O Golpe
Acho que não me lembro direito do meu pai porque procurei esquecê -lo de propósito. Como se ele fosse um desenho num quadro negro que pudesse ser apagado. Outro dia vi um cara na tv dizendo que toda criança precisa de um pai, ou pelo menos da imagem de um pai para se espelhar. Um treco mais ou menos assim. Sou diferente, não preciso dele e nunca queria ser como ele. Um sacana com pinta de bacana. Posso ter sido tudo, menos sacana, ou melhor, fui um sacana da pesada, mas nunca tentei enganar ninguém. Por isso é que penso no meu filho que vem aí. Penso nele e quero ser diferente. E juro pra mim mesmo: nunca vou fazer ele de trouxa. Como meu pai fez comigo, com a Gina e a mamãe.
Estou pensando nisso agora porque me lembro do golpe que ele aplicou na minha mãe. Quando ele se mandou, disse que estava com os negocios enrolados e que por isso, ia pagar uma pensão pequena, mas que deixava a casa que valia uma nota. O problema é que ele deixou também um monte de dívidas. E quem foi que pagou? Minha mãe vendendo a casa.
Foi por isso que mudamos pro apê de Pinheiros. Mas antes disso mamãe chorou, a Gina consolou -a, pediu pra ver as dívidas, fez as contas e deu o palpite dela:
_ A gente podia morar num apartamento pequeno, e o Rony e eu mudamos de escola.
Mamãe quase teve um treco...
_ Morar num apartamento pequeno? Você tá louca Gina? Quanto a irem a outra escola, nem pensar. Fazemos um pouco de sacrifício.
Mas ela sabia o qu era sacrifício? Mudamos pro apê de Pinheiros, e mamãe quis manter quase a mesma vida. Ficou com uma das empregadas, com o carro dela e continuou a badalar com as amigas. Até que a grana que havia sobrado da venda da casa foi quase toda embora. Se não fosse a Gina, a gente tinha se ferrado. Um dia quando mamãe descobriu que estava nima pior e começou a chorar, ela lhe deu a maior bronca:
_ Acorda mãe! A vida do Morumbi já é coisa do passado.
_ Mas o que a gente vai fazer Gina? Anda, me diz!
_ A senhora vende esse apartamento e compra um menor.
_ E viver do quê, Gina?
_ Mãe, a senhora estudou pra quê?
Quando a Gina disse isso, mamãe arregalou os olhos como se estivesse ouvindo a maior heresia.
_ Você está querendo dizer pra eu dar aulas?
_ E por que não?
_ A gente viver com salário de professor?!
A Gina olhou bem nos olhos dela e disse:
_ Exatamente: a gente viver com salário de professor. O que é que tem? É só você parar de andar com aquelas peruas.
_ Ginevra! Você não pode dizer uma coisa dessas!
_ Posso e digo sim. Você tem que se mancar. Essas suas amigas não valem nada, não querem nem saber de você. E depois eu posso te ajudar...
_ Ajudar? Você?
_ E por que não? Não sou nenhuma retardada. Posso ajudar sim. Arrumo um emprego.
E quanto á mim? Eu acompanhava a conversa delas de longe, sem dar palpite. Como o maior egoísta, só pensava em mim. " Tô ferrado. Adeus mesada, adeus vida mansa. Porque por incrivel que pareça, mamãe ainda dava mesada pra gente, mesmo com tudo indo pro brejo. Ela parecia o capitão de um navio que via o barco afundar e fingia não ver nada. Até que chegou uma hora que ficou impossível tapar o sol com a peneira. Se não fosse a Gina dando uma força, acho que ela teria perdido até o resto da grana da venda da casa.
Mas tô sendo injusto com a minha mãe. Depois ela deu a volta por cima e, só com a ajuda da Gina, conseguiu fazer com que a gente fosse uma familia de verdade. Dinheiro, nunca mais teve em casa, mas não lembro nunca de ter faltado comida na mesa. É bem verdade que mamãe emagreceu muito e ganhou um monte de cabelo branco. Mas em compensação ganhou coisas que eu nunca tinha visto nela antes, como orgulho e dignidade.
Engrçado, pareço um padre ou um pastor falando essas palavras " orgulho", " dignidade". Quem sou eu pra falar de orgulho e dignidade? Ainda mais depois de tudo que eu fiz. Mas, se não posso falar essas palavras, reconheço que minha mãe e a Gina podem. Elas deram a volta por cima sem a ajuda de ninguém. Isso me conforta um pouco, vendo o que elas fizeram. Uma mulher que nunca tinha feito nada na vida a não ser ficar peruando no shopping, e uma garotinha conseguindo sair do sufoco, ainda mais tendo ao lado um pilantrinha como eu que, em vez de ajudar, só atrapalhava.
Mas antes disso acontecer, ainda muita coisa rolou...
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!