one shot
No negro tudo é mágico. Macio veludo a cobrir as águas de cima, estrelas bordadas caprichosamente como contas num manto real. As formas do castelo recortadas contra a escuridão faziam os joelhos tremerem, a perfeita geometria do alinhamento das torres, o poder pulsando das pedras, Hogwarts a noite era de tirar o fôlego. Todas as janelinhas cravadas nas torres acesas, as estrelas do céu pareciam maiores ali também. Hermione sabia, é claro, que esse era um efeito causado por magia, pensado por Rowena Ravenclaw, que o usava nas noites em que queria amar sob a luz das estrelas. A menina nunca fora do tipo romântico, mas isso não significava não se sensibilizar com uma delicadeza dessas. Seria bom ter alguém para abraçar sob esse céu. Mas que pensamento tolo! Repreendeu-se a si mesma e entrou no castelo para continuar sua ronda.
A atmosfera no mundo bruxo se adensava cada vez mais, pairava no ar o temor estático de que coisas terríveis poderiam acontecer a qualquer momento, até mesmo os trouxas estavam percebendo. Hermione assinava o Profeta Diário e todas as manhãs se via bombardeada por casos estranhos, desaparecimentos, mortes sem explicação. Estava sendo um ano pesado, mas a proximidade do natal de certa forma atenuava as coisas, e depois de respirar o ar úmido da noite e admirar as estrelas gigantes, o coração da jovem bruxa se enchera de ternura. E também das inquietações da adolescência, mas considerava estes pensamentos frívolos demais, portanto os colocava de lado.
Sem que percebesse, foi vagando a esmo pelo castelo e quando viu estava em frente à Sala Precisa, onde Harry treinava a Armada de Dumbledore. Não haveria mais aulas até depois do natal, sabia bem disso. Mas em seu peito algo a inquietava e a instigava para entrar ali. Nunca fora dada a pressentimentos e intuições, sempre objetiva e concreta, não sabia o que estava havendo.
O cômodo estava escuro, mas certamente não era a sede da Armada. Era um quarto muito colorido, com uma bancada com muitas coisas curiosas e almofadas no chão. O aposento não tinha teto, apenas a abóboda aveludada incrustada de estrelas grandes demais, talvez até maiores que as do céu de Hogwarts.
Hermione foi andando com cuidado, os cachos volumosos afofando suavemente ao ritmo da brisa da noite. Na bancada, que parecia servir para algum tipo de experimento, podia-se reconhecer alguns ingredientes para poções, uns um tanto raros. Na extremidade do mármore, havia um porta retrato de moldura crivada de conchinhas. Na foto, sorrindo e acenando, estava uma moça alta e loira, suja de fuligem e toda desgrenhada, o que a tornava estranhamente mais bonita. Ao seu lado estava um bebê, brincando com uma fruta exótica, laranja vibrante. A mulher era exatamente igual à menina estranha da Corvinal, Di-lua Lovegood.
- Olá. – disse uma voz sonhadora. – estive te esperando a noite toda. Não viu que as estrelas estão maiores hoje?
Ao lado de um telescópio pintado à mão, estava Luna. Desgrenhada e linda como sua mãe na fotografia. Curiosamente fascinante. Hermione pegou-se olhando demoradamente para aqueles olhos vivos, arregalados como se tudo o que visse do mundo ainda fosse pouco.
- C... Como estava me esperando se nem eu mesma sabia que viria aqui?
- Ora, minha mãe me contou. E nós, da Corvinal, sabemos ouvir a voz da noite e inflar as estrelas. Gostou?
- Ó, a noite está linda para se amar sob a luz da lua! – ainda bem que está escuro, pensou Hermione. O rosto em chamas. Como pode dizer uma bobagem dessas? Não queria se igualar a uma tola como a Di-lua.
- Eu fui feita sob a luz da lua.
Que coisa mais constrangedora para se dizer! Pensou Hermione, novamente enrubescida.
- Você pensa muito. Podia sentir mais, ficaria mais próxima da luz e os céus pareceriam mais estrelados.
Contrariando toda a postura que lutava para manter, Hermione se sentou ao lado da menina estranha, apoiou a cabeça nos joelhos e começou a chorar. Se lembrou das crianças trouxas na escola colocando apelidos nela, de Rony no primeiro ano dizendo que ela não tinha amigos, dos seus pais dizendo que ela poderia largar um pouco os livros e se divertir com as crianças no parque.
A verdade era que invejava Luna. Seu jeito avoado de criança, tão autêntica, falando coisas que só ela parecia entender, dançando descalça na neve. Ela ficava observando a corvina das janelas das torres, os cabelos quase brancos cheios de galhos secos.
Luna abraçou Hermione. As duas deitaram e ficaram olhando as estrelas. Luna apontava para o céu e mostrava as constelações. Tinha a Narguilé, a Umpuranca Azul, o Dragão Cara de Gato, a Dama Cinzenta e muitas outras que só ela podia ver. Hermione sabia muito de astronomia, mas pela primeira vez não se apressou em corrigir. Estava se esforçando para imaginar as loucuras da menina e se divertindo com isso. Podia sentir os braços da loira por baixo de sua cabeça, o roçar dos seus dedos na mão direita dela, e seu coração se enchia de uma ternura desconhecida, uma sensação mista de manhã de natal e barriga quentinha de sopa.
Por mais estranho que fosse, as estrelas pareciam aumentar cada vez mais. No entanto, dentro do coração de Hermione, ela sabia que era perfeitamente natural e até esperado. Reuniu toda a sua coragem e começou a mexer nos finos cabelos louros da menina ao seu lado. Eram muito macios e tinham cheiro de alguma flor desconhecida.
- É cheiro de Aurúplices. –disse Luna. E na mesma hora fechou os olhos e ronronou como um gatinho.
A vergonha deu lugar à sensação mais terna que Hermione já sentira. Era como se uma das estrelas gigantes tivesse se instalado em seu peito e a cada respiração de Luna, crescia, fazendo seu corpo todo formigar. Estava cada vez mais à vontade, afundando os dedos na juba de sol da manhã, podia até imaginar uma coroa de Aurúplices adornando aquela cabeça adorável. Mesmo nunca tendo ouvido falar dessa espécie, sabia que era a flor mais linda do mundo.
A lua no céu era o sorriso do gato (só os nascidos trouxas entenderão a referência). Isso a fez rir.
- Foi um narguilé que entrou na sua boca? – perguntou Luna, abrindo os olhos.
- Feche os olhos, por favor. Eu quero te olhar.
- Por que você riu?
- Porque a lua parece o sorriso do gato.
- Do Bichento?
- Ó não, do Gato de Cheshire. Deita no meu colo que eu te conto a história.
Luna se levantou e repousou a cabeça sobre as pernas cruzadas de Hermione. Ela estava tão diferente da sabichona habitual, sempre contida com sua pilha de livros. Era linda, com seu ar de que sabe de tudo, sua segurança, o modo como mordia os lábios quando tinha a resposta para alguma questão, pensava a loira.
- Alice estava começando a ficar cansada... – começou Hermione. E então Luna estava quedando vertiginosamente rumo a um subterrâneo fantástico e bizarro.
- Alice é minha fantasia favorita. E toda vez que leio penso em você. – segredou Hermione, corando de vergonha.
Luna se pôs sentada e pegou as mãos dela. As duas ficaram um longo tempo se olhando. Suspensas num atemporal, enquanto lá em cima as estrelas esmaeciam e o céu aquarelava suavemente. Tons róseos se estendiam preguiçosos, tomando o lugar do imenso cobertor negro da noite. Ralas nuvens azuis e liláceas abraçavam-se e fundiam-se, matizando as águas celestes com as delicadas cores da manhã. O sol timidamente aparecia, esquentando de mansinho o topo da cabeça das meninas.
- Olha o sol nascendo. – Disse Luna, com os olhos cheios d’água.
-Bobagem, o sol nascente está bem aqui. – Disse-lhe Hermione, entrelaçando os cachos loiros da outra.
- Eu fiz as estrelas crescerem pra você. – Confessou a corvina, o rosto subitamente assumindo a coloração de um rabanete. Baixou então a cabeça timidamente. – Mas elas não brilham mais que suas íris.
As duas permaneceram em silêncio, os dedos trêmulos contornando o rosto uma da outra, como se quisessem gravar todos os traços. Não precisavam falar nada, o não dito enchia-lhes os corações de certezas e dúvidas e assim ficaram até o dia despertar de vez.
Nas semanas que se passaram as duas se viram vagamente pelos corredores e no refeitório. Gina comentara algumas vezes com Harry e Rony sobre Luna andar mais aluada do que nunca, ao passo que Hermione estava estranhamente avoada, sem falar de estudos nem uma única vez.
O castelo já estava todo enfeitado para o Natal, os quadros limpos, as armaduras polidas, doze pinheiros (trazidos por Hagrid) enfeitando o Salão Principal. A atmosfera conseguia atenuar os medos dos tempos difíceis pelos quais passavam, nem Umbridge conseguiria tirar a magia de uma manhã de Natal.
No dia 25 de dezembro, Hermione acordou e deu com uma pequena pilha de presentes aos pés da cama. O primeiro embrulho que viu era tão vibrante que não restava dúvidas do remente. O coração da menina disparou na mesma hora, desfez o laço com todo o cuidado que suas mãos trêmulas permitiram. Caiu em seu colo uma grinalda cuidadosamente tramada com as flores mais lindas que já vira, pareciam feitas de cera tamanha era a perfeição e mudavam de cor do miolo para as pétalas, criando lindos padrões. O cheiro do cabelo de Luna invadiu o quarto e a deixou em êxtase. Então eram estas as Aurúplices! Colocou a grinalda na cabeça e rodopiou pelo quarto abraçando o próprio corpo. Parvati que acabara de acordar ficou extremamente surpresa.
- Está apaixonada? – perguntou a morena, sorrindo brincalhona
- Sim! – e ao dizer em voz alta seu coração ferveu, inundado com a certeza que não quisera admitir. Estava completamente apaixonada pela doidinha da Di-lua.
Arrumou-se às pressas e saiu correndo para o Salão Principal, com a coroa de Aurúplices na cabeça. Do teto encantado caíam flocos de neve, o burburinho de conversas enchia o ambiente. Foi então que ela a viu, com um pudim inteiro na mão.
- Vamos, vamos. Dobby acabou de me dar, vamos comer de baixo da nogueira. – disse Luna.
Hermione a seguiu, o coração aos pulos. Sentaram a sombra da árvore frondosa, na beira do lago. A grifinória conjurou uma toalha de piquenique e dois pratos e colheres. Devoraram o doce entre risos.
- Minha mãe dizia que a gente sabe que é amor quando divide o pudim. – Disse Luna.
- Sua mãe é muito bonita. – disse Hermione. – Assim como você.
- Era. Ela acabou explodindo durante uma de suas experiências. Mas tudo bem – acrescentou ao ver a expressão da outra – ela cuida de mim lá da Lua.
- Ela com certeza tem muito orgulho de você.
- Por que diz isso? Eu não sou inteligente como você, nem minhas notas são as melhores.
- Você é muito sábia, ao seu jeito. E sabe sentir, coisa que nenhum livro ensina.
- Eu posso te ajudar se você quiser.
- Por favor.
Eras atemporais se passaram naquele instante. Quando tudo parecia terrível e deliciosamente lento. O farfalhar das folhas, a tímida aproximação dos corpos, o entrelaçar dos dedos, depois o soltar destes para percorrerem o rosto uma da outra, o fechar dos olhos. Parecia que a distância entre as duas nunca se preencheria. Atraíam-se vagarosamente, primeiro juntaram as testas, a respiração de uma confundindo-se com a da outra. Então, roçaram levemente os lábios macios de menina, para então se afundarem uma na outra, as mãos embaraçando seus cabelos.
A sensação era de que toda a constelação havia se instalado em suas barrigas, as fazendo ferver. O cheiro das Aurúplices as entorpecia, o gosto de pudim em suas línguas, as mãos delicadas percorrendo a nuca, as costas, a cintura uma da outra.
Afastaram os rostos e entrelaçaram as mãos novamente, sentaram nas raízes da nogueira e ficaram abraçadas, os corpos extasiados, os corações se harmonizando, os cabelos desgrenhados.
Luna olhou para cima e gargalhou.
- Olhe, está cheio de narguilés sobre nossas cabeças.
As duas riram e se beijaram de novo.
Quando se deram conta o sol já deslizava como fogo no horizonte. O céu, furta-cor como as Aurúplices, as brindava com a dança poente, onde os tons se entrelaçavam como os dedos e as línguas das duas meninas. O sol rubro incendiava o fim do dia. Vermelho no azul.
- Somos nós duas. – disse Hermione.
- Não quero que o dia termine.
- Não vai. – sorriu maliciosamente Mione, tirando de dentro das vestes o vira-tempo.
- Você não pode usar isso assim.
- Eu sei. Será meu presente de Natal. Por toda uma vida de boa menina.
Deitaram no chão e se abraçaram, os dedos correndo levemente pelo corpo uma da outra. Agora já era noite posta e já passara da hora de voltarem para o castelo.
Beijaram-se longamente, rolando no chão e se enchendo de folhas secas. Até que ouviram as portas do castelo se fechando. Hermione sentou-se e passou o cordão do vira-tempo pelo pescoço das duas, deu três voltas e então tinham novamente o melhor natal de suas vidas
- Pena que ontem não foi lua cheia. – queixou-se Luna. – Lua cheia é a lua dos amantes.
- A única lua que eu quero está bem aqui.
As Aurúplices nos cabelos de Hermione se avermelharam todas, como que para combinar com suas bochechas em fogo.
- Por que está tão vermelha? – perguntou Luna. - Foi a coisa mais bonita que já me disseram.
- A culpa é dos narguilés – respondeu
- Ó sim, esses travessos narguilés.
- Como faz para mantê-los longe?
- Tem que me beijar.
E entrelaçaram-se novamente. Num único emaranhado de loiro e castanho, as estrelas de seus peitos atingindo tamanhos colossais. Lá da Lua a mãe de Luna sorria, e segurava um pouco as rédeas do tempo para que pudessem aproveitar mais.
A águia e a leoa descobriram que nenhum tom combina mais que o vermelho com o azul.
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