era o ponto, não? Deixá-la reinar, e eu o farei. Quanto a seus outros treinamentos. — ele lambeu os lábios. — Sabe que sempre estarei disponível para ampliar seus horizontes nas artes das trevas.
— Por mais proibidas que sejam por esses dias, majestade?
— Proibidas? Nunca assinei nada dizendo que não as usaria, uma certa ex-tenente minha a quem tenho muito apreço garantiu que o acordo de paz dissesse apenas que não as usaria para atacar trouxas. Ou que não iniciaria combates com trouxas, com quaisquer maldições. Foi isso que eu assinei… — Bellatrix não conseguiu esconder o sorriso que se formou em seu rosto.
— Parece bastante inteligente, esta ex-tenente… Deixando tantas brechas para interpretação… — ela levantou a sobrancelha.
— Oh sim, não é à toa que a fiz minha general. — Voldemort beijou o dorso da mão dela, escolhendo ignorar como a respiração da bruxa mudou, apesar de seus esforços para esconder o fato. — E, temporariamente, minha Rainha.
A mão de Bellatrix, debaixo da sua, não tremeu ou enrijeceu-se como Voldemort havia antecipado - pelo contrário, parecia ter relaxado, minimamente que fosse.
Bellatrix sabia, certamente, o quão errado e contraproducente era sentir-se tão à vontade perto dele, gostar tanto de ouvir aquelas duas palavras, quando tanta mágoa e dor ainda os separavam. Não apenas pela Batalha de Hogwarts, como tudo o que os levara até aquela fatídica noite. Antes que a dor pudesse tomar conta de si mais uma vez, a bruxa afastou os pensamentos, trancando-os no fundo de sua mente até que fosse forçada a novamente confronta-los.
— Temporariamente. — ela respondeu com um sorriso. — Começando em algumas horas, até o fim da semana, ou até o momento em que eu matarei alguém e serei presa novamente.
Voldemort deixou-se rir e soltou a mão dela para deitar as costas na cama, sem deixar de olhá-la ou de perceber como os olhos verdes haviam seguido as mãos ao se soltarem. Ele deu de ombros e arqueou a sobrancelha. — Que as apostas comecem, minha cara. Meu dinheiro está em sua capacidade de autocontrole, por mais insuportável que todos aqueles idiotas sejam. Mesmo porque eu não arriscaria meu reinado para provar um ponto…
— Em trinta anos como Comensal, creio ser a primeira vez que atribui essa qualidade a mim, milorde. — ela mordeu o lábio e respirou profundamente. — Espero que esteja certo…
— E quando estive enganado acerca de suas habilidades, Bellatrix? Sabe muito bem que conheço seu potencial melhor do que você mesma… uma das vantagens de ter acesso a sua mente, sem dúvida.
— Uma das?
— Tenho certeza de que você não quer ouvir essa resposta, mas quem sabe um dia eu não mate essa curiosidade. Agora, vossa Graça, temo ser a hora de lembrá-la que precisará estar descansada amanhã. — ele se ajeitou na cama, dando espaço para ela, inconscientemente deixando estendido ao lado do corpo um dos braços, num convite acidental fruto de anos repetindo aquela mesma cena.
Antes que ele percebesse o que havia feito, ou que ela tivesse tempo ou juízo para comentar algo ou ignorar a atitude dele, Bellatrix aceitou o convite silencioso e deitou-se ao lado dele, a cabeça descansando no peito de Voldemort, que por um segundo esquecera como usar os próprios pulmões.
— Eu não quis implicar...
— Eu sei, — ela o tranquilizou, antes que pudesse terminar a frase. — e nem eu quis também, eu só… nós só cedemos ao hábito. Qualquer outra coisa teria sido tão desconfortável quanto isso, por outras razões.
— Desconfortável?
— É o que eu sigo dizendo a mim mesma… mas a verdade é que nunca estive tão relaxada, por mais que doa meu orgulho admitir. — ela respondeu, os dedos distraidamente desenhando círculos no peito dele, num gesto tão natural quanto doloroso.
Voldemort deixou que o próprio corpo relaxasse debaixo do dela, seus olhos fechando-se na dúvida entre respondê-la com a verdade ou com o silêncio que ela queria ouvir. Sua mão, contudo, atreveu-se a quebrar o silêncio que ele inconscientemente escolhera seguir, e encontrou seu caminho até os cabelos da bruxa, movendo-se entre as madeixas de forma tão relaxada quanto a mão dela fazia em seu peito. Os lábios dele, tão rebeldes quanto sua mão, deixaram-se tocar o local onde a testa e os cabelos dela se encontravam, num beijo tão leve que ela levou vários minutos para perceber, e sobre o qual nunca reclamou.
Adormecer com o toque e o cheiro dele tão próximos de si era uma lembrança ainda viva na memória de Bellatrix, mas a versão em sua mente não se igualava a reviver a experiência. Ela não admitiria, mas ela não havia pegado no sono tão rápido em meses e nem seria capaz por muito tempo após aquela semana. Os pesadelos nunca vieram, e ela não sabia dizer se pela presença dele, ou se Voldemort havia feito algo para que eles fossem embora. De um jeito ou de outro, as horas de sono tranquilo lhe seriam úteis na manhã seguinte, quando o mundo a lembraria de todos os porquês que a impediam de ter todas as noites parecidas com aquela.
Uma carta fora tudo que ela encontrara na cama pela manhã. Todos os traços de que ele sequer estivera ali haviam desaparecido, e ela entendia a razão: ele devia estar na Albânia, e quaisquer empregados que suspeitassem eram um risco. “Mostre a eles o quão incapaz de reinar você realmente é,” dizia o final da carta, que continha uma série de compromissos oficiais para aquele dia, “ou prove que estou certo e os apresente a uma Rainha.”. Ela não pode deixar de sorrir ao ver a carta se destruir a sua frente. Um dia longo a esperava, mas ela ainda teria algumas horas na casa que um dia fora sua. Bellatrix nunca perguntou a origem das tiaras que encontrara no closet, ou quando haviam sido compradas, ainda compromentendo-se a analisar o mínimo possível para não sofrer, mas não se privou de usá-las. Afinal, quando ela perderia a oportunidade de lembrar a todos ao seu redor que podiam governar unicamente por generosidade deles? Ou de Voldemort, como ela ocasionalmente precisava lembrar a si mesma. Naquela semana, contudo, ela se daria este prazer.
Kingsley Shacklebolt podia aproveitar o curto mandato ou os subsequentes o quanto quisesse, mas - ela se lembrou ao colocar a tiara de safiras escolhida para o dia - muito depois de ele ter sido esquecido, eles ainda estariam lá, reinando com o direito que haviam conquistado. Voldemort estaria, pelo menos, mais uma vez ela precisou se lembrar.
Todos os seus lembretes referentes a como aquele poder não era e nem nunca seria seu foram esquecidos no momento em que ela deixou o quarto, coberta de joias cravejadas de safira como as da tiara e trajando um vestido longo bordado em toda sua extensão, com longas mangas que imitavam uma capa, que a transformava na Rainha que Voldemort um dia imaginara que ela seria. O traje era opulento, tanto quanto ou mais do que os usados pelo próprio Rei, e ela sabia disso. Incomodar a todos no Ministério da Magia era mais do que sua intenção, era quase seu desafio.
O que Bellatrix nunca imaginaria, nem em seus mais inexplicáveis sonhos, seria que sua primeira obrigação como regente seria uma audiência com ninguém menos do que seu ex-marido. O que Rodolphus queria ali lhe era desconhecido, mas era quase irritante pensar que teria de perder tempo com algo que, conhecendo Rodolphus, poderia ser resolvido via coruja. O que a duquesa sabia menos ainda era que o conteúdo da conversa que teriam era muitíssimo mais sério do que ela podia imaginar e, infelizmente para todos os envolvidos, levaria muito mais do que um simples encontro para ser resolvido.
Rodolphus não ficara nem um pouco menos impressionado do que a própria Bellatrix ao descobrir que seria atendido por ela em vez de Voldemort. A notícia da viagem do Rei viera como uma surpresa a todos, que não entendiam o motivo do repentino sumiço. De qualquer forma, Voldemort nunca fora conhecido por sua constância, ou por se importar o suficiente para dar satisfações a alguém - se muito, eram os outros que lhe deviam as explicações, e aceitavam as ações e decisões do Lorde das Trevas sem contestar, qualquer que fosse o impacto. Aquele era o real indício de dominação, o sinal que reforçava a todos que o poder era dele e somente dele.
Ver Bellatrix sentada no trono, com toda a majestade digna da Rainha que ela devia ter sido, ao entrar na sala, foi quase o suficiente para que Rodolphus contestasse sua teoria sobre as relações de poder no mundo bruxo. Ele estava dividindo o poder, mas com apenas uma pessoa. Com a única pessoa que poderia, além do próprio Voldemort, ajudar a resolver o seu problema - ou ajudar a piorá-lo. Os dedos da bruxa tamborilavam delicadamente nas bordas dos braços do trono, enquanto ela o observava cruzar a sala com um olhar entediado.
— Vossa graça. — ele a cumprimentou com uma reverência incerta e viu o sinal delicado que ela fez para que se levantasse. — É um prazer e uma surpresa vê-la aqui, desculpe-me a sinceridade, mas esperava encontrar-me com o Lor-com Sua Majestade.
Bellatrix deixou a expressão entendiada relaxar por um momento, para parecer intrigada pela primeira vez desde que Rodolphus pusera os olhos nela, naquela manhã. Talvez ele tivesse sido cortês demais, por mais formal que fosse a audiência, e ela já estava desconfiando de algo. Pelo sorriso que começava a se formar nos lábios dela, ela estava percebendo que ele queria algo, e estava adorando. Em dias como aquele, Rodolphus tinha certeza que no futuro todos eles viriam a se arrepender de desejar Bellatrix como Rainha - aquela mulher fazia a questão de ser o mal encarnado, até com aqueles próximos a ela. “Principalmente com eles”, uma voz em sua mente fez questão de lembrá-lo. Oh, aquela conversa seria difícil.
— Rodolphus… — ela respondeu, com pouca voz e tendo a decência de tentar esconder o sorriso. — Sinto muito a ausência de Sua Majestade, mas, como deve ter ouvido, assuntos urgentes o tiraram do país. Em sua ausência, no entanto, estou aqui para servi-los da melhor maneira. Se possível, como o próprio Rei o faria. — Rodolphus duvidava que Voldemort o deixaria tão nervoso. — Então, em que posso ajudá-lo?
— Na verdade, pode ser que o destino tenha sido correto. — ele respondeu, quase acreditando nas próprias palavras. — Porque posteriormente teria que falar com você também, então podemos resolver o problema de uma vez: Bella, eu quero o divórcio.
A forma como o queixo dela caiu em total choque, a imagem daquela cena presa em sua memória, seria o suficiente para compensá-lo por quaisquer disparates que ele viria a ouvir no restante da manhã. Bellatrix piscou os olhos e abriu e fechou a boca algumas vezes, antes de conseguir se recuperar do choque e limpar a garganta. — Bom, se for sincera, nem me lembrava que ainda não estávamos oficialmente divorciados. — ela lambeu os lábios e ajustou a postura no trono, deixando de lado qualquer tédio que pudesse ter demonstrado anteriormente para parecer intrigada e até mesmo confusa. — E veio pedir a permissão do Lorde das Trevas…? Para nos divorciarmos?
— Como você bem sabe, vossa graça, nobres precisam da permissão da Coroa para fazer qualquer movimento do tipo. Seja para nos casarmos ou divorciarmos, precisamos da benção dele que, convenhamos, nós dois sabemos que ocorrerá. - Rodolphus sorriu e se aproximou mais, apoiando um dos pés no primeiro degrau da escada que levava ao trono. - Com você de regente, então, mais fácil ainda. Ambos conhecemos o parecer do Rei, você tem a pena e o selo, e nós dois queremos essa separação mais do que tudo. Acredito que este primeiro problema está resolvido?
— “Queremos essa separação mais do que tudo”. Nossa Rodolphus, desse jeito vai acabar me magoando! — Bellatrix provocou, menos chocada do que momentos antes e se divertindo com a aparente pressa que Rodolphus tinha de conseguir o divórcio. — Com esse desespero todo, até parece que você… — ela parou abruptamente e arregalou os olhos, levantando-se em um pulo do trono. — Não! Você?! Quem é a pobre coitada?
— Bellatrix…
— Rodolphus Lestrange está apaixonado novamente! — ela cobriu os lábios com as mãos, segurando a risada que insistia em vir a seus lábios. — Ou seria o pobre coitado? Nunca se sabe… Vamos Rodolphus, eu mereço saber!
Toda a postura majestosa de Bellatrix havia dado lugar à empolgação digna de uma adolescente ao ouvir as histórias de amor de suas amigas, tamanha era a animação da bruxa. Rodolphus queria sentir-se ofendido com a reação dela, principalmente porque ela fora a razão de ter ficado sozinho por tanto tempo, mas era engraçado demais para ele não rir. E, além de tudo, à luz das descobertas recentes, ele era incapaz - pelo menos naquela semana - de se irritar com ela.
— Você saberá de todos os detalhes sórdidos que quiser, minha cara esposa, assim que você se tornar minha adorada ex-esposa. — “ou os detalhes que aguentar”, ele pensou, ao esperar a resposta dela.
Bellatrix cruzou os braços, irritada com a atitude dele. — Você ainda precisa da minha benção, Roldie querido, não me provoque. Vamos, desembucha! Quem é, onde conheceu? Que história é essa de me superar?
A última frase fez o sangue de Rodolphus ferver por alguns segundos, até que ele conseguiu se controlar e respirar. Não cairia no joguinho de Bellatrix, por mais irresistível que fosse o ímpeto de esganá-la. — Até você é superável, minha cara, por mais trabalhoso que seja o processo… imaginei que já havíamos discutido isso.
— Ah sim, na teoria, mas se apaixonar por outra é um tremendo avanço! Esperava que este dia viria, mas é impressionante. - a vontade de puxar a varinha e ensiná-la uma lição era forte, mas ele ainda precisava da ajuda daquela maldita mulher.
— Muito engraçado, Bellinha. — Rodolphus forçou um sorriso e cruzou os braços. — Agora tenho sua atenção para me ajudar? Posso esperar uma coruja em minha casa com os papéis assinados e validados com isso aí? — ele apontou para o anel que ela carregava em um colar, o que continha o selo real.
Bellatrix lambeu os lábios e voltou a sentar-se, ficando cada vez mais intrigada com a forma como Rodolphus buscava sempre desviar do assunto. Aquilo não era normal, por mais reservado que ele pudesse ser. Algo naquela conta não estava certo, e ela começava a achar bem menos engraçado do que parecera no começo. O que diabos estaria Rodolphus aprontando?
— Muito bem, não se preocupe, nos próximos dias você estará livre. — o alívio no rosto dele foi visível, e ela franziu o cenho. — De mim e de metade de sua fortuna, naturalmente. — ela brincou com o dito anel em seu pescoço, e viu Rodolphus suspirar.
— Era de se esperar. — ele deu de ombros. — Bem, se este é o preço que devo pagar, o pago de bom grado, vossa graça. - Rodolphus fez uma reverência e Bellatrix revirou os olhos.
— Ainda me deve respostas, Lestrange!
— Bem, eu não vim aqui resolver apenas este assunto. Contudo… — ele limpou a garganta e apontou os guardas nas portas com o olhar. — Para as demais questões, preferia conversar num lugar mais… privado. — ele abaixou a voz.
Rodolphus pôde ver, mesmo à distância, a tensão crescer no corpo dela, subindo dos pés à cabeça à medida em que a duquesa mudava de posição no trono. Ela estava percebendo que algo estava muito errado, pois Bellatrix era esperta até demais. Ele engoliu seco, sentindo o peso da constatação de que aquilo seria infinitamente mais problemático do que havia previsto.
Por mais contrariada que estivesse, Bellatrix era prudente demais - apesar de seu temperamento explosivo - para fazer com que ele falasse ali mesmo, na frente de todos, e orgulhosa demais para mandá-los para fora. Não, ela faria aquilo parecer algo de sua vontade.
— Então creio que devemos aproveitar a oportunidade para me contar como tem estado, Rabastan também. — ela se levantou e apontou a porta da sala do trono. — Já tomou seu desjejum, meu caro Rodolphus? Os Elfos da Mansão Slytherin são excepcionais cozinheiros, se bem me lembro. Por favor, me acompanhe. — Aquela proposta, Rodolphus ponderou ao observá-la apontar a porta, era inegável.
O bruxo deu alguns passos para trás e apontou o caminho a sua frente, fazendo uma exagerada reverência. — Depois de você, milady. — respondeu, esperando-a descer os degraus que elevavam o trono. Bellatrix, contudo, parou à frente dele e sorriu. Ah, ela não o deixaria pensar.
— Que tipo de anfitriã eu seria... — ela comentou, abrindo mais o sorriso que o fazia estremecer até o fim da alma. — Juntos, e no caminho você pode começar a me contar aqueles detalhes que me prometeu. — Rodolphus suspirou e ficou de pé, oferecendo o braço para Bellatrix, que o pegou firmemente. Ela exalava a irritação que começava a surgir, a desconfiança de que ele havia feito algo errado, ele nunca precisaria de quaisquer palavras para saber o que estava por vir, mas ela fez questão de lembrá-lo. — O que diabos você fez, querido? — De fato, o que diabos ele havia feito…?
— Eu preciso de algo mais forte. — foi o que Bellatrix disse, levantando-se da mesa de jantar e indo até a mesa onde Voldemort deixava as bebidas. Rodolphus faria algum comentário engraçado sobre a familiaridade dela com a localização das bebidas, caso não temesse por sua vida depois do que havia acabado de contar. Ela voltou segundos depois com o que parecia um copo de absinto e sentou-se parecendo tão lívida quanto o havia deixado.
— Eu deveria lembrar-te que não passa das nove da manhã? — ele não resistiu à provocação, apesar de seus temores, e arrependeu-se imediatamente com o olhar fulminante que ela o lançou.
— Eu não testaria minha paciência, Rodolphus, não hoje. — Bellatrix respondeu, dando mais um gole perigosamente longo no absinto. Ele comentaria algo sobre as reuniões que ela ainda precisava ter, caso gostasse menos da própria vida. — Não depois de tudo o que você me contou. Como você se atreve? — a seriedade que ela de repente usou, mesclada com a nota de irritação que ela tinha na voz e a forma como seus dedos apertavam o copo de cristal, fez com que Rodolphus se perguntasse se seus receios quanto à própria vida eram tão metafóricos como ele gostava de acreditar. Ela estava séria demais, deixara de lado inclusive seu adorado sarcasmo para confrontá-lo diretamente, e tudo aquilo significava apenas uma coisa: perigo.
Rodolphus escolheu bem as palavras antes de falar, mesmo que pudesse apenas dizer uma coisa: a verdade. Discretamente, não controlou o instinto de buscar a varinha de Bellatrix com os olhos e sentiu-se um pouco mais tranquilo ao constatar que não estava assim tão à mão (mesmo que ela fosse rápida o suficiente para que aquilo não importasse tanto quanto devia, era um alívio).
— Eu… eu não sei, Bella. — ele confessou, a contragosto, o que sentia e deu de ombros. — Tudo aconteceu tão rápido e eu.. ela de repente se tornou tão importante para mim e parecia sentir o mesmo de um jeito que não pude resistir. Eu sei o que você vai dizer! Que é louco e está progredindo rápido demais, e que ela já sofreu muito, mas esse é exatamente o ponto! Eu quero, eu preciso, e vou fazer diferente! Sei que posso fazer sua irmã feliz como ela merece! E nada me faria mais feliz, Bella. — ele arriscou tocar a mão livre dela, que bebia mais. — Se eu tivesse seu apoio…
E Bellatrix riu. Não uma risada divertida, pois a situação estava longe de engraçada, mas uma maldosa. Uma gargalhada fria e sarcástica que o arrepiou até o último fio de cabelo, pois ele a ouvira usar aquela risada antes, no campo de batalha, antes de torturar e matar suas vítimas. Ele não era nem de longe tão indefeso quanto os trouxas e sangue ruim que ela, que eles costumavam aterrorizar, mas foi a inversão de papéis que o assustou. Sentir-se no lugar deles, com toda a crueldade dela dirigida a si, foi tudo menos confortável. Ela não acreditava em uma palavra sequer que ele havia dito, e isso era evidente.
— Oh, meu caro Rodolphus... — ela bateu o copo contra a mesa e se levantou, socando ambas as mãos fechadas contra a mesa. Talvez, Rodolphus ponderou, ter aquela conversa enquanto ela era regente tivesse sido uma péssima ideia, uma vez que isso diminuía suas possibilidades de defesa se ela partisse para a violência. — Você foi dormir uma noite e mal conhecia minha irmã além do fato de ser minha irmã e esposa de Lucius, agora de repente a ama como nunca amou ninguém nem ela foi amada? — ela revirou os olhos e lambeu os lábios, claramente contendo a própria fúria. — Sabe que conheço uma outra pessoa que também acordou um dia e decidiu que Narcissa era o amor de sua vida… ele está com pedaços faltando em uma masmorra agora. E o problema? Ele viu nela nada além de um curativo para suas feridas. Uma versão mais calma e domável daquela que ele realmente queria, de quem o havia machucado e por Merlin como minha irmã sofreu! Parece familiar, meu querido marido? Eu esperava mais de você, Rodolphus! Eu disse que estava feliz de ter me superado, não seguido os passos de Lucius! Você vai se afastar de Narcissa, imediatamente, e sim isso é uma ordem enquanto eu for regente! E eu vou fortemente pedir ao Lorde das Trevas que a mantenha quando eu sair!
— Porque ele faz tudo o que você quer, como todos nós sabemos! — ele disparou, e ela arregalou os olhos. — Desde que você escolheu ser infeliz, e agora parece querer andar por aí destruindo a felicidade dos outros! — qualquer temor que ele tivera se dissipou quando ela disse todos aqueles absurdos. — Sou eu quem te pergunto: como se atreve? A me comparar a Lucius? É sério mesmo? Acha mesmo que é inesquecível o suficiente para ter a mesma história trágica se repetindo? Ou acha que Narcissa é assim tão desinteressante? — os braços de Bellatrix pareceram relaxar e ela fitou a mesa, ainda parecendo tentar se acalmar. — e você tem razão em um ponto: eu não posso afirmar com certeza de que nos últimos dois dias Narcissa tornou-se o grande amor da minha vida. Por mais romântica que a noção seja, e por mais que você não possa me acusar em relação a isso porque é a prova viva de que isso não é impossível!
— Rodolphus, eu levei anos, praticamente uma década para...
— Para admitir que o amava? Porque o ama desde o dia que o conheceu, mais do que jamais amou a ninguém nem a si mesma! Não é por isso que se mudou? Pois bem, aqui estamos! Eu entendo que as coisas estão indo rápido demais, mas honestamente Bella que bem agir dentro do protocolo fez para mim ou para ela? Ambos se apaixonaram perdidamente por pessoas que não os amavam e os fizeram sofrer por anos! — Rodolphus jogou os braços ao lado do corpo, soando cansado. — Bella… por favor, você precisa acreditar em mim. Eu não estou repetindo os passos do Lucius, nem pretendo, eu sei tudo o que está em jogo!
— Sabe? Rodolphus você não sabe como eu queria que minhas ressalvas fossem fruto de minha vaidade, de cruelmente desejar que você sofresse por mim para sempre! Até mesmo preferia que fosse por menosprezar minha irmã, mas infelizmente este não é o caso. — ela lambeu os lábios e respirou fundo, tomando mais um gole da forte bebida antes de continuar. Rodolphus havia lhe arrumado um problema e tanto. — Talvez meus motivos sejam egoístas, — ela ponderou por um instante, baixando a cabeça. — mas não deixam de ser válidos. Eu não posso ser a causa da infelicidade da minha irmã mais uma vez, Rodolphus.
— Então não seja! — ele vociferou. — Nos dê sua benção, me liberte do casamento, tire essa ideia maluca da sua cabeça e me ajude a tirá-la da cabeça da sua irmã. E se eu a machucar, acabe comigo de forma igual ou pior do que fez a Lucius! Bellatrix… você foi o primeiro grande amor da minha vida, e você a destruiu. Por anos. E eu fui capaz de te perdoar, de superar, ou não estaríamos aqui. Há alguns meses, na sua investidura como duquesa, naquele baile… o Lorde das Trevas perguntou-me se havia chegado minha hora de tripudiar. E o que eu fiz? Eu dei suporte a ele, porque eu sei como é sofrer por você, porque eu cansei de sofrer por você quando notei que nunca seria minha. E essa é a diferença entre Lucius e eu, minha cara esposa, eu desisti de você e deixei as feridas curarem porque minha dignidade não suportava mais amar uma mulher para quem eu era sempre a segunda opção. Bella, há três meses você foi embora. O que me impediu de ir atrás de você? De me aproveitar de seu momento frágil para trazê-la de volta aos meus braços? Simples resposta: eu nunca seria o seu curativo, a pessoa que você usaria para superar o Lorde das Trevas ou até voltar para ele. Há dois anos decidi que te superaria de vez, e nos tornaríamos amigos porque eu ainda te queria em minha vida, mas eu fiz isso porque tenho dignidade, Bellatrix. E, por mais que eu tenha te amado muito e que você seja ridiculamente atraente, eu não honraria o nome que carrego se algum dia te aceitasse de volta, que dirá correr atrás de você. Agora você pode argumentar que eu estou baseado em orgulho, e eu te digo que sim eu estive no começo, mas as feridas se curaram há muito tempo, percebi que merecia mais e é isso que eu busco: alguém que se entregue por completo, que seja para mim o mesmo que eu serei para ela e a sua irmã quer e merece o mesmo… e atrevo-me a dizer que a parte do ridiculamente atraente corre na família. — Bellatrix rolou os olhos e deu de ombros.
— Não posso negar. Isso gerou uma competição bastante não saudável durante nossa adolescência, como deve se lembrar. — ela sorriu, um pouco mais relaxada, e ele assentiu.
— Tão cansativo! — ele rolou os olhos. — Ainda bem que na época eu estava encantado demais para ligar de verdade, então eu sobrevivi bem. Sou bom nisso, ao que parece.
— O que você tem — ela se levantou bebendo o restante do conteúdo do copo. - é uma atração inevitável e incurável por confusão e perigo, Rodolphus.
— Narcissa e Bellatrix, respectivamente. No caso, tenho por confusão e tive por perigo. — ele desenhou no ar como se estivesse fazendo as contas e foi a vez de Bellatrix revirar os olhos.
— Pobre Rodolphus, tão inocente. Me referia às duas. Causei confusão o suficiente, e se você acha que Narcissa não é sinônimo de perigo está tão enganado meu querido… — Bellatrix deu risada do espanto que tomou conta dos olhos dele e deu de ombros, com um sorriso cruel. — Prepare-se, meu caro, se é isso mesmo que você quer.
— Sim, Bella. É o que eu quero. Tenho certeza como tive de poucas coisas na vida… — Rodolphus se levantou e andou até ela, pegando suas mãos. — Eu não vou machucar a Narcissa, é uma promessa, mas eu preciso do seu apoio ou temo que ela nunca se dará essa chance.
Bellatrix suspirou e fechou os olhos por um momento, com a certeza de que as chances de se arrepender eram maiores do que do contrário e ela não conseguia negar o próprio desconforto. Contudo, Rodolphus tinha um ponto e ela tinha um plano. Um plano que tiraria por vez suas dúvidas e as de Narcissa de uma vez só.
— Tudo bem, tudo bem! — ela viu a felicidade rapidamente se espalhar pelo rosto de Rodolphus, que a agradecia e beijava suas mãos sorrindo. — Mas… Se nós vamos fazer realmente isso, será do meu jeito, com as minhas regras.
— E você lá faz alguma coisa de outro jeito? — Rodolphus perguntou, sem parecer alterado pelos novos termos. — Estamos falando da mulher que está travando uma queda de braço pública com o próprio Lorde das Trevas, com “minhas regras” estou saindo no lucro.
— Como assim queda de braço pública, Rodolphus? Eu não estou fazendo nada disso! — ela soltou as mãos das dele, que parecia se conter para não rir ou rolar os olhos. — É esse tipo de absurdo que você e o resto dos Comensais discutem durante o chá da tarde? — ela cruzou os braços.
— Primeiramente, não. Não é. E era só um exemplo!
— Um bem ruim!
— Bellatrix, foco. Seus termos, suas regras, desembucha!
Ela respirou fundo e descruzou os braços, jurando que Rodolphus Ainda ouviria muito sobre aquele comentário infeliz… mas ele não estava errado sobre a questão do foco.
— Meus termos são: você concorda em obedecer minhas regras e eu apoio sua união com Narcissa e faço tudo ao meu alcance para te ajudar com aquela cabeça dura… - ela parou por um momento e lambeu os lábios. — As regras se resumem a uma só, bem simples: você vai ter que confiar em mim. — Rodolphus soube, naquele instante, que “simples” não se aplicaria a nada que estaria por vir. “Confusão e perigo”, ela havia dito, e ele não duvidava que isso nem começava a descrever seu futuro próximo.
Bellatrix jogou-se em uma poltrona de forma dramática demais para seu feitio. Ainda não era nem mesmo meio dia e ela já estava farta daquela regência, ou pelo menos preferia pensar estar. Poucos segundos antes, ela havia escrito uma convocação dirigida à Narcissa, intimando a irmã a recebê-la - uma das vantagens de ser regente: Narcissa não podia escapar dela, por mais que quisesse, e Rodolphus deveria estar tão grato por esse detalhe quanto a própria Bellatrix se sentia, pois caso contrário Narcissa demoraria dias, até semanas, para conversar por vontade própria.
— Usando seu poder para obrigar os outros a fazer o que quer em assuntos pessoais, minha cara? Tão cedo? Quantas horas tem mesmo? — Voldemort perguntou, desviando os olhos do livro a sua frente por pouquíssimos segundos. O tom dele era calmo, mas não deixava de transmitir uma pitada de desafio.
Por um momento, Bellatrix considerou responder de forma mal criada, mas não conseguiu encontrar em si forças para conter o sorriso que se formou em seus lábios frente à reação de Voldemort, e sua incansável mania de invadir sua mente - “ou a de qualquer pessoa no mesmo recinto que ele”, sua mente lembrou-a do quão não especial era naquele sentido. — O que posso fazer? — ela perguntou, com um suspiro um tanto exagerado, mas perfeito para combinar com o tom de toda aquela cena. Sua voz, ainda em sintonia com todo o desnecessário excesso que permeava suas ações, soava quase inocente. Alguém que não a conhecesse acreditaria que toda a situação era incômoda, e que ela abusara de seu poder com demasiado peso no coração. Voldemort, no entanto, a conhecia bem demais para acreditar em tamanha nobreza. Oh, não Bellatrix, ela estava adorando ter o poder de trazer todos a seus pés. — Era a única forma de fazer Narcissa me ouvir… e de resolver os problemas em que Rodolphus insiste em me colocar.
— Eu acreditarei nisso... — ele fechou o livro delicadamente e o colocou na mesa a sua frente, descansando sua varinha ao lado deste, para encará-la. — No dia em que você acreditar, minha cara. Nós dois sabemos que este foi o caminho mais simples, não o único. De qualquer forma, — ele deu de ombros — não sou eu que vou julgá-la por preferir tomar o caminho mais rápido e menos doloroso. Quanto aos problemas causados por Rodolphus, talvez seja a forma dele se vingar de todos os problemas que nós causamos a ele nas últimas duas décadas.
Bellatrix mordeu o lábio inferior e ajustou-se na poltrona, assumindo uma postura muito mais condizente com sua posição e vestimentas do que o relaxamento anterior. Voldemort não pudera deixar de notar o quão suntuosa ela se vestira naquela manhã e, pensativa como se encontrava naquele momento, como Bellatrix parecia uma pintura de tudo o que devia ser a realeza. Bela, intocável, um ideal deliciosamente inalcançável. “Uma obra de arte em safira”, ele pensou quando ela se levantou, o que fazia-o desejar poder estar no Ministério da Magia para assistir à primeira audiência de sua Rainha, e se deleitar com a expressão de todos aqueles vermes no momento em que ela passasse pela porta. Infelizmente, teria de se contentar com as lembranças dela, ao fim do dia.
— Eu pensei nessa possibilidade. — ela acordou-o de seus pensamentos, e recostou-se à mesa em que ele lia, com os braços cruzados. — Mas prefiro crer que Rodolphus não é tão mesquinho. E, de acordo com ele, tudo o que aconteceu já está superado. Espero que seja realmente assim, ou pobre Narcissa…
— Oh, minha cara, por mais difícil que possa ter sido para você acreditar que ele tenha de fato te superado… — o canto dos lábios de Voldemort curvaram-se num sorriso quase desafiador. — E não a culpo, afinal de contas, ele a perseguiu por anos e nem mesmo eu fui capaz de fazer isso. — ele viu a expressão neutra dela quebrar e podia jurar que ouviu-a gaguejar alguma coisa. — Seu ex-marido teve anos para esquecer, e realmente não creio que viria a você caso não fosse verdade. Além do que, por meses ele esteve livre para correr atrás de você desde que eu fui retirado do caminho, se ele realmente quisesse… e não o fez. Entendo seu temor por Narcissa, depois de tudo o que aconteceu com Lucius, — ele se levantou e parou frente a frente com ela — mas o caso me parece bastante diferente. Se Narcissa conseguir entender, que mal há? E, pelo o que vejo em sua mente, seus planos não são de apenas provar para ela, mas também para você…
— Exatamente. eu decidi dar a ele um voto de confiança, por todas essas razões que citou e, também, pela certeza que ele me passou ao falar comigo.
— E pediu a ele confiança, também…
— Digamos que ele não ficará exatamente confortável com meus métodos. - ela riu-se, e Voldemort rolou os olhos.
— E quem ficaria? — ele cruzou os braços, tentando não deixar-se afetar pelos planos que via na mente dela. Era apenas um plano, que com certeza não daria em nada, a não ser que Rodolphus estivesse mentindo… e a probabilidade era que não estava, ou era assim que Voldemort gostava de pensar. — Espero que Rodolphus saiba no que se meteu, por mais que duvide…
— Oh, ele não faz ideia. — a falta de reação de Voldemort frente ao que estava em sua mente fora quase um desapontamento para Bellatrix, mas… não era aquela frieza exatamente o que ela dizia desejar da parte dele? — De qualquer forma, estou atrasada… o Ministério me espera.
— Nesse caso, ensine uma lição àqueles idiotas.
— Será um prazer.
De todas as vezes em que estivera naquele lugar, certamente aquela fora a com melhor recepção - mesmo quando comparada aos anos de liberdade e riqueza que ela tivera no passado. Ah, o poder que a tiara em sua cabeça e o documento devidamente enviado por Voldemort lhe davam. Era perfeitamente sedutor o prospecto de ter aquele mesmo poder todos os dias, para o resto de seus dias.
Bellatrix engoliu seco ao perceber o quanto se deixava atrair pela clara armadilha que Voldemort a ela aplicara. Seria ela assim tão previsível? Para ele, com certeza, tão assustador que era o conhecimento que ele podia ter de si. Oh, ela o odiava e, ao mesmo tempo, o amava cada vez mais. Por mais que resistisse à semente de cobiça que ele plantara em seu coração, deveria agradecê-lo ao final daquela semana por lhe oferecer o prazer de ver Kingsley Shacklebolt e todos seus palhaços do Ministério curvados a seus pés, como estavam naquele exato instante.
“Vossa Graça”, a maioria a havia chamado com base em seu real título, mas… alguns não resistiram ao ímpeto de soltar um “Majestade” - Kingsley inclusive, por mais que ela soubesse que ele fizera aquilo mais por sarcasmo do que qualquer outra coisa - e aquela palavra soava confortável demais nos cantos mais escuros de sua alma.
— Ministro. — ela estendeu a mão a Kingsley, que se levantou seguido pelos outros, e beijou-lhe o dorso à claro contragosto. — Trago as mais sinceras desculpas de Sua Majestade por sua ausência, e seus votos de que eu o substitua satisfatoriamente.
— Ah, madame, tenho certeza que o fará… Se tem algo que o Rei não faz é tomar decisões precipitadas. Se está aqui, é por um motivo: porque é capaz completamente de conduzir os assuntos de Estado como ele faria. — o tom falso de Shacklebolt era deliciosamente claro, e Bellatrix não podia deixar de sorrir, enquanto ele lhe oferecia o braço, rígido como um boneco de cera.
— Também oferece o braço ao Rei? — ela não resistiu à pergunta, que saiu de seus lábios antes que pudesse controlar, enquanto ela aceitava o braço de seu ex-inimigo. Ex? Nem tanto, pelo ódio que ele carregava nos olhos.
— Oh, não, de forma alguma. Mesmo porque, bem... o Rei não possui nem estes belos olhos verdes e nem de longe a mesma beleza que Vossa Graça. — oh, o flerte forçado. Bellatrix precisou segurar-se para não rir. Ela estava gostando tanto daquela situação que não se surpreenderia se caísse nos braços de Voldemort ao retornar à mansão, apenas por gratidão. Ela precisaria, é claro, tomar controle de seus impulsos para evitar algo do tipo e todo o arrependimento que viria depois.
— Imagino que também não flerte com ele… — ela sorriu, e sentiu Kingsley enrijecer o braço ainda mais. — Não se preocupe, será nosso segredo, afinal… como deve ter ouvido por aí, infelizmente flertar comigo tem um enorme potencial de não terminar bem para as pessoas.
— Neste caso, agradeço a discrição. — ele conseguiu dar um sorriso amarelo, e terminou de guiá-la para a sala principal do parlamento, onde a reunião aconteceria.
“Se quiser provar o caráter de um homem, dê-lhe poder”, uma vez Kingsley havia ouvido, e não podia discordar do antigo ditado. O que fazer, no entanto, quando se dá poder legítimo a pessoas cuja falta de caráter jamais foi questionada? Quando o mundo está ao alcance de suas mãos cobertas de sangue? Às vezes, ele se questionava se perder oficialmente a guerra não teria sido melhor a todos os que lutaram pela liberdade, que não seriam obrigados a assistir aquilo tudo.
Sentada a seu lado, numa cadeira ligeiramente mais alta - pois Voldemort nunca o deixaria esquecer seu lugar, é claro, e sua representante não seria diferente - Bellatrix observava os homens e mulheres a seu redor com velado desdém, mascarado pela expressão séria e postura superior, quase etérea - “típico”, ele não pôde deixar de pensar, pois tivera o desprazer de conhecer outros membros de aristocracias e, para seu eterno desgosto, daquela recém formada nobreza.
Voldemort tinha o mesmo comportamento, ele se recordava, aliado à clara certeza de que estava lendo as mentes dos presentes a todo momento. O terror nos olhos de seus colegas face àquela noção era sempre visível, o que fazia com que Kingsley se sentisse extremamente aliviado por saber que aqueles encontros com a Coroa seriam cada vez menos frequentes num futuro próximo. Semanais, provavelmente, para seu desespero, mas ainda assim o prospecto de passar sete dias sem ver um deles o trazia certa paz. O que o trazia à razão pela qual os via com tanta frequência e por trás de suas incessantes dores de cabeça: a grande reforma.
A Guerra havia acabado, e a paz tinha seu custo, que necessitava de demais concessões de todas as partes para ser pago. “Todas as partes”, ele quase revirou os olhos por seu próprio pensamento, pois bem sabia que aquela balança talvez jamais se equilibraria. Quando seus mortos seriam vingados, e suas vidas restauradas à tranquilidade de outrora? Quando os bons poderiam dormir em sossego sem temerem por seus filhos devido à sua ascendência? Aqueles eram os motivos que o mantinham ali, e o davam força para lutar naquele ninho de víboras para que a grande reforma tivesse alguma chance de colocar alguns pesos do outro lado da balança. Não que negociar com um psicopata fosse tarefa fácil.
A primeira sugestão da Coroa fora a repartição dos poderes, uma que era por demais esperada, devido ao enorme poder - até ele precisava admitir - entregue ao Ministro da Magia até ali, que como líder supremo do Ministério tinha o poder de aprovar ou não a criação de leis, executá-las e - em última instância - julgá-las. Era pouco surpreendente o potencial de corrupção numa função dessas, como perfeitamente representado por seus três antecessores de mandatos imensamente controversos, e era a vontade de Voldemort de acabar com aquilo. Era difícil encontrar alguém no Ministério contrário àquela medida, “muitos abutres esperando um pedaço da torta, isso sim” como bem colocara Arthur Weasley; e ainda mais na população, que estava farta de líderes supremos, apesar de curvar-se sorrindo a um monarca que meses antes era um ditador. Era quase genial, contudo, que a sugestão tivesse vindo da Coroa, e esse fato talvez explicasse a quantidade de sorrisos que ele via nestes mesmos idiotas curvando-se. Voldemort jogava um jogo inteligente, e perigoso para todos que se opunham a ele. Temido sempre fora, o que seria deles se passasse a ser amado? O pensamento lhe deu arrepios.
— Está tudo bem, Ministro? — a voz aveludada de Bellatrix o despertou, e ele agradeceu mentalmente por ela não possuir o talento da Família Real para Legilimência.
— É claro, Vossa Graça. — ele pigarreou e endireitou as costas, fitando o próprio colo por um momento, apesar do claro sorriso de vitória que a mulher a seu lado estampava no belo e maligno rosto. Bellatrix, inteligente como era, percebera o quão incomodado ele estava e, oh, ela se deleitava em seu desespero. Voldemort, onde quer que estivesse na Albânia, participaria deste deleite ao ler as memórias dela, ele tinha certeza.
Os idiotas abaixo de si, contudo, não pareciam perceber que quem os encantava por trás da aparência absolutamente régia era a mesma mulher que caçavam com tanto afinco poucos meses antes, e ele se perguntava se aquele era o efeito de algumas pedras preciosas colocadas ao redor da cabeça de uma pessoa, especialmente uma bela mulher, ou se o poder estava na tinta borrada em um papel manchado de sangue e fuligem riscado às pressas por pessoas desesperadas por salvar àqueles que amavam.
Amor. Era profundamente trágico que algo tão puro quanto o amor salvara Voldemort, que sempre desprezara tal sentimento, e condenara o mundo a se curvar a ele e à mulher responsável por tudo aquilo, a mesma para a qual todos sorriam. Saberia ela, ele se perguntava, que todos ali a viam como uma espécie de rainha não coroada? Que ela era a rainha não coroada de todos eles e Kingsley, por um lado, sentia pena se qualquer outra pobre mulher ousasse usar aquela coroa no futuro, pois qualquer poder que tivesse seria ínfimo perto do da verdadeira ainda que ilegítima rainha: Madame Bellatrix Lestrange, Duquesa de Bordeaux, que naquele dia era mais legítima do que ele jamais se sentiria confortável em admitir.
A verdade inegável era que a partida dela para a França fora a melhor coisa que acontecera a todos eles, não só por conta de algum senso de justiça com a perda que aquilo significara para Voldemort, mas porque ela o fazia mais forte. Não que ele sozinho fosse qualquer coisa menos que fortaleza, porém ao lado dela, ele era de fato invencível. Alguém, meses antes, havia comentado como as perdas em batalha dele começaram após o incidente na Mansão Malfoy, após o fim do reinado da Lady das Trevas. A razão em que todos concordavam? Como profetizado por muitos no passado, ele fora informado por Snape, Bellatrix se tornara a fraqueza de Voldemort, não quando juntos, mas quando separados, pois o estresse dos problemas com ela pareciam ter tirado um milésimo que fosse do foco do então Lorde das Trevas… Kingsley não se impressionava que o monarca estivesse sendo quase fácil de se lidar, pois o reino inteiro especulava que seus reais interesses estavam muito mais do outro lado do Canal da Mancha do que em casa. O problema era: se este era o caso, e Voldemort já tinha uma presença tão marcante no Ministério teoricamente distraído, Kingsley desejava que Bellatrix nunca fosse rainha.
— Fico feliz. — ela levantou a sobrancelha, e o olhou pelo canto do olho. — Não gostaria de pensar que minha presença o incomoda, Ministro.
— Jamais, majestade. — Kingsley permitiu-se brincar, mas o teste da palavra, após tudo sobre o que havia refletido nos minutos anteriores, o causou um temor pelo futuro. Voldemort e Bellatrix eram perigosos separados, mas explosivos juntos, trazendo tudo o de mais poderoso e pior no outro. Como um casal, eram uma rocha impenetrável, e ninguém ali precisava daquilo. — Como estava dizendo, o plano de dividir os poderes encontrou alguns impasses nos últimos debates. O poder executivo, veja, está por definição na Coroa, que o transfere a mim, para que eu possa representá-los, formar um governo e de fato performar a execução das leis no nome de Sua Majestade, a partir de seus conselhos e direcionamentos. Quanto a isso, não há dúvida. A Coroa e o Ministro da Magia, juntos, formam o poder executivo e são os guardiões da boa execução de nossas leis. — Bellatrix assentiu. — No entanto, existe uma pequena dúvida quanto às linhas de poder de Sua Majestade e do Ministro.
— Onde um começa e o outro termina. — Bellatrix sorriu e levantou-se, sendo seguida, segundo protocolo, por todos. — Não se preocupem, podem se sentar. Você mesmo disse, Ministro, que a função da Coroa é supervisioná-lo, garantir o bom trabalho, uma vez que nos representa. — Kingsley assentiu. — Então a solução parece clara para mim e para Sua Majestade, que redigiu uma proposta para o poder executivo. - ela mostrou a todos uma pasta com diversos documentos. — Tive o prazer de ler o material final, e ajudar o rei a revisar. Creio que será do agrado de todos. Devo começar, ou o Minsitro prefere fazer as honras?
O fato de que ela chegara tão preparada não devia ter sido uma surpresa, Kingsley sabia, pois se Voldemort confiara nela para presidir uma reunião tão importante não seria sem ser como se ele próprio estivesse ali. Como rainha, ela era uma extensão do poder dele, alinhada, poderosa, preparada, e jamais à mercê deles, por menos conhecimento que tivesse. Sabendo que não ia gostar do conteúdo, ele forçou-se a sorrir. — A honra é toda sua, majestade. — Ele esperava realmente que a forma de tratamento não se tornasse um hábito.
O sabor do poder que lhe fora emprestado era viciante, e Bellatrix pudera quase senti-lo entre os lábios, quando os lambera rapidamente, para somente então abrir a pasta com os pergaminhos escritos por Voldemort; a bruxa por um instante precisou resistir à tentação de deslizar os dedos pelos traços delicada e cuidadosamente feitos pela pena de seu mestre, cada curva e sílaba pensados para dar a eles, a ele, o melhor cenário naquela discussão. Voldemort era um gênio, e cabia a ela convencê-los daquilo.
— Damas e Cavalheiros. — ela começou, deixando os olhos passearem pela sala, observando as expressões de cada um. Bellatrix não os temia, nem de longe, sabia muito bem que era capaz de destruir a grande maioria daqueles idiotas com um simples floreio da varinha que guardava junto à coxa, ao lado de sua adaga, ambas lembrando-a de que ainda estava entre inimigos. Talvez Kingsley lhe desse trabalho, é claro, e alguns outros, mas observar as pessoas ali apenas lhe fazia crer que Fugde fora sempre o melhor exemplo do que o Ministério tinha para oferecer quanto à bruxos, pelo menos até os aurores chegarem. Ela não estava ali para lutar, no entanto, seu propósito era muito menos divertido e precisava lembrar-se disso. O diferente, apesar de menos divertido e excitante, parecia estar lhe agradando muito mais do que ela havia imaginado, o que a trazia de volta ao ponto em questão: ela não temia nenhum deles, mas nem ela nem Voldemort eram tolos o suficiente para subestimar o sistema que aqueles bruxos, ainda que medíocres, representavam. E era exatamente por causa disso que Bellatrix representava a Coroa naquela sala, segurando firmemente os papéis em suas mãos, e porque Kingsley estava congelado a seu lado.
— Durante anos, vivemos em guerra e matando uns aos outros, pois éramos incapazes de concordar quanto à cor do céu e muito menos quanto à nossa relação com os trouxas. Alguns de nós, a maioria de vocês, demonstraram compaixão e até fascínio por aquelas pobres criaturas desprovidas de magia. — seus olhos caíram para o canto da sala, onde Arthur Weasley observava inquieto, ainda que não pudesse opinar. Aquela não era uma sessão sobre os trouxas, e sim sobre legislação, mas era evidente que o futuro sogro de Harry Potter iria observar. Seria uma surpresa que o próprio Potter não estivesse por ali, mas felizmente todos concordaram que o assunto dizia respeito apenas a membros do Ministério e da Coroa, por mais que muitos tivessem encarado tal decisão com desgosto. — Outros de nós, como Sua Majestade e todos os que o seguiam, acreditávamos que os trouxas nos roubaram nosso direito de liberdade, de tranquilidade e, porque não, de viver, condenando um mundo inteiro a viver no anonimato, nas sombras, escondendo-nos de criaturas mais fracas do que nós que dedicaram séculos a nos caçar e exterminar. Queríamos liberdade e, devo admitir, vingança, por tudo que foi tirado de nós. Como Grindelwald e tantos outros bruxos brilhantes que buscaram o mesmo fim e foram vilanizados pela História. Percebo hoje que o mundo bruxo nunca conseguirá concordar quanto ao que deve ser feito em relação aos trouxas e, mesmo que concorde, talvez estejamos condenados a nos curvar à paranóia dos Americanos, mas esta não é a discussão de hoje e entendo suas feições confusas.
— Meu ponto é que em muitas coisas, em nossa própria essência, jamais vamos concordar, mas existe algo que nos une, que nos faz querer acertar as diferenças que podemos para vivermos daqui pra frente: o desejo de paz. Os anos de guerra e as perdas nos mostraram que nossa ideologia, por mais que uma grande parte de nós, não pode ser pilar forte o suficiente para justificar tanta dor para os dois lados. Uma porta foi aberta para a paz e todos concordamos em passar juntos por ela. — ela parou por um momento e os observou trocarem olhares entre si, alguns tímidos, outros sem pudor de concordar com um aceno de cabeça, enquanto a Duquesa respirava fundo para continuar.
— Para que a paz funcione, contudo, todos concordamos que mudanças devem ser feitas, que o poder deve ser equilibrado, e passamos os últimos meses discutindo com este fim, até finalmente chegarmos a uma proposta que agradará a todos. As eleições bruxas continuarão a ocorrer de sete em sete anos, buscando não somente manter o hábito do povo e do Ministério como um tanto, mas também a boa sorte que um número tão forte e poderoso pode nos trazer neste novo ciclo, mudá-lo seria… um mau agouro, com certeza, e não precisamos de nada disso. — Bellatrix percebeu algumas risadas, as pessoas estavam finalmente se acostumando com sua presença, e se divertindo. Outros, como Kingsley, permaneciam impassíveis e havia um ou outro que não fazia questão alguma de esconder seu descontentamento, mas ela precisava da maioria não de todos.
— Porém, em vez de escolherem diretamente o Ministro, como atualmente, as eleições escolherão metade do Parlamento, vinte e nove cadeiras, para ser precisa, que poderão somente ser ocupadas por representantes reais do povo, sem quaisquer laços com Sua Majestade ou a Família Real, e sem títulos de nobreza, por mais simples que possam ser - salvo honrarias específicas, como medalhas de honra ao mérito por serviços prestados ao país. Posteriormente, membros dessa casa poderão ser recompensados com títulos, é claro, por seu serviço ao Rei e país, mas nunca durante seu período como parte do Parlamento. — Kingsley encarou-a pela primeira vez em o que parecera uma década, visivelmente chocado. O que eles esperavam? Que eles fossem idiotas o suficiente para trazer uma proposta fadada ao fracasso? Pobre Shacklebolt, ainda tinha tanto a aprender. — Na mesma lógica, somente pessoas não ligadas à Coroa ou Nobreza poderão votar. Esta casa deve representar o povo bruxo, por isso as condições e o nome “Casa dos Comuns”. Quanto àqueles de nós com laços mais próximos a Sua Majestade, títulos de nobreza, não nos encaixamos nas condições da “Casa dos Comuns”, e será criada uma segunda casa, com mais vinte e oito cadeiras, a “Casa dos Nobres”.
— Vossa Graça... — Kingsley a interrompeu, levantando-se para encará-la. — Perdoe-me, mas vinte e oito? Não seriam vinte e nove, como a dos Comuns?
— Kingsley, meu caro, — Bellatrix não pode deixar de sorrir com como ele havia caído em sua pequena armadilha. — não estrague a diversão! Chegaremos neste ponto em um minuto. — ela piscou, e conseguiu ouvir mais algumas risadas. — A Casa dos Nobres será formada por indicação de Sua Majestade, que procurará distribuir as cadeiras igualmente entre todas as famílias nobres britânicas. — ela podia ver que Kingsley desconfiava daquele plano tão justo e perfeito. — Agora sim, ao ponto da diferença do número de cadeiras, a Casa dos Comuns terá um assento a mais propositalmente, pois um destes sortudos eleitos pelo povo será escolhido, pelas duas casas em conjunto, para ser nosso novo Ministro da Magia.
Bellatrix viu nos olhos de Kingsley que ele percebera o problema daquela situação, enquanto todos ao redor deles pareciam celebrar a ideia de que o Ministro viria sempre da Casa dos Comuns. Shacklebolt, contudo, era mais inteligente do que aquilo, ele sabia como aquilo iria dividir a Casa dos Comuns, como Voldemort estava balançando poder na frente deles como cenouras em uma vara para que brigassem entre si e jamais fossem uma oposição unida, e não se preocupava em esconder aquilo de Bellatrix.
— Touché, majestade. — Kingsley sussurrou em seu ouvido, e Bellatrix não pode deixar de sorrir com o canto dos lábios. — Brilhante, ainda que aterrorizante.
— O plano não é aterrorizante, Kingsley, é justo. — ela abriu mais o sorriso. — Aterrorizante é o fato de que eles não percebem o que vocês todos farão com isso, como o arruinarão para benefício próprio.
— Estão nos dando a corda…
— Use-a com sabedoria, ministro. Vocês tem uma real chance aqui… Sua Majestade o Rei foi extremamente generoso-
— Generoso? — ele riu-se, sem chamar a atenção dos outros que discutiam entre si. — Seu rosto não queima, Bellatrix? Tudo o que Voldemort está fazendo é criando um circo lindo apenas para assistir enquanto nós o destruímos, para que ele não precise sujar as mãos já que está ocupado demais… — Kingsley parou subitamente, e ela fechou o semblante, furiosa com o atrevimento dele, mas toda máscara eventualmente cai.
— Termine o que ia dizer, ministro. — respondeu a bruxa, calma por fora ainda que borbulhando em sua alma. — Como sua soberana, ainda que temporariamente, isso é uma ordem. E não minta para mim, posso não ser Legilimente, mas saberei.
Kingsley se aproximou mais dela, ainda se preocupando em não deixar que os demais percebessem aquela troca um tanto quanto exaltada. — Com todo o prazer: Sua Majestade está preocupando demais polindo a coroa de uma rainha que ele nem ao menos tem, vossa graça.
A mão da bruxa tremeu na direção da coxa onde sua varinha estava, e ela desejou com todas as forças poder matar Kingsley ali mesmo, como ele ousava insinuar que Voldemort estava negligenciando o país por causa… dela, deles. Voldemort jamais faria uma coisa daquelas, era… completamente inconcebível. Poder, poder sempre fora tudo o que ele mais quisera, e agora o tinha. Se aquele bando de tolos achavam que Voldemort poderia deixar-se fraquejar assim, estavam enganados, porque se num pesadelo horrível ele o fizesse, ela não permitiria. E, por isso, ela simplesmente sorriu.
— E é nisso que o país inteiro acredita… quão inocentes podem ser? Sinto-me lisonjeada, Shacklebolt, mas temo que não deviam se apoiar nisso para subestimar o Rei… não lhe parece uma aposta muito alta e inverossímil? — ela levantou a sobrancelha e riu-se. — Acredite no que quiser, afinal de contas… estou do lado dele, como sempre, e não vou perder o meu tempo te dando conselhos que um Ministro da Magia não devia precisar.
— Não era essa a função do monarca, majestade, me aconselhar?
— Em assuntos de Estado, sim, mas isso é, para dizer o mínimo, uma questão de senso comum, meu caro. É inaceitável que se apoie em mim, em nós, para tal, mas você aprenderá com o tempo… Afinal, Kingsley, não é essa a sua função? Nos representar? Governar em nosso nome? Aproveitar o poder que nós graciosamente emprestamos a você, até que… bem, você não atenda mais às expectativas e, devo dizer, seu comportamento nos últimos minutos renderá um enorme relatório para Sua Majestade em seu retorno da Albânia.
— Ele não pode me tirar do cargo, mesmo que queira, pelo menos até a reforma entrar em vigor, pelo acordo de paz...
— Eu sei, fui eu quem o redigi. — ela o cortou. — Mas nada o impede de tornar sua vida insuportável. Nosso poder, Shacklebolt meu caro, lembre-se disso. — ela terminou com um brincalhão beijo na bochecha dele, que fez os outros presentes acreditarem que estavam discutindo algo muito mais agradável. — Sendo sincera, preferia muito mais quando estava falsamente flertando comigo. Meu conselho? Mais daquele Kingsley, menos desse aqui. Sorria, Shacklebolt, precisamos retomar a sessão. — o tom que ela usou foi o suficiente para deixar claro que se tratava de uma ordem.
— Tem a palavra, minha rainha. — Kingsley acenou com a cabeça a contragosto, e voltou a sentar-se, com um falso sorriso. Com a intensidade com a qual ele a encarava, Bellatrix sabia que o Ministro estava imaginando maneiras de tirar sua cabeça, e não suas roupas como alguns ali podiam pensar. Naquele minuto, ela tinha a certeza de que ele preferia trabalhar com Voldemort, mas o show devia continuar.
— O Ministro e eu nos desculpamos por nossa distração, temos tantos assuntos para tratar, e tão pouco tempo! Amanhã mesmo tenho encontros com líderes de outras nações parte de nosso reino para desenharmos planos similares, com exceção da Albânia onde Sua Majestade está, é claro. Todos serão baseados neste que ele, tão engenhosamente, criou junto a todos vocês. Pelo bem de nosso amado país e do reino como um todo. — Bellatrix sorriu, e virou mais uma folha do pergaminho. — Continuando: Para que seja eleito a Ministro da Magia, um dos membros da Casa dos Comuns deve receber a maioria simples dos votos das duas casas: vinte e nove. Um mesmo Ministro da Magia poderá se reeleger uma vez apenas, desde que ainda cumpra os requisitos para participar da Casa dos Comuns. Após a escolha do Ministro, as duas casas funcionarão separadamente, cada uma propondo seus respectivos projetos de lei que, após aprovados pela Casa de origem, deverão também obter maioria na outra. Em casos excepcionais de divergência, ambas se reunião para discutirem os problemas. Após a aprovação das duas casas, o Ministro da Magia sancionará a Lei, junto ao Rei e…
Neste ponto, Bellatrix estava lendo o que Voldemort escrevera, e engoliu seco. — à Rainha, se esse cenário for aplicável. — um silêncio sepulcral tomou conta da sala. “Rei e Rainha” não “Rei ou Rainha”, e Bellatrix tentava ignorar o que aquilo significava, mas ela sabia muito bem o que era: a divisão de poderes começava dentro do palácio, ele não sancionaria nada sem… Sem a rainha, quando e se tivesse uma. Por mais que afastasse os pensamentos de como ele havia escrito aquilo pensando nela, o terror tomou conta de si ao se lembrar que a mesma lógica valeria caso ele tomasse outra rainha, outra mulher, dividindo o poder dele livremente. Era quase cruel fazê-la ler aquele parágrafo. Oh, ela o mataria ao chegar na Mansão Slytherin. — Vejo que não temos dúvidas até aqui?
Nenhum dos criados havia questionado o fato de que ela não desceria para o jantar, talvez por estarem acostumados com a falta de Voldemort neste tipo de ocasião, quando muito ocupado ou simplesmente sem paciência, ou o porquê de ela ter requisitado uma garrafa de Champagne num dia tão corriqueiro, mas aquelas eram as vantagens de se reinar sobre um país: questionamentos não eram comuns. Ela não sabia exatamente o que o Rei estava fazendo, mas sabia que em algum momento ele retornaria ao quarto, e o trinco da porta lhe provou correta poucos minutos depois que a comida e o champagne haviam chegado.
— Champagne? — Voldemort questionou, ao fechar a porta atrás de si. — Isso só pode significar que vossa graça aprovou a reforma.
— Sua reforma, majestade. — Bellatrix o corrigiu, enquanto tirava a garrafa do gelo. — Eu somente sorri e posei em meu melhor vestido e caras joias, lendo as suas palavras… apenas executei um plano brilhantemente pensado por alguém superior a mim. Logo: você a aprovou, milorde. — Bellatrix tinha certeza que vira um sorriso no canto dos lábios dele ao ouvir a forma de tratamento. Não era como se ela pudesse negar que o antigo hábito era confortável, no mínimo. Ele era o rei de todos, mas sempre seria o seu Lorde das Trevas, não importava o que acontecesse. Velhos hábitos custam a morrer… — Este brinde é mais seu do que meu, apesar de os criados terem mandado apenas uma taça…
— Hoje, minha cara Bellatrix, nos daremos ao luxo de pular o protocolo. — ele tirou a garrafa das mãos de Bellatrix, e se pôs a abri-la. — e beber direto da garrafa. Eu sei, absolutamente escandaloso!
— De fato! — ela fingiu-se de surpresa, e Voldemort deixou-se rir. — O que o mundo bruxo diria, majestade?
Voldemort parou por um segundo, parecendo ponderar sobre algo, e deu de ombros. — O que o mundo bruxo diz sobre tudo o que eu faço ultimamente: que parece que eu tenho uma nova rainha, ou terei, ou sei lá o que… porque aparentemente te deixar como regente é um contrato de casamento, então beber da mesma garrafa de Champagne deve equivaler a…? — Bellatrix percebeu que ele estava brincando, rindo-se da situação para deixá-la confortável, provavelmente porque vira na mente dela tudo o que acontecera.
— Sexo selvagem, sem dúvidas! Estará nos jornais que teremos um novo herdeiro em alguns dias… — o barulho da Champagne estourando os interrompeu, mas ela pode ver que ele ria do comentário.
— Não duvido… damas primeiro. — ele estendeu-lhe a garrafa, e Bellatrix a pegou sem pestanejar. — Ao trabalho bem feito.
— À diminuição do poder do Ministério, e aumento do nosso… digo, do seu, majestade. — ela bebeu da garrafa, repreendendo-se mentalmente pelo deslize.
— Do nosso, minha cara, do poder da monarquia como um todo, e você faz ainda faz parte dela, vossa graça. - Voldemort pegou a garrafa de volta, e bebeu, enquanto ela o observava, curiosa. Não podia ter certeza do que ele estava pensando, mas podia ver o quão satisfeito ele estava com a vitória e, também, com aquela situação. — Mais do que isso… você é quase como um membro honorário da Família Real, minha cara.
— Eu não sou nada disso. — Ela retrucou, com um pouco mais de mau humor do que gostaria de ter demonstrado, e Voldemort franziu o cenho, devolvendo a garrafa para ela, que bebeu rapidamente, tomando vários goles da bebida antes de dizer mais alguma coisa. — Por mais que todos pareçam desejar que eu seja…
Voldemort simplesmente deu risada, sem que ela conseguisse compreender onde estava a graça da situação, e deixou-se cair sentado na cama ao lado dela. Bellatrix abriu e fechou a boca diversas vezes, sem conseguir decidir o que dizer ou perguntar, completamente perplexa com a reação do bruxo. — Em primeiro lugar, não sei se “todos” se aplica neste caso, minha cara. Eu, para começar, quero e muito que você seja um membro ativo da Família Real, mas isso não é novidade para você, e ainda existem diversas pessoas neste país e fora que dormem mais tranquilos sabendo que temos um mar entre nós. Agora, o que eu quis dizer, é que você sempre será agregada a esta família, você goste ou não, porque, não importa o que aconteça, não é como se pudesse deixar de ser mãe da herdeira do trono, Bellatrix. Melinda é sua filha, sempre será, e acontece que também é minha. E, se um dia ela assumir o trono, você será rainha mãe, portanto conforme-se com seu status de membro honorário dessa família. Não é porque deixamos de ser um casal que a família se destruiu, são coisas diferentes… — ele pegou a garrafa de volta, e Bellatrix sentiu o próprio rosto queimar. Ele estava certo, como sempre, irritantantemente certo.
— Desculpe-me, não foi o que quis dizer. — Bellatrix suspirou e sentou-se ao lado dele, dando de ombros. — Eu me exaltei…
— Porque a simples insinuação de ser rainha, exceto em meio a piadas, te apavora, apesar de parecer bem confortável em suas memórias. — Voldemort provocou, e ela não resistiu ao ímpeto de rolar os olhos, por mais que detectasse uma nota de amargura na voz dele.
— O que eu queria dizer é que você está certo: nunca deixarei de ser mãe da Melinda, não importa onde eu more, o que esteja fazendo ou…
— Ou?
— Com quem você se case e coroe rainha… — ela pegou a garrafa de volta e bebeu um longo e exagerado gole. — No futuro, digo.
Voldemort virou-se na direção dela, e a encarou num misto de diversão e surpresa. Bellatrix sabia muito bem que ele estava dentro da mente dela, lendo cada mísero detalhe do que acontecera, buscando a razão daquele comentário. E, pela forma como a expressão dele se fechou por um segundo, para então mudar completamente para demonstrar sua irritante satisfação, ele havia encontrado.
— Eu tinha que fazer precauções, Bella, fico chocado que a tenha surpreendido. Caso eu de fato venha a me casar, no futuro, meu desejo é que minha futura esposa seja minha igual, de fato divida o meu poder, ou qual o ponto em ter uma rainha? O propósito de um rei e uma rainha, em minha visão, de deixar que alguém divida o seu título, é encontrar seu igual, minha cara.
— Esse pensamento significaria que não teremos nunca uma rainha, e eu e você sabemos que não acredita nisso, ou não teria colocado aquilo no acordo. — ela o encarou — Não existem pessoas iguais a você, e nós dois sabemos que você provavelmente os destruiria se existissem… Jamais irá de fato encontrar alguém digno o suficiente para chamar de seu igual, muito menos dividir seu poder dessa forma tão aberta. — por um segundo, ela soou como a Bellatrix do passado, superprotetora, obcecada, mas o ímpeto de falar aquelas coisas era mais forte do que ela.
Voldemort pegou a garrafa da mão da bruxa, deixando-a no balde de gelo ao lado deles, antes de se voltar novamente para ela, que encarava o próprio colo. — Você quer saber a verdade, minha cara duquesa? Por mais incômoda que ela possa ser? Sim, eu não acredito que jamais teremos uma rainha, e concordo que achar alguém que se iguale a mim é uma missão quase impossível, mas… que acredito que se fará necessária. — ele parou por um momento, para tocar o queixo de Bellatrix, fazendo-a olhá-lo nos olhos. — Porque a verdade é que eu já encontrei alguém que se iguala a mim, Bella, e você sabe disso, eu já te disse isso, por mais que você não queira acreditar… ela está aqui, na minha frente, e ela é a razão pela qual eu coloquei aquela cláusula no acordo. E pode ser que a situação atual se mantenha e, de fato, ela jamais aceite dividir meu fardo, mas eu precisava pelo menos ter a certeza de que essa possibilidade estaria coberta.
— E se nunca acontecer de fato são apenas palavras num papel?
— Bom, minha cara, eu encontrei você, não é mesmo? Quem garante que, se um dia você conseguir me fazer desistir de te reconquistar, não conseguirei encontrar mais um igual neste mundo? Aconteceu uma vez, o quão impossível pode ser? — ela conseguia ouvir que ele a estava provocando, e queria estapeia-lo por tal comportamento, mas Bellatrix não podia evitar que uma parte de si estremecesse ao pensar naquela possibilidade.
— Querendo me substituir antes mesmo de desistir de mim? — ela devolveu a provocação e Voldemort beijou-lhe o dorso da mão.
— Jamais, minha cara… Mesmo que eu encontrasse um outro igual, você jamais poderia ser substituída. Seria como substituir um furacão, como Kingsley bem aprendeu. — ele pegou a garrafa novamente, e Bellatrix usou os segundos para se recompor. — O que nos traz de volta à celebração.
— O nosso caro Ministro da Magia não sonhará com suas próximas viagens, majestade, posso lhe garantir. — a mulher sorriu e aceitou a garrafa que lhe era oferecida. — De volta à comemoração tão merecida: ao futuro do mundo bruxo como nós sonhamos.
— Ao futuro.
— Bom, sei que ultrapassou vários limites humanos, mas sei também que aprecia boa comida bebida como todos nós, então pedi que subissem com o jantar também, para uma comemoração completa. Assim como a champagne, seremos forçados a dividir tudo, milorde. Como bem sabe…
— Ninguém sabe que estou aqui, sim… — ele assentiu. — E como bem sabe, não tenho problema algum com o conceito de dividir coisas com você. Não era sobre isso que estávamos falando há pouco? — Bellatrix revirou os olhos e se levantou para se aproximar da lareira.
— Vamos? — Ela apontou para o jantar colocado próximo à lareira, e ele se levantou para se juntar a ela. — Depois do dia de hoje, ainda temos muito a comemorar.
Rodolphus estava ficando, na falta de palavra melhor, impaciente. Bellatrix lhe havia prometido ajuda mais de vinte e quatro horas antes e, até o presente momento, nenhuma notícia dela. Ele sabia, no fundo, que ela não era de voltar na própria palavra e, no fim, o ajudaria, mas ele estava preocupado com Narcissa, com a situação em que ela deveria estar em meio àquele furação todo. Bellatrix precisava aparecer, e rápido.
O que ele não esperava era que ela demoraria tanto, ou que daria o ar da graça somente no dia seguinte e, para piorar, por meio de uma coruja. O selo na carta era uma insígnia que ele não conhecia, mas o B no meio deixava bem claro de quem se tratava. Era quase engraçado que Voldemort a deixara responsável por Bordeaux, dando a Bellatrix ainda mais uma desculpa para colocar a própria inicial em tudo. Típico. Rodolphus rasgou o selo, quase irritado, e percebeu que dentro havia mais do que ele havia imaginado.
De dentro da carta, desdobraram-se diversos documentos oficiais. O símbolo do Ministério era claro e a escrita extremamente organizada. “Petição de anulação”, era o título de um dos documentos, “Repartição oficial de Bens”, era o próximo; seus olhos se desviaram para as assinaturas no fim de cada documento, e ele sorriu ao ver as assinaturas de uma pessoa qualquer do Ministério que não lhe importava, do próprio Kingsley, de Bellatrix duas vezes, mas com um selo diferente ao lado da última assinatura. Aquela não era a assinatura de Bellatrix Lestrange, e sim da Duquesa de Bordeaux, como regente representando a Coroa, e aquele era o selo de Voldemort - da monarquia, no caso. Ele franziu o cenho, até se recordar de que a proximidade de Bellatrix com a família real era a razão por trás daquela assinatura ser necessária. Era era mãe da princesa, parte da Corte, da nobreza, praticamente tudo o que qualquer um nessas condições fazia precisava de autorização ou, ao menos, ciência da Coroa.
— No seu caso, permissão, querida ex-esposa. — ele disse pra si mesmo. — Ou quase ex… — Rodolphus deu de ombros e procurou a pena e tinteiro mais próximos para assinar e acabar com aquilo tudo. Com seu próprio título, ele também tinha seu anel com uma insígnia para fechar as cartas, só não se dera ao trabalho de mudar nada e continuara a usar o brasão dos Lestrange.
— Eu leria isso, vossa graça. — Rodolphus fechou os olhos, e olhou para cima para encontrar Bellatrix parada na porta, encostada ao batente. Ele franziu o cenho. — Eu costumava morar aqui, lembra? Sei como desviar dos empregados e elfos, e sei onde fica seu escritório. — ela respondeu à pergunta que ele nunca fez, e deu de ombros. — Mesmo que fosse diferente, sou regente, todos me obedecem, então tecnicamente eu podia ordenar que não me anunciassem. De qualquer forma, leia, não quero dúvidas futuras.
— Os elfos não te obedeceriam simplesmente por ser regente, vossa graça. — Rodolphus sentou-se e suspirou, antes de começar a ler.
— De fato. — ela se aproximou com um sorriso, e sentou-se à frente dele. — Mas até você assinar, me obedeceriam porque eu ainda sou a Sra. Lestrange… Bom, se você tivesse lido, saberia que eu sempre vou ser a Sra. Lestrange. Posso ter me apegado ao nome, e tudo o mais. De qualquer forma, Rabastan me viu, e está bem curioso para saber porque eu os “honrei com minha real presença”, nas palavras dele. Não contou ao seu irmão?
— Em minha defesa, — Rodolphus desviou os olhos para encará-la — os documentos acabaram de chegar. E, se você vinha, por que os enviou por coruja? E não, não quis contar a ele até que tudo estivesse resolvido. Eu não sabia que seria tão… eficaz.
— Porque quem envia os documentos é o Ministério. Os assinei ontem, e eles precisaram protocolar e um monte de coisas. Esse processo geralmente leva alguns dias, mas ser regente tem suas vantagens. — Bellatrix sorriu e relaxou na poltrona. — Algo que você saberia se tivesse lido o bilhete que enviei junto.
“A beleza de ser nobre e regente é ter um monte de puxa-sacos querendo fazer tudo para ontem para te agradar. Sua liberdade, meu caro. - B.”, ele bateu os olhos no bilhete e revirou os olhos, enquanto ela comentava sobre como ele tinha problemas com leitura. — Quanto ao nome, me surpreende que não tenha decidido reviver a mui nobre e antiga casa dos Black.
— Melinda está fazendo isso… ela é a última Black viva. E eu deixei de ser Bellatrix Black há décadas, não via porque voltar, não imaginei que ia te incomodar…
— Não incomoda, se for sincero. Você, de um jeito ou de outro, nunca deixará de fazer parte da família. — Ele respondeu, assinando o primeiro documento. A assinatura e o selo acenderam-se por um instante e ambos entenderam que estava feito. Não estavam mais oficialmente casados, nenhum dos elfos a obedeceria mais, e o cofre em Gringotts não abriria para ela nunca mais. — Estranho, não? Oficializar a verdade que encaramos há anos.
— Você é quem tem que responder… como se sente estando livre de mim? — ela perguntou, quase em tom de brincadeira, e Rodolphus lambeu os lábios.
— Parece que nada mudou e tudo mudou…
— Porque para o mundo tudo mudou, mas pra gente… nós já sabíamos disso. — ela sorriu e tirou o documento das mãos dele. — O Lorde das Trevas, no passado, teria dado risada desse documento, dito que “antes tarde do que nunca”, ou que “pensei que eu já tinha anulado esse casamento há anos”.
— Quando te fez Lady das Trevas. — Bellatrix assentiu. — Se fosse hoje em dia, teria realmente, mas talvez seja por isso que nós não vemos tanta diferença assim, nós reconhecíamos a autoridade dele. E você... bem, o amava. — Rodolphus respondeu, se aprofundando nos detalhes do documento a sua frente, o da partilha de bens.
— Sim… eu o amava. - Bellatrix concordou e analisou o documento em suas mãos. — Bom, ele ficará sabendo quando retornar da Albânia, e veremos sua reação.
Rodolphus parou o que estava fazendo, e a encarou. Ela parecia concentrada no documento, mas ele sabia bem que era em algo diferente que pensava. Ou alguém. — Sabemos bem que ele pensará exatamente o que você está pensando, majestade.
— E o que é isso?
— Que eu não sou o único livre. — Rodolphus sorriu, e Bellatrix revirou os olhos, irritada. — Ele está à procura de uma rainha, e eu não acredito neste passado em “o amava”, portanto… com o tempo, essa liberdade lhe será útil.
— Não vou discutir com você, caro ex-marido. — foi a resposta que ela deu, e Rodolphus se resignou a aceitá-la, mesmo não satisfeito. Conhecia Bellatrix bem demais para ter certeza de que estava certo.
— Não me surpreende que você tenha decidido ficar com metade de tudo, além do nome… — Rodolphus suspirou. — É seu direito, não posso ter objeções, só esperava…
— Esperava...? — ela arqueou uma sobrancelha.
— Esperava que eu tivesse me divertido muito mais neste casamento para tomar essa pancada, mas… metade de muito, ainda é muito, e agradeço ter me deixado a casa. — ele se preparou para o tapa que, como imaginado, atingiu seu braços poucos segundos depois.
— Você se divertiu bastante, meu caro, em nosso noivado. Mais do que muitos, então sem reclamações. E não deveria estar planejando se divertir com outras pessoas? Irmã errada, talvez?
— Justo. — ele assinou o segundo papel, e imaginou que o Gringottes havia sido avisado imediatamente e, logo, Bellatrix teria seu próprio cofre. Rodolphus se levantou e buscou um copo de uísque de fogo para cada um. — Ao futuro?
— Ao futuro. — ela bateu o copo contra o dele, e eles beberam ignorando o fato de que estavam no meio da manhã. — Agora, se não me engano, eu ainda te devo algo muito importante, aquela ajuda…?
— Devo considerar metade dos meus bens o pagamento?
— Creio que minha ajuda neste assunto vale essa perda.
— Mais, muito mais…
— Devia ter negociado isso antes de assinarmos… de qualquer forma, eu cumpro minha palavra. — Bellatrix terminou o copo, e ofereceu o braço a Rodolphus, que o aceitou apesar de rir. — Lembre do que eu te disse, preciso que confie em mim e siga meus passos. — aquilo ainda o assustava.
Uma hora depois, para o desespero de Rodolphus, eles estavam novamente na sala da Mansão Malfoy, com Bellatrix confortavelmente sentada em um sofá, enquanto ele e Narcissa discutiam intensamente. Eles estavam naquela mesma posição havia pelo menos quinze minutos, desde que Narcissa decidira parar de gritar com Bellatrix para gritar com ele, sobre o quão errado era envolver Bellatrix naquilo tudo. Em algum momento, um copo de absinto surgira nas mãos de Bellatrix que, em vez de ajudar, apenas os observava, parecendo se divertir muito mais do que devia. Ele podia jurar ter visto, em algum momento, um chocolate nas mãos dela, mas preferia se convencer de que havia se enganado. Para quem, supostamente, estava ali para ajudar, ela estava fazendo um péssimo trabalho.
— Você vai simplesmente olhar? — ele perdeu a paciência e olhou na direção de Bellatrix, quando Narcissa parou para respirar, e a duquesa deu de ombros com calma.
— Até o momento, minha irmã só disse verdades e coisas que eu já te disse. — Bellatrix respondeu, colocando o copo de absinto ao lado cuidadosamente. Narcissa parou e piscou algumas vezes, encarando a irmã sem entender o que estava acontecendo. O apoio de Bellatrix era algo que ela jamais esperaria naquela situação e, a se julgar pelo queixo caído de Rodolphus, ela não era a única. Rodolphus engoliu seco e repetiu para si mesmo ‘confie nela’ repetidamente como um mantra, para não dizer ou fazer algo de que se arrependeria. — Então não me pareceu que eu podia ser de muita ajuda. Contudo, francamente, nós três sabemos que essa semana meu tempo é um pouco mais precioso do que o normal, com um país para governar e tudo o mais, então vamos resolver essa palhaçada logo? — ela se levantou, e cruzou os braços. — Comecemos falando a verdade, meu caro, o fato que nós duas somos capazes de encarar e do qual você foge: a quem você está enganando?
— O que diabos, Bella? — ele não se controlou e respondeu, arregalando os olhos em surpresa e irritação. Se ela o atrapalhasse, ele nem sabia o que seria capaz de fazer, queria confiar, mas como ela se recusava a contar o plano, era bem difícil.
— A si mesmo, é a resposta certa. Eu sei que você gosta de acreditar que se encantou pela minha irmã, e está genuinamente apaixonado pela Cissy, mas… pare de mentir, Roldie querido, não precisa mais fazer isso! Nós duas já percebemos que tudo o que você quer é uma substituta para mim, alguém que te lembre de mim, mas sem meus defeitos, e creio que minha irmã está farta de ser a segunda escolha de alguém, como ela não tão educadamente gritou pelos últimos e torturantes quarenta minutos. — Narcissa revirou os olhos e fitou o chão, começando a parecer irritada com os comentários da irmã. — Além do que, quem acreditaria nisso? Alguém escolhendo ela em vez de mim? Claro, isso é explicado pelo fato de que você pensou que eu não era mais uma possibilidade, mas… — ela sorriu, de um jeito que ele não a via sorrir em sua direção há anos, e sua voz na última palavra saiu sedutora demais para os padrões dele. Ela estava armando algo, e ele não estava gostando. — Eu estou livre… se lembra? Entendo como deve ser difícil, depois de tantos anos, passar por cima do orgulho, mas não é melhor do que ficar com um prêmio de consolação que nunca será igual a mim? Somos irmãs, mas tão opostas como alguém pode ser… e, bem… você a conhece. Lua e Sol, como todos gostavam de nos comparar no passado. E quem experimentou o Sol, meu caro, jamais ficará satisfeito com a Lua.
Quando Bellatrix começou a se aproximar, lentamente e com aquele mesmo sorriso, parecendo se alimentar dos olhos desesperados dele e dos horrorizados de Narcissa, ele teve a certeza de que ia se arrepender muito antes do que esperava. Os métodos dela jamais seriam ortodoxos, mas ele não esperava por aquele absurdo. Ele nem de longe entendia o que ela estava fazendo, pois Narcissa parecia muito mais quebrada por dentro do que irritada, ou enciumada, ou qualquer coisa do tipo. Era de se esperar algo diferente de alguém que estava sendo humilhada pela irmã?
— Pode admitir, só entre nós… — os dedos dela se agarraram a sua lapela, e ele esqueceu a capacidade de falar, não por estar seduzido, mas chocado. Narcissa, claramente, escolhera a primeira opção. — Sou eu quem você deseja, ainda deseja. E se eu quiser voltar pra nossa casa, Rodolphus? Construir a vida com a qual você sonhou… — a mão livre de Bellatrix agarrou-se a sua nuca, e ele concluiu que ela era completamente louca. Narcissa deixou-se cair no sofá, enquanto os observava petrificada. Bellatrix olhou por cima do ombro, e sorriu para a irmã, que parecia que a qualquer momento saltaria para esganá-la por aquela humilhação. — Deixe-a pra trás, junto a seu orgulho, e pegue aquilo que você quer de verdade… o que eu estou te oferecendo de livre e espontânea vontade. Afinal, nós costumávamos nos divertir tanto. Prometo te recompensar pelas décadas de humilhação e sofrimento… e, como você bem sabe, não tenho planos de voltar para ele. Só eu e você e um futuro aberto… — os dedos em sua lapela começaram a descer por suas vestes lentamente, e ele queria simplesmente esganar aquela mulher, por mais que quisesse confiar. Ele podia ver os olhos de Narcissa enchendo-se de lágrimas, e queria mais do que nada ir confortá-la, mas Bellatrix parecia ter um plano e confiar nela parecia sua única, e absolutamente louca, opção.
— Bellatrix. Eu e você… qualquer chance de uma vida juntos ficou enterrada no passado, você sabe disso!
— Sei? — ela sorriu mais, e prensou o corpo junto ao dele, enquanto sua mão se mantinha perigosamente baixa entre os corpos, e Narcissa os observava em completo horror. — Porque me parece que você está tentando se convencer disso, ou já teria saído daqui. Sentiu falta do meu toque, não é?
Naquele momento, os olhos de Narcissa se arregalaram, como se algo tivesse ficado extremamente claro para ela: ele estava falando, mas não agindo. Claro, ela não sabia que ele tentava confiar no plano insano de Bellatrix, então o que parecia era exatamente o que aquela maluca dissera.
Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, no entanto, ele foi simplesmente jogado no sofá ao lado de Narcissa e sentiu o peso de Bellatrix que, sem cerimonia alguma, subira em seu colo, observada por uma extremamente traumatizada Narcissa. As mãos de Bellatrix o seguraram no sofá e, para sua completa surpresa, os lábios dela se pressionaram fortemente contra os seus. Ele ouviu o barulho de quando o ar saiu completamente dos pulmões da loira a seu lado, num suspiro pesado e doloroso, e lutou contra todas as dúvidas em sua cabeça, e qualquer confiança que pudesse ter em Bellatrix. Ele queria sua ajuda, mas jamais ao custo do sofrimento de Narcissa, onde é que ela estava com a cabeça? Suas mãos seguraram a cintura da mulher acima de si com mais força do que ele esperava e, um segundo depois, ele conseguiu se separar dela, jogando-a para o lado no sofá, entre ele e Narcissa, que havia começado a chorar silenciosamente.
— Você enlouqueceu de vez? Eu pedi sua ajuda porque eu quero tirar sua irmã do sofrimento, porque me apaixonei por ela, porque me importo, e você decide machucá-la ainda mais? — ele explodiu, levantando-se do sofá, e Bellatrix começara a rir descontroladamente. — Não tem graça, Bellatrix! Você disse que eu devia confiar em você, e que você ditaria as regras, mas eu não vou fazer nada às custas do sofrimento dela!
— Nenhuma reação. — foi a resposta que ela deu, com um sorriso de canto, olhando para Narcissa. — Corporal, eu digo. Ele congelou. Não me beijou de volta, não tentou me segurar com mais força, ou deixar o corpo mais próximo do meu. Muito pelo contrário, ele era um boneco de cera, alguém que claramente tentava entender o plano de uma maluca, não um homem que deseja a mulher que está literalmente se esfregando nele. Melhor ainda, nenhuma reação da cintura pra baixo, e se eu bem me lembro, ele é bem capaz, não precisa se preocupar com nada disso. É só que, antigamente, só um olhar era suficiente, e eu provoquei, bastante, e fiz questão de sentar de um jeito bem desnecessário. Mas… zero. Ele estava horrorizado. Estou quase ofendida. — Bellatrix deu de ombros, e se levantou. — Resumindo? Ele não está mentindo, não quer nada mais comigo, porque se nem o desejo físico ficou, o amor foi embora há muito tempo. Não tem com o que se preocupar. — ela voltou o olhar para Rodolphus. — Agora, se me dão licença, tenho outras coisas para resolver. — ela parou ao lado do ex-marido, e fingiu uma expressão de tristeza. — Nenhuma reação? — ela sussurrou. — Pra sempre ofendida. — ele revirou os olhos, e deu de ombros.
— Você vai superar.
— Eu sei… agora faça ela superar. E me agradeça por eu ter desistido do plano de fazer isso com menos roupas… podia ter dado bem errado. — ela piscou, e ele deixou-se rir. — Boa sorte, para os dois. Parece que terão muito o que conversar.
Rodolphus assentiu, e se aproximou lentamente de Narcissa, até sentar-se ao lado dela. A loira fitava os próprios sapatos, ainda processando tudo o que acontecera, mas não se afastou quando ele segurou suas mãos. Àquele ponto, Bellatrix já havia sumido pela porta, sem olhar para trás, e ele fez uma nota mental de enviar uma garrafa de um bom absinto para a Mansão Slytherin, para compor um agradecimento junto a metade de seus bens. Ele quase riu ao pensar naquilo, mas conseguiu se conter, não era a hora.
— Eu… eu não imaginei que ia doer tanto. — foi ela quem falou, ainda sem encará-lo. — Ver meus medos se tornarem realidade, principalmente quando você não reagiu. — os dedos dela apertaram os dele por uma fração de segundo, e Rodolphus deixou-se sorrir. — Eu queria estar certa... até estar.
— Porque a alternativa é assustadora demais… — ele suspirou, e aproximou-se mais dela, que o deixou puxá-la em um abraço. — Porque a vida te traiu e te convenceu que você deve esperar o pior, e eu ser um espelho do passado de Lucius não ajuda.
— Ele teria rasgado as roupas dela, no seu lugar. — ela comentou, amarga. — Minha irmã não teria tido nem o tempo de pensar em se afastar.
— Eu sei… — Rodolphus beijou a testa de Narcissa, que inconsciente deixou-se aninhar nos braços dele. — Mas eu já disse, e vou repetir, não sou o Lucius. É você quem eu quero. E eu não ligo pra essa palhaçada de Sol e Lua. — Narcissa riu um pouco, e se afastou para olhá-lo nos olhos. — Eu me encantei por quem você é, fim da história.
— Não deixa de ser esquisito. — ela confessou, mas deu de ombros. — Essa nova chance, assim tão abrupta, tão rápida… E eu nem decidi ainda o que fazer com Lucius. — ela cobriu o rosto com as mãos. — Será que é possível, Rodolphus? Eu esquecer tudo isso e ser feliz mais uma vez? Será que um dia vou conseguir calar todas as incertezas?
— Talvez sim, talvez não… mas você não vai saber, a não ser que me deixe, que nos deixe tentar. — sua mão tocou o rosto dela, delicadamente, e ele sentiu um peso deixar seus ombros ao vê-la sorrir. — E deixemos Bellatrix no passado…
Rodolphus se afastou e ela franziu o cenho, confusa pela abrupta separação, até que ele lhe entregou um papel.
— Isso é...?
— Aquela teimosa decidiu manter o nome e metade dos meus bens, mas sim… não é mais minha esposa. Ela mexeu uns pauzinhos e conseguiu em tempo recorde a papelada, benefícios de ser regente. — ele sorriu. — Essa é minha cópia, e meu compromisso com você de que meu passado lá ficará. Sua irmã e eu somos bons amigos e, com sorte, seremos cunhados, mas nada além disso. Tenho carinho por ela, sim, mas quase como um irmão, hoje em dia, e zero desejo como você pôde presenciar. Ela matou isso em mim há anos, Cissy. Eu quero você, e somente você, e só vou poder te mostrar isso se você deixar.
Narcissa sorriu e observou o documento em suas mãos, e refletiu sobre a própria vida, sobre como Lucius a matara aos poucos, e como ela precisava desesperadamente de ar, de vida, de ser quem ela costumava ser longe dele, antes de seu mundo ser destruído. Ou, melhor ainda, de ser quem ela podia ser em todo o seu potencial, sem pensar em quem queriam que ela fosse. Uma parte de si discutia que, talvez, ela se tornasse quem Rodolphus queria, mas ela sentia algo diferente, uma nova força, presente de todo o sofrimento que lhe convencia do contrário.
O documento foi dobrado, e ela o devolveu delicadamente ao bolso interno do casaco de Rodolphus, aproveitando-se da proximidade para dar-lhe a resposta que ele tanto esperava. Os lábios de Narcissa roçaram-se levemente nos dele, que curvaram-se em um sorriso, antes de ela se inclinar mais e finalmente pressionar os lábios junto aos dele. Rodolphus deixou as mãos caírem para a cintura da loira, que sorriu e deixou-o aprofundar o beijo.
Narcissa tocou o rosto dele, por um momento, e agarrou-se às vestes dele com sua mão livre, trazendo-o para o mais perto possível na posição estranha em que estavam no sofá. O beijo tinha gosto de uísque de fogo, ela decidiu não perguntar a razão, e um toque de absinto que devia fazê-la se irritar, mas a fez sorrir. De um jeito ou de outro, tinha que admitir que a irmã tinha feito um bom trabalho.
— Precisamos… — ela começou, um pouco sem ar, quando partiu o beijo. — De fato conversar… temos Lucius, e Draco, e todos os outros, e precisamos ver como faremos em relação a isso e -- Rodolphus a cortou, beijando-a novamente. Ela não precisou de mais nada para entender o recado: ele sabia, eles conversariam, mas eles tinham coisas mais importantes naquele momento para fazer. E, se ela fosse considerar a rapidez com a qual ela se encontrou no colo dele, aproveitando seus beijos e carícias sem pensar nas implicações, podia apenas dizer que concordava com ele. Eles teriam tempo, muito tempo para discutir os problemas, mas mereciam um tempo apenas para aproveitar.
Bellatrix deixara sua cópia dos papéis do divórcio em cima de sua antiga penteadeira e, após um dia de reuniões com súditos e com o Ministério - ajustando os últimos detalhes da Reforma - ela voltou para o quarto e encontrou Voldemort sentado em sua poltrona, lendo-os. Os livros que ele outrora estudara estavam abandonados do outro lado do quarto. A bruxa o observou por diversos segundos, quieta, até que ele se virou para ela.
— Pretendia me contar sobre isso? — ele perguntou, deixando os documentos sobre a penteadeira e se levantando. - Até onde eu sei, eu deveria ser informado.
— Até onde eu sei, me fez regente por uma razão. — ela devolveu, fechando a porta atrás de si. — E não me pareceu algo que te incomodaria, majestade.
— Não me incomoda, de fato. — ele a observou, enquanto se sentava na cama e chutava para longe os sapatos, parecendo cansada. — Apenas não achei que faria sem me contar…
— Eu nunca pretendi dizer não a ele, — esclareceu. — Imaginei que tivesse visto em minha mente.
— Isso é um consentimento? — ele provocou, e Bellatrix revirou os olhos.
— Como se fosse fazer diferença… é mais forte do que você. — ela deixou-se sorrir. — E eu não sou forte o suficiente para resistir. De um jeito ou de outro, estou acostumada. Curioso para saber como resolvi as coisas entre Narcissa e Rodolphus?
— Então ele te convenceu?
— Completamente. Aquele ali está bem encrencado, se eu for analisar o tamanho da paixão dele pela Cissy. Todos nós sabemos o que amores arrebatadores fazem conosco. — ela mordeu o lábio, e ele sentou-se ao seu lado.
— Convencida nesse nível?
— Como se não tivesse já visto o que eu fiz… — ela arqueou a sobrancelha, e Voldemort lambeu os lábios.
— Estava me contendo, mas já que estamos falando nisso... — os frios dedos dele tocaram o queixo da bruxa, fazendo-a olhá-lo nos olhos. Não que ele precisasse daquilo, ou que ela estivesse convencida de que ele não estava olhando antes, mas ela seguiu com o jogo mesmo assim. — Vamos aos detalhes sórdidos…
— Narcissa ficará traumatizada para sempre, posso garantir. — o toque dele era confortável, agradável, a lembrava de tempos mais fáceis.
— Ah, mas eu acredito… — ele deixou de tocá-la, e Bellatrix teve que segurar um som de reprovação que insistia em querer deixar seus lábios. — Apesar de que, devo admitir, até eu estou impressionado com Rodolphus… Nenhuma reação, mesmo?
— Zero. — Bellatrix riu-se. — Ainda levemente ofendida, se for ser honesta, mas o homem foi um bloco de gelo, o tempo todo. Ele estava apavorado por ela, e me convenceu.
— Também me convenceu, dadas as circunstâncias… — Voldemort comentou, deixando as mãos caírem sobre o próprio colo, claramente tentando reprimir o começo de um insistente e discreto sorriso.
Bellatrix, pelo contrário, deixou-se sorrir, entendendo o que a expressão dele queria dizer; evidentemente, Voldemort estava se segurando para não fazer algum comentário exagerado e completamente inapropriado sobre como ele teria se portado ou não na mesma situação em que Rodolphus estivera naquela manhã. Ela o agradeceria por ter iniciado o sorriso, que se desenvolvera em uma discreta risada, se não quisesse tanto estapeia-lo pelo mesmo comentário nunca feito.
— Vamos precisar concordar que não é a mesma coisa… - ela comentou, mesmo contra suas próprias reservas. - Vocês dois, eu digo. Não é um teste se não há dúvidas. - Bellatrix não pôde conter o sorriso que deixou os próprios lábios, que ia ainda mais contra seu bom julgamento do que a resposta que nunca deveria ter sido dada.
Voldemort virou o rosto lentamente, os olhos curiosos, apesar da expressão dura que escolhera usar. No passado, ela se vangloriara internamente por ser uma das poucas pessoas capazes de lê-lo, por mais que negasse veementemente que alguém era capaz de tal e que, na maioria das vezes, tal capacidade fosse muito mais uma ilusão sua do que a realidade, pois o Voldemort de anos antes, com suas expressões vazias e poucas palavras, era uma incógnita muito maior do que ela poderia esperar decifrar - ou, pelo menos, fora o que ela aprendera da pior maneira. Aquele Voldemort à sua frente, contudo, era muito similar ao de suas fantasias, ao homem que a trouxera para perto e a tomara como confidente, ignorando qualquer noção de servidão e hierarquia, fazendo-a sentir-se como… Como se tivessem uma parceria.
— Não vou dignificar esse comentário com uma resposta, minha cara, para o seu próprio bem. — ele respondeu, levantando-se da cama para recolher os livros que espalhara pela enorme suíte. — Em nome da já tão precária preservação dos limites de nosso relacionamento atual, aos quais você é tão apegada. — a sinceridade dele era mais cortante do que ela gostaria de admitir. Eles estavam sim se aventurando muito além dos limiares acordados, e aquilo era mais perigoso do que deveria ser confortável. Por Merlin, eles estavam dividindo uma cama! Qualquer adjetivo que ela usasse para representar o quão fora de controle eles já estavam seria uma enorme atenuação. — De qualquer forma, sinto dizer que seus deveres por hoje estão longe de terminados, vossa graça.
Bellatrix franziu o cenho, sem tentar esconder a própria confusão. Depois daquele longo dia, ela não imaginava ter mais nenhum compromisso oficial. Se fosse honesta, diria que esperava nem mesmo sair daquele quarto até o outro dia. Voldemort claramente tinha outros planos.
— Perdão, milorde? Não me lembro de ter outros compromissos em minha agenda de hoje. — ela respondeu, enquanto tirava distraidamente as jóias. Tiaras eram muito mais pesadas do que pareciam, como ela vinha aprendendo. Não que isso prejudicasse o entusiasmo causado por usá-las, muito pelo contrário: o peso era uma lembrança de tudo o que eles passaram para que aquela joia pudesse repousar oficialmente em suas cabeças.
— Agenda oficial… — Voldemort esclareceu, voltando-se para ela. — Seu próximo compromisso é um pouco menos sancionado, por assim dizer. — os olhos vermelhos pausaram no antebraço esquerdo dela. — Creio que o círculo íntimo adoraria saber dos progressos que fizemos hoje, majestade.
Bellatrix sentiu a respiração pausar por um momento, quando o entendimento das palavras dele a atingiu como um soco no estômago. A não ser que tivesse interpretado incorretamente, ela devia convocar os Comensais da Morte e conduzir a reunião. Voldemort, em teoria, deveria estar na Albânia e ela não acreditava que ele revelaria este segredo a ninguém, nem mesmo ao círculo íntimo. A questão era: revelar aos Comensais que ele entregara o poder a ela por basicamente uma aposta seria mostrar a eles um lado aberto de Voldemort, lado este que o Lorde das Trevas não estava exatamente confortável em compartilhar com seus seguidores.
— Quer que eu seja a pessoa a contar aos Comensais? — Bellatrix perguntou, ainda absorvida pelo choque. — Desculpe-me, é só que… Imaginava que com algo deste nível, preferiria contar em pessoa.
— E arriscar que eles ouçam por meio dos idiotas do Ministério, ou pelos colegas que estavam lá? — Voldemort respondeu, com a voz sem alteração. — Não, obrigado. Prefiro que saibam por você, que nesta semana é uma extensão de mim. Imaginei que sentiria-se honrada em conduzir uma reunião sem mim?
— E me sinto… — Bellatrix respondeu, fitando o próprio colo, as jóias em suas mãos quase caindo por entre os dedos. — Só não esperava que seria tão cedo e para algo tão importante. — suas palavras eram sinceras, pois jamais poderia ter esperado algo assim. Não vindo dele, não tão cedo. No fundo, ela sabia que aquilo não era nada além de uma nova tática para seduzi-la, como aquela semana toda, mas ela estaria mentindo se dissesse que ele estava falhando completamente.
— Minha cara, assim me ofende… — Voldemort provocou, voltando seu foco para os livros. — Todas as reuniões são importantes.
Bellatrix deixou-se rir, a provocação dele trazendo a leveza de volta à conversa, que insistia em tentar se aprofundar. Eles não podiam deixar aquela superfície confortável em que se encontravam, e em que aquela nova amizade florescia, uma vez que qualquer profundidade acordava sentimentos que eles precisavam apagar. Oh, mas como era difícil manter-se fora daquelas águas, quando suas próprias mentes os enganavam e os colocavam naquele caminho perigoso o tempo todo. Ela levantou-se e colocou as jóias na penteadeira, dirigindo-se então ao banheiro. — Como quiser, majestade, mas eu realmente preciso de um banho antes. - Ele assentiu, e ela respirou aliviada: eles estavam seguros, por enquanto.
Melinda havia convenientemente ignorado a queimação na Marca Negra, quando ela ocorrera, sabendo que deveria estar na Albânia e, portanto, não era exatamente convidada. O problema, ela percebera, era que Draco não partilhava de sua sorte. Sorte porque eles estavam envolvidos no lençóis de cetim, aproveitando o enorme sono que Pandora desenvolvera naqueles dias. Quando seus braços arderam, o namorado soltou um audível gemido de reprovação, deixando a cabeça cair no travesseiro, claramente irritado.
— Sou obrigado? — foi só o que ele perguntou, e Melinda deu de ombros, dando risada. — Na sua próxima “viagem”, me leve junto por favor.
Melinda gargalhou, cobrindo-se com o lençol, e assentiu. Ele não estava errado na noção de que se ele estivesse incluído as coisas seriam mais fáceis, mas não havia nada a ser feito, a não ser ele se trocar e se dirigir à sala. — Depois me conta como foi, — ela sorriu, e ele a beijou rapidamente, antes de procurar suas roupas pelo quarto.
A Princesa, então, foi deixada completamente sozinha pela primeira vez desde que aquilo tudo começara. Pandora dormindo, Draco trabalhando… sua própria companhia era tudo o que tinha, a não ser que procurasse seu pai, mas… ela tinha outras coisas em mente.
Em segundos, ela já estava vestida e com o cabelo preso no topo da cabeça. Em suas mãos, repousava o livro que seu pai lhe dera em seu aniversário de dezessete anos, e todas as páginas cheias de conteúdo que ele lhe oferecera. Elas, contudo, não eram as que mais a intrigavam: aquele enorme capítulo em branco, travado de todas as maneiras conhecidas por mágica, sempre tomava sua atenção. Era um teste, ela sabia.
Voldemort era inteligente, mais do que o normal, e havia deixado aquela sessão em branco de propósito. Oculta, para que ela abrisse. Melinda jamais perguntaria ao pai o como, pois sabia que devia descobri-lo, a questão era se devia. Uma parte de si dizia que sua função com o livro era descobrir o segredo, mas não era do feitio de seu pai. Era mais provável que ele havia deixado o capítulo em branco para que se abrisse somente depois que ela dominasse o restante do conteúdo, torturando-a em sua pressa adolescente. Ela precisava se focar.
A varinha em suas mãos parecia tremer sozinha, quando a Princesa deixou o capítulo em branco para trás e transferiu sua atenção para os complicados feitiços a sua frente. Três meses sem praticar quase enlouqueceram Melinda, mas sua volta às Artes das Trevas a enchia de encanto e animação. Escondida de todos, ela podia ser quem sempre fora. Imaginava se o pai compartilhava o sentimento, e havia baseado também nisso sua incrível ideia de tirá-los dos holofotes por alguns dias. Melinda em sua inteligencia, no entanto, sabia bem que a decisão fora muito mais baseada em seduzir Bellatrix do que outra coisa, mas ela não reclamava.
Melinda podia sentir o poder fluir de suas veias para a varinha, quando suas criações começaram a aparecer pelo quarto, figuras de fogo que podiam ferir e queimar apenas aquilo que ela quisesse, totalmente controladas por seu pensamento, passando sem estragos por seus lençóis e destruindo o pedaço de madeira que ela conjurara anteriormente para treinar.
Se outra pessoa estivesse ali presente, iria jurar que pequenas faíscas vermelhas permaneceram nos olhos da Princesa por vários segundos depois que o reflexo das chamas neles se dissipara, sumindo apenas muito depois, quando as cinzas no chão já estavam frias ao toque.
O próximo alvo de seu treino fora o vestido pendurado próximo à janela: rosa claro, esvoaçante, a exemplificação da Princesa Melinda que ela mostrava ao público, mas que passava longe daquela bruxa das trevas, com magia correndo por seus nervos e veias. Não que ela odiasse a atenção, as reverências, os presentes, muito pelo contrário, seu ego agradecia. A questão era: as duas Melindas ainda não podiam coexistir, então destruir o vestido era quase poético.
As chamas voltaram a se formar, cada vez mais próximas de uma forma corpórea, e Melinda concentrou-se para manter a varinha parada, apenas apontada, para controlar o fogo com a mão livre. Uma varinha, afinal de contas, nada mais é do que a extensão das mãos de um bruxo, um facilitador para direcionar a magia. Sua função como Princesa das Trevas, contudo, era dominar a própria magia, sem ser dominada pelo próprio poder.
As chamas resistiram, como ela imaginara desde o começo, lutando por controle por um longo tempo, até que Melinda finalmente conseguiu domá-las e movê-las, ainda que lentamente, somente com a mão e a mente. Um dia, quem sabe, com muito treino, ela conseguisse conjurar as chamas sem varinha, como seu pai, mas por um dia estava suficiente. Ela sorriu ao ver o vestido usado queimar, ainda que tudo a seu redor estivesse seguro.
Mentalmente exausta, ela fechou aquele livro em específico. Ela claramente precisava de muito mais prática, e aqueles três meses caóticos não haviam ajudado muito. Todos os dias, ela prometera naquele mesmo segundo, praticaria um pouco. Nem só de jóias e tiaras ela podia viver e, logo, a princesa Melinda precisaria da bruxa das trevas. A paz podia ser incrível, mas quanto tempo duraria? Quem seria o primeiro tolo a infringir as regras do acordo? Potter suportaria? Uma década, duas, menos, até a próxima guerra? De um jeito ou de outro, ela estaria pronta.
Caso Narcissa soubesse que compartilhara de um descontentamento similar ao do filho, quando a Marca Negra ardeu, ela teria feito uma careta. Sua situação, contudo, era muito mais contida do que a de Draco e Melinda. Ela e Rodolphus ainda se encontravam na sala, evitando discutir as implicações do que estavam fazendo, absortos nos próprios sentimentos e carícias demais para se importarem com o casamento dela, que logo terminaria, ou com a aceitação de Draco, ou as provações intermináveis de Rabastan. Estavam felizes demais sendo compreensivelmente inconsequentes, e a interrupção de Voldemort - ou, no caso, Bellatrix - era quase insuportável.
— Pelo jeito o Lorde das Trevas está punindo a todos nós por sua própria infelicidade. — Rodolphus comentou, sem pensar, deixando a cabeça escondida no pescoço de Narcissa, que riu apesar da vontade de repreendê-lo pelo comentário perigoso.
— O Lorde está na Albânia, isso foi minha adorada irmã, provavelmente. — Narcissa rolou os olhos, tirando Rodolphus de cima de seu corpo. — Então, ela está descontando a infelicidade que ela causou a si mesma em todos nós.
Rodolphus gargalhou, ajustando as próprias roupas para parecer apresentável, mas não podia deixar de concordar. Àquela hora de noite, muitos encontros haviam sido interrompidos por Sua Majestade temporária, sua querida ex-exposa, que podia ser muito feliz e reinar sobre todos eles, caso ela e Voldemort não fossem impossivelmente teimosos.
— Como faremos? — ele perguntou, com cuidado. — Eu vou primeiro, e você aparece mais tarde?
— Sim, pelo menos até eu contar pro Draco e explicar e…
— Se livrar de Lucius… digo, resolver a questão dele.
— Exato… não quero entrar nesse tipo de discussão com meu filho, ou ouvir que sou tola e apressada, não agora. — ela sorriu, e deixou-se ser beijada por Rodolphus uma última vez, antes que ele a assegurasse de que entendia, de que tudo ficaria bem, e saísse pela porta.
Narcissa tomou aquele momento para refletir sobre tudo aquilo, apesar de ter passado as horas anteriores evitando fazer exatamente isso. Apesar do que havia imaginado, quanto mais ela pensava, mais se convencia de que estava certa e que Rodolphus fora a melhor coisa que acontecera em sua vida recente. Mentiras não faziam parte daquele começo, ambos estavam perfeitamente na mesma página, e todos os contras envolviam a opinião de terceiros.
Em sua experiência com se importar com a opinião alheia, Narcissa havia apenas se prejudicado e, por isso, por mais que tentasse profundamente levar aquele tipo de implicação social em consideração, ela não conseguia se importar de fato com ninguém que não fosse Draco e tinha certeza que o filho, com a devida explicação e todos os fatos, não teria problema algum. Um sorriso tomou conta dela, e seu coração deixou-se encher de alegria. O resto do mundo podia se explodir, que Narcissa assistiria sem piscar. Ela estava cansada de viver pelas regras alheias, era a hora de fazer as suas próprias.
Opulente. Aquele era o adjetivo que os Comensais da Morte viriam a utilizar para descrever aquela reunião. Bellatrix, do topo de sua satisfação em poder reinar sobre eles por um curto período de tempo, decidira fazer a reunião na Sala do Trono. A mesa fora montada em frente do trono, ficando um nível abaixo de onde a Regente estaria ao chegar. Era proposital, e nenhum deles podia culpá-la por tirar proveito da situação. Voldemort dera o poder que ela sempre desejara sobre aqueles que a apedrejaram por décadas, e toda a liberdade para usá-lo, qualquer um teria aproveitado. Alguns cochichavam sobre como ela seria insuportável quando de fato se tornasse rainha, mas todos sabiam que aquilo não era verdade. Com o tempo, a intoxicação dela com o poder cederia, como havia em seus tempos de Lady das Trevas, para dar lugar ao realismo.
No momento, eles teriam que suportar sua felicidade e exagero, com a ajuda de todo o álcool que ela graciosamente os oferecia em meio à espera. A verdade incômoda era que eles haviam sentido falta de tê-la no poder, de poder criticá-la até. A mulher mais odiada daquele círculo tornara-se uma heroína da causa, e dificultara a vida deles ao melhorá-la. Como podiam odiar a mulher que os salvara? E como podiam amar alguém que haviam odiado por décadas por ser completamente intragável? O álcool ajudava, mas não calava as perguntas. Isso porque todos eles estavam ignorando a reunião de uma semana antes, e todas aquelas revelações complicadas sobre a situação de Lucius Malfoy, pois tudo o que não precisavam em sua luta interna era humanizar Bellatrix Lestrange.
Quando ela passou pela porta, após o consumo geral de algumas garrafas de bebida e seguindo um belo anúncio de um daqueles novos servos, mesmo os mais céticos tiveram a certeza de que Bellatrix nascera para reinar e fizeram as reverências protocolares sem ao menos se incomodar. Aqueles que estiveram no Ministério, poucas horas antes, já tinham presenciado a transformação dela na Rainha não oficial deles, mas mesmo eles viam diferença naquela versão dela, escondida dos olhos do Ministério, tantas características remanescentes da Lady das Trevas. A diferença era que no parlamento eles viram uma rainha, ali eles viam a rainha de Voldemort, eram testemunhas daquilo que o Lorde percebera meses antes e pelo que vinha lutando.
Do topo de saltos ridiculamente altos, circundados por serpentes de prata cravejadas de brilhantes, ela praticamente não precisava da diferença de altura promovida pela elevação do trono para parecer superior a todos eles. Os sapatos negros de cetim davam lugar a um macacão ajustado da mesma cor, que lembrava um corpete e deixava seus ombros livres para que somente a gargantilha de diamantes brilhasse. Os cabelos dela estavam presos, intensificando o efeito, e adornados com uma tiara de diamantes, deslumbrante o suficiente para nem de longe ser apropriada para alguém fora da Família Real, mas pelo menos naquela noite ela era a própria Coroa. Quando ela caminhava, a cauda de renda bordada presa à parte de trás de sua calça esvoaçava, lembrando um vestido, fazendo com que ela mesmo de costas parecesse impressionante.
“Como se ela precisasse de tudo isso para ser deslumbrante…”, alguém teve a coragem de pensar, mesmo sabendo que ela se vestira com a intenção de parecer uma Rainha, de deixá-los embasbacados. Alguns deles, contudo, notaram que somente uma de suas jóias não conversava com as outras, um ponto esmeralda em meio aos diamantes: o anel no dedo anelar, que eles conheciam tão bem. Alguns não conseguiram conter um sorriso curioso ao ver que ela continuava a usá-lo.
— Boa noite. — ela cumprimentou, parada em frente ao trono, enquanto todos se dirigiam a suas respectivas cadeiras. — Alguns de vocês devem imaginar porque estamos aqui, enquanto outros estão apenas contentes que parecemos ter motivos para comemorar. — uma bandeja flutuou até perto dela, com uma dose de absinto com gelo, que ela estendeu na direção dos Comensais. — E, de fato, temos muitas razões para tal. Hoje, começarei a reunião de forma diferente, com um brinde. Um brinde a tudo o que conquistamos, apesar de todos os esforços de Kingsley e sua escória para nos barrarem, e ao Lorde das Trevas, que se encontra na Albânia, mas tudo o que conseguimos foi para ele e através dele. Saúde.
Os Comensais repetiram o gesto e beberam de seus próprios copos, e Bellatrix sentou-se para que eles pudessem fazer o mesmo. Ela poderia torturá-los mais com a questão do protocolo, mas aquela não era a noite. — Não se afogue em falsa modéstia, no entanto, vossa graça, eu estava presente hoje quando você absolutamente encantou aqueles velhos tolos e conseguiu aprovar as coisas como bem queria. O Lorde das Trevas foi extremamente sábio de enviá-la, madame, pois nunca os vi em tamanha boa vontade. — Anthony Dolohov comentou, e Bellatrix resistiu à vontade de rolar os olhos.
— Ele sempre sabe o que está fazendo, Anthony meu caro… Somos nós que, às vezes, somos levemente obtusos e não compreendemos as táticas dele. — ela sorriu, e bebeu mais do absinto, podendo imaginar o sangue de Dolohov ferver. — Quanto ao caso de hoje, eu somente colhi assinaturas, mas se o Lorde das Trevas entendeu que seria melhor me enviar, foi porque percebeu que é compreensível que um novo rosto, após um longo período de negociação, traga uma nova leveza e facilitação em meio a essa brecha…
— Especialmente quando se trata de um belo rosto, muito além daquilo com o que aqueles idiotas estão acostumados. - Dolohov continuou, muito para o desgosto de Bellatrix, que apertou o copo em suas mãos. — E todos nós sabemos que o Lorde das Trevas está, hm, ciente deste detalhe mais do que todos nós juntos. Sim, extremamente sábio da parte dele, sem dúvidas, perceber que alguém como vossa graça seria a ruína daqueles velhos tolos, uma vez que...
— Eu não terminaria essa frase, se fosse você, Anthony. - Rodolphus o interrompeu, e tirou o uísque de fogo das mãos do colega. — Vossa Graça perdoará nosso caro Dolohov por sua língua solta, ele tomou mais destes do que devia… — ele disse na direção de Bellatrix, que os olhava séria.
— Termine-a, Dolohov, fique à vontade, mesmo porque todos nós sabemos bem o que vai dizer. — Bellatrix respondeu, vendo o horror tomar conta do rosto de Rodolphus. — Aliás, é uma ordem. Termine-a. Use toda a coragem que teve para insinuá-la, e termine-a como um homem.
O rosto de Anthony Dolohov passou de vermelho da bebida para pálido e, segundos depois, para praticamente roxo de raiva. Bellatrix havia, claramente, acertado algum nervo exposto e ela não podia estar mais feliz. Por décadas, aqueles homens tentaram humilhá-la e rebaixá-la por seu gênero e, posteriormente, seu relacionamento com Voldemort, e aquilo terminava naquela noite. Ela era, ainda por alguns dias, a rainha deles e seria respeitada. O absinto tocou seus lábios, gelado, reconfortante, enquanto ela esperava a resposta que já conhecia, e ela sabia que aquela seria a última vez que ela ouviria aquele tipo de palhaçada.
— Uma vez que você foi a ruína do homem mais poderoso do mundo, que também é conhecido como ele mesmo. - Anthony respondeu, sarcástico. - Então aqueles idiotas… moleza. - Anthony pegou novamente o copo de uísque de fogo da mão de Rodolphus, uma ação da qual se arrependeria em poucos segundos.
O vidro mal havia deixado as mãos de Rodolphus e passado para as dele, quando rapidamente passou de gelado para fervente, fazendo com que Anthony o derrubasse na mesa, procurando desesperadamente por gelo próximo para tratar de seus dedos queimados, enquanto olhava assustado e irritado na direção do trono: irritado pela humilhação, assustado pelo fato de que ela não segurava a varinha. O resto dos Comensais da Morte fitava os próprios colos, com exceção de Alecto Carrow, que parecia se divertir, e Narcissa que encarava a irmã horrorizada.
— Eu repensaria suas opiniões, se fosse você, Anthony. — ela pousou o próprio copo na bandeja flutuante, e relaxou no trono. — Como posso ter sido a ruína de alguém que domina o mundo, hoje? De alguém que ajudei a dominar esse mesmo mundo? Cujos exércitos comando agora? É um insulto não só a mim, como ao Lorde das Trevas. Vocês todos parecem se esquecer de quem solucionou aquela maldita guerra, quem impediu, quase ao custo da própria vida, a morte de nosso líder e rei. Eu não assinei aquele maldito tratado por conforto, e nem muito menos o Lorde das Trevas concordou com isso por gostar...
— Ele concordou porque estava culpado. - Anthony retrucou. - Porque quase acabou com você, e daí percebeu que não podia viver sem seu rostinho bonito por perto, e viu tudo o que você tinha feito e não conseguiu fazer outra coisa que não fosse assinar e...
Bellatrix não se levantou em momento algum, mas sua varinha estava em suas mãos antes que Anthony pudesse terminar, e ele já estava no chão, se contorcendo, quando os outros se deram por si. Bellatrix não parecia se divertir, como usualmente fazia durante o uso da Cruciatus, ela estava furiosa, de forma como poucos haviam visto na vida.
— A vantagem de ser rainha regente, — ela mal se moveu no trono, — é que não preciso da autorização do Lorde para fazer isso. — um sorriso se formou nos lábios dela, mas sorriu rapidamente. — Eu juro que não entendo como o pensamento de vocês funciona, porque vamos lá: vocês criam teorias em suas próprias cabeças sobre como tudo o que o Lorde fez desde a batalha de Hogwarts foi por mim, ou para mim, e sobre como o único objetivo dele é me fazer rainha, o que vai completamente contra o propósito dessa reunião, aliás, mas chegaremos nisso mais tarde. E, mesmo assim, continuam não só a se negar a aceitar e perceber que, talvez, eu seja de fato mais competente e poderosa do que vocês imaginam, como a me provocar. A “futura rainha”, a “mulher que cegou o homem mais poderoso do mundo”... Se vocês realmente pensam isso, e tem tanta certeza que eu sentarei oficialmente nesse trono no futuro próximo, são somente burros ou realmente tem um desejo de morte? — ela moveu a varinha, e Anthony parou de se contorcer, tossindo e buscando ar desesperadamente. — Ou vocês simplesmente são orgulhosos demais para admitirem que estavam errados por décadas, que a razão pela qual o Lorde ouvia meus conselhos no passado ia muito além de meu “rostinho bonito”, ou do fato de que eu dividia a cama com ele. Porque a verdade é que eu salvei a pele de todos vocês, os mantive no poder, com títulos, terras, e dinheiro, quando teriam caído em Azkaban ou pior, se o Lorde tivesse morrido ao matar Harry Potter! Deve ser insuportável, não é mesmo? Ver-me vencer numa disputa que nunca deveria ter existido! É infantil, e inútil a esse ponto! Sim, eu sou uma mulher em meio a muitos homens, uma que se atreveu a ser mais competente do que vocês em diversas ocasiões e que chamou a atenção de seu mestre em mais de uma forma, não só pela competência, mas pelo sangue e, porque não, pela beleza? Há duas décadas o homem mais poderoso do mundo olhou para mim e entendeu que eu não só podia ser sua melhor tenente, como também a mulher quem ele dividiria seu legado, primeiramente através de Melinda e, depois, como sua consorte. Ele não fez isso simplesmente por eu ser bela, ou de boa família, mas porque ele entendeu que eu era poderosa o suficiente para isso. Olhem para Melinda e vocês saberão que não estou me gabando, mas a verdade é que já sabem disso… sempre souberam, e por pura implicância decidiram que iam de qualquer forma fazer com que me envergonhasse de quem sou, do que fui, e de todas as coisas que são o maior orgulho de minha vida, mas isso acaba hoje. O próximo de vocês que ainda acredita que eu pavimentei meu caminho até esse trono com sexo e beleza está convidado para vir aqui provar isso. - ela se levantou, e girou a varinha entre os dedos. - Algum de vocês ainda acredita que é capaz de me derrotar? E não temam o Lorde das Trevas, porque ele está na Albânia e é um desafio justo, não precisam me matar, apenas derrotar. Vamos, eu estou esperando! — a voz dela, pela primeira vez, se ergueu. — Eu tenho a noite toda! Podemos começar com você, Anthony! Que tal? Ou algum dos ainda sóbrios? — Bellatrix cruzou os braços, e lambeu os lábios, quase ansiando pelo primeiro que tomaria seu desafio.
Os Comensais da Morte, contudo, se limitaram a bebericar de suas bebidas, alguns tendo a decência de parecer envergonhados, enquanto outros pareciam ter apanhado com algo invisível. Rodolphus e Narcissa, no entanto, não conseguiam esconder o orgulho em seus rostos, apesar de Narcissa ainda estar irritada com a irmã; Rabastan sorria abertamente, e Alecto Carrow - como única mulher presente, além de Bellatrix, que havia entrado por si mesma na causa, trazendo o homem que a acompanhava, e não o contrário - encarava Bellatrix boquiaberta, como se finalmente tivesse entendido um grande mistério da vida. Gabrielle Ceresier e Draco Malfoy apenas a encaravam com sorrisos tímidos, orgulhosos e também arrebatados por algo que nunca haviam visto, por mais que sempre a tivessem admirado.
O silêncio, contudo, reinava. Ninguém respondera ao desafio, nem se atrevera a sugerir um colega para tomá-lo, e a única coisa que podia ser ouvida era a respiração pesada e furiosa da rainha regente, que ainda esperava que alguém ali tivesse o mínimo de peito de enfrentá-la.
— Em momentos como esse, — ela comentou — sinto falta daquele traidor. Snape teria me enfrentado, nem que fosse para perder. — Bellatrix deu risada, e sentou-se novamente no trono. — Mas ele sabia da verdade, não sabia? Que meu único pecado foi ser uma mulher que não se conformou em seu próprio papel na sociedade, que voou mais longe do que os homens que a cercavam, e que não se masculinizou ao fazê-lo. Fiz tudo o que fiz ainda sendo uma mulher, cometi inclusive a indiscrição de publicamente me apaixonar, e jamais me afoguei na falsa modéstia que era esperada de mim, não deixei homens menores do que eu me explicarem coisas que dominava desde a adolescência, ah não, o único homem pra quem baixei a cabeça foi aquele que de fato tinha algo ainda a me ensinar, que de fato era superior a mim e a todos nós. Deve ter doído, naquela época, para todos vocês, terem sido superados por uma menina, jovem, teoricamente despreparada, mas competente, cheia de paixão e de poder bruto, a única pupila dele, então vocês decidiram que só podiamos estar dormindo juntos. Imagino o quão felizes devem ter ficado quando de fato tornamos os desejos de vocês realidade, quando nossa relação evoluiu e vocês podiam falar… e é a mesma coisa hoje, não é? Vocês precisam criar motivos pessoais para tudo o que ele faz em relação a mim, para não terem que engolir a verdade: Eu não sou a maior nobre porque ele quer se casar comigo, não sou sua general na esperança de que eu volte a sua cama, não sou guardiã da França porque ele está perdidamente apaixonado por mim, meus caros, esses foram presentes, condecorações de guerra. Bem vindos à realidade: vocês querem que eu seja a próxima rainha, não só para se justificarem, para dizerem o quão certos estavam, mas porque sabem que precisam me odiar e a distância tem um pequeno problema chamado saudade. Estão tão acostumados a me terem aqui para me odiar que temem que a distância e o tempo os fariam perceber a verdade incômoda e, quem sabe, me admirar até… já aconteceu com alguns, não é mesmo? Eu consigo ver daqui. Eu entendo, também sou uma pessoa orgulhosa, mas lidem com isso como adultos em vez de ofender a mim, ao Lorde das Trevas, à nossa inteligência e, até mesmo, a seja lá o que for que nós sentimos ou não um pelo outro ainda hoje. Isso compete somente a nós dois, mas vocês acreditarem e sairem por ai gritando aos quatro ventos que isso está pesando na forma como sete países são governados é alta traição, devo lembrá-los. Vocês são mais inteligentes do que isso. Nenhum tem coragem de falar nada disso na cara dele, mas falaram na minha, e sabem que isso é a mesma coisa… então sugiro que mudem, ou terão problemas. Agora, se ninguém vai mesmo me enfrentar, façam-me o favor de se recomporem para que eu possa dividir com vocês a primeira grande vitória de um monarca que “está obcecado demais com a ex-mulher para governar”, uma que fui enviada para garantir a conclusão, não por ser linda, mas porque ele é um estrategista incrível, e me ensinou muito bem tudo o que sei no campo de batalha, mas eu fui criada na aristocracia e passei metade de minha vida lidando com velhos tolos como aqueles, então se tem alguém que saberia quebrá-los tão bem ou melhor do que o rei, esse alguém sou eu. E se tem uma coisa que os Black tinham em comum com todos vocês aqui era a ideia sobre o que uma mulher devia ser ou não, mas para azar deles, aprendi todas as outras lições, aquelas destinadas aos meus primos para que no futuro tivessem altos cargos no Ministério, melhor do que todos eles, e sou mais Black hoje do que meus pais e tios gostariam e meus primos jamais poderiam ser. E isso me serviu muito neste novo período de nossas vidas, meus caros, pois nossa função é entender como os almofadinhas do Ministério funcionam para acabar com eles, e hoje foi o primeiro grande passo: a reforma política passou, e o poder do ministério começa a se equilibrar. - Bellatrix estava séria, profissional, até, enquanto contava a todos sobre como o novo sistema funcionaria: a separação dos poderes, as duas casas, a eleição interna do Ministro da Magia, como eles esperavam que eles se degladiassem internamente, alheios àquilo que Voldemort fazia, sobre como o poder judiciário, representado pelo Wizengamot, não mais responderia ao Ministério em última instância, e teria instâncias inferiores criadas, cada uma com um propósito, para que pudesse ser um poder independente, sem muitas mudanças em sua formação por indicação do parlamento, ministério e mérito, mas com a diferença de que o líder seria escolhido por votação interna, sem interferência da monarquia e, principalmente, do Ministro da Magia. A única coisa que passara quase despercebida pelos membros do Ministério, mas não por Kingsley e, menos ainda, pelos Comensais da Morte, era o fato de que todos os poderes respondiam, em última instância, para a Coroa. Todos estavam tão preocupados com os detalhes das baixas instâncias, e sobre como se manteriam no poder, que deixaram de notar que assinavam um documento que os colocava abaixo do rei e, ainda que em teoria, da rainha.
— Muito interessante como o Wizengamot funcionará agora, — Avery comentou, quando ela terminou de contar, com um sorriso no rosto que fazia com que ela quisesse socá-lo mesmo antes de saber o que ele diria. — Uma pena realmente que as mudanças não estarão prontas ainda a tempo de nosso próximo julgamento, — os olhos dele foram de Bellatrix para Narcissa. — De qualquer forma, aguardamos ansiosos nosso último julgamento à moda antiga, antes de nos, hm, estruturarmos como uma forma de governo oficial.
Bellatrix suspirou, contendo a própria irritação, e limpou a garganta, antes de se dar ao trabalho de responder. O comentário deixava clara a necessidade que Avery tinha de provocar alguém e como, após o discurso que colocou todos em seus devidos lugares de uma vez por todas em relação a ela, Narcissa se tornara o próximo alvo. Ela era a representação de tudo o que eles odiavam, enquanto a irmã de tudo o que amavam, mas se tudo o que eles odiavam se tornaria motivo de admiração, o que seria daquilo que amavam? O que eles não entendiam era que ela e Voldemort viam uma verdade em Narcissa que poucos, além deles e recentemente Rodolphus, eram capazes de enxergar: ela podia ter se conformado por anos em ser o que era esperado, mas elas eram feitas do mesmo material, e ela tinha uma força não explorada que a qualquer momento explodiria. Bellatrix sabia que Narcissa nunca seria como ela, mas a dona de casa submissa e fútil ficara em algum lugar no passado, enterrada embaixo de uma das muitas decepções.
— Não se faça de besta, Avery, sabemos muito bem que vai sentir falta de nossos julgamentos à moda antiga tanto quanto o resto de nós, mas não se preocupe, este será um para ser lembrado… — Bellatrix respondeu, e fez um aceno de cabeça na direção da irmã.
— Vocês não fazem ideia. — Narcissa respondeu, sabendo que todos a subestimam, mas se a cena da irmã lhe mostrara algo era que o tempo de ser menor do que os outros havia acabado, ela era tão Black quanto Bellatrix e não deixaria que a rebaixassem só porque a irmã subira finalmente no pedestal que sempre estivera lá para ela. — A espera não será em vão. — um sorriso se formou nos lábios de Bellatrix e era como se, por alguns segundos, a tensão entre elas tivesse diminuído. Por debaixo da mesa, Rodolphus apertou sua mão, e Draco a fitava confuso, mas logo o filho também entenderia.
— Um brinde a isso, então. — Bellatrix pegou novamente o copo e o levantou. — Ao passado que não devemos nunca esquecer, às nossas tradições e crenças, mas também ao incrível futuro que nos espera! — ao beber, ela não pode deixar de sentir uma ponta de orgulho da irmã, que bebia firmemente, e também de si mesma, por finalmente dizer tudo aquilo que estava entalado em sua garganta há décadas. Desejava que Voldemort estivesse ali para ver tudo o que acontecia. Seu sorriso contra o copo aumentou ao se lembrar de que ele veria, em poucos minutos, quando ela subisse para encontrá-lo com seus livros, mas dessa vez ela faria questão de contar tudo, por mais que ele lesse sua mente antes. “Triunfo” era a palavra que podia ser usada para descrever aquela noite, e ela não deixaria detalhe nenhum de fora. Ela não pretendia governar além daquela semana, nem tornar os sonhos daqueles à sua frente verdade, mas em um canto escondido de sua alma, ela desejava poder dividir não só aquele, mas muitos mais triunfos com ele. E ela podia negar e esconder muitas coisas, mas jamais a verdade de que a Coroa podia pesar para muitos, mas não para ela e, menos ainda para Voldemort, eles haviam nascido para reinar, e a única questão era: o quão decidida ela era para resistir? A cada dia, ela sabia menos a resposta para aquela pergunta.
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N/A: Fazem milênios que eu não coloco uma notinha, então lá vai: eu ainda amo vocês, amo a HdM, não se preocupem que nunca vou desistir e Bella rainha da porra toda!!! <3
Beijos!
Mel Black!
Ps: pra não perder o costume, a autora ama comentários hahahahahahahahahahaah
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