O Manual

- Estou te dizendo, Tiago!

- Não sei, Sírius, essa sua ideia é esquisita.

- Nem vem, o esquisito não sou eu! Olha só, Tiago, vai ser simples, rápido e eu vou fazer todo o trabalho. É só para tirar a prova, e aí você vai ver.

Tiago Potter considerou aquilo. Havia uma semana que Sírius Black surgira com aquela suspeita, e ele próprio já havia reparado que Remo Lupin era um cara... diferente. Como bem lembrou Black, Lupin nunca tivera uma namorada (afinal, um beijo um pouco desastroso durante o Dia das Bruxas do ano passado não contava), nem sabiam se fora apaixonado por alguma garota. Estava sempre metido nos estudos, era quieto, introspectivo, como se escondesse alguma coisa além do fato de ser um lobisomem, que para eles já era óbvio. E, o que era o mais marcante para Tiago, quando bravo, dava chiliques similares aos de Lílian Evans.

Mas daí a bolar um plano para tentar arrancar uma confissão de sexualidade, Tiago achava um pouco demais. Eram amigos, que dissesse quando se sentisse confortável! Mas então Pedro lembrou todas as vezes em que ficavam apenas de cuecas ao trocar de roupa no dormitório, sem se importarem uns com os outros, e Tiago sentiu uma pontada de incômodo lá por dentro. A possibilidade de ser olhado com desejo por seu amigo enquanto estava displicentemente semi-nu e conversando não era a mais agradável do mundo, teve que concordar.

Deu um suspiro de derrota.

- Sírius, tem certeza que vai dar certo?

- Claro! Já viu minhas técnicas de sedução falharem?

- Já, várias vezes – Potter levantou as sobrancelhas. – Principalmente esses tempos.

Black jogou os cabelos negros para o lado com um leve balançar de cabeça, enquanto encarava o amigo com os olhos cinzentos e convencidos.

- Estou só dando um tempo. Sabe como é, chega uma hora em que cansa ser tão assediado. – Tiago riu, mas Sírius continuou com deboche: – Não sou como você, que se prende ao primeiro par de olhos verdes que encontra.

O mais baixo corou levemente ante a referência ao seu recente entendimento com Lílian, que não chegava ainda a ser um namoro, mas disfarçou bem e voltou ao assunto principal.

- Bom, se está decidido, por mim tudo bem. Afinal, quem vai ficar dando em cima dele é você.

Sírius sorriu com confiança, sua masculinidade não ficaria abalada por uma pequena troça, um plano, algo friamente calculado – quer dizer, com o máximo de frieza e cálculo que aquele ser impulsivo conseguia colocar em alguma coisa.

No dia seguinte, haveria a primeira visita do ano a Hogsmeade, e o plano foi colocado em ação. Sírius levou os amigos a uma espelunca tenebrosa de que ninguém sabia como ele havia tomado conhecimento, e pediu quatro uísques de fogo.

- Não estou muito para bebidas – Remo protestou, o que já era esperado, mas Sírius começou a rebater, e ele teve que se explicar, enquanto uma expressão aborrecida rondava sua face. – Sem chances, tenho que terminar o pergaminho de História da Magia (que você nem começou, aliás) e treinar um pouco de transfiguração.

- Você tem amanhã o dia todo para fazer esse trabalho! E seu passarinho transfigurado está ótimo – Black sorveu um gole do uísque que havia acabado de ser colocado a sua frente.

- Ele não tem penas – Remo respondeu, entredentes. Mas Sírius não ouviu, ocupado que estava em tomar o máximo possível de uma vez só. Ao abaixar o copo, simplesmente empurrou um outro para Lupin com olhar enfático. O licantropo suspirou com ar cansado. – Se eu beber, você me deixa em paz depois?

- Deixo.

- Só essa?

- Só essa.

Tiago e Pedro sabiam o que Sírius estava fazendo. “Se estiver bêbado, ele não vai conseguir se conter tão bem, vai cair com certeza, e vocês sabem o quanto ele é fraco para álcool, uma dose de algo forte vai bastar”, dissera no dia anterior. Os dois se entreolharam tomando um gole da bebida amarga e rascante, desejando que Black soubesse mesmo o que estava fazendo. Alguns minutos depois de terminada a bebida, eles se levantaram conforme o combinado, pois, segundo Sírius, “Jamais vai dar certo com os quatro na mesa, temos que ficar a sós”.

- Vou ver a Lílian, e aproveitar para empurrar a chata da McKinnon para o Pedro, assim quem sabe ela cala a boca – suspirou Tiago, meio zonzo.

- Ei! – Pettigrew reclamou, tão zonzo quanto, e se levantou também.

- Vão lá, eu cuido bem do Remo – Sírius deu um sorriso enquanto o outro corava e assumia uma expressão contrariada.

Os dois saíram do bar e, ao chegar à esquina, Potter tirou uma capa fina de dentro do bolso e os cobriu com ela.

Sírius viu quando a porta do lugar se abriu aparentemente devido a uma lufada de vento e soube que Tiago e Pedro estavam se dirigindo para perto da mesa deles embaixo da capa da invisibilidade. Plano em ação!

Deu um suspiro pesado, como quem está pensando em algo doloroso e fitou o nada por alguns segundos.

- Então eles se acertaram mesmo, Tiago e a ruiva.

- Bom, o Tiago nos disse isso tem uns dias. Acho que agora eles ficam juntos de vez.

Outro suspiro pesado de Sírius.

- E nós aqui, solitários.

Uma risada um pouco alta de Remo, que havia tomado o último gole e tinha as faces vermelhas do álcool.

- Você, solitário, Sírius Black? Achei que isso não acontecesse desde o quarto ano.

O outro jogou a franja para o lado.

- Elas me cansaram um pouco. Sabe a última, a Conelly? Só falava das unhas, um saco.

- E o que vai fazer agora?

- Não sei – Sírius jogou um braço em volta de Lupin, que se limitou a mover os olhos de âmbar para aquela mão dependurada em seu ombro. – Continuar procurando, quem sabe.

Pedro e Tiago, bem escondidos e invisíveis a um metro da mesa, seguraram o riso ante aquela manobra brusca.

- Ceeerto – retrucou Remo, desconfiado, tirando o braço do outro de seus ombros.

- Vamos dar o fora daqui? Esse lugar fede – o Black pareceu não ter percebido o movimento de seu alvo, ou ignorá-lo.

Pagaram rapidamente no caixa e saíram para o ar daquela tarde fresca, tão diferente do bar. Sírius mantinha uma distância muito curta de Remo ao perguntar para onde ele queria ir, e demorou um pouco nas suas respostas para se certificar que os outros dois tivessem saído da espelunca também.

- Vamos só dar uma volta pela vila – decretou, por fim, quando sentiu Tiago cutucar seu braço para avisar que já estavam lá. – Mas não vamos para o centro, deve estar todo mundo da escola lá.

Tomou um caminho que continuava na periferia de Hogsmeade, pois Remo não se manifestara. Andou mais um pouco perto do moço e novamente adotou uma distância minúscula dele.

- Você está estranho hoje – Lupin protestou, se afastando um pouco.

- Ah, só estou mais pensativo que o normal – novamente os dois escondidos seguraram o riso ante a cena de Sírius Black fingindo prestar atenção no nada com cara de triste, tentando passar uma imagem de profundidade sentimental, e novamente aquele braço nos ombros. – Acho que estou pensando em novas possibilidades.

- Jura? – Remo levantou uma sobrancelha e tirou o braço dos seus ombros. – Bom para você, cara.

- E você? – retrucou o outro, inesperadamente.

- Eu o quê? – Remo falou um pouco alto, provável efeito do álcool e da surpresa.

- Não sente vontade de fazer algumas coisas... não tão convencionais? – Lançou o mais sedutor de seus sorrisos, aquele que usara tantas vezes com as garotas de Hogwarts, enquanto andava vagarosamente ao lado de Lupin.

Remo parou com o cenho franzido e mirou Sírius com estranheza antes de falar, sério:

- Olha, cara, acho melhor eu só esclarecer uma coisa, pode ser? Não sei o que anda acontecendo com você, quais são seus problemas e se tem a ver com as garotas ou não. Respeito você e suas escolhas... ou falta de escolha... mas eu... ahn... não sou... gay, tá?

A expressão chocada de Sírius foi acompanhada de um risinho de alívio de Pedro e um suspiro de Tiago. O plano falhara, depois de tudo.

- Sem essa, você sabe que não precisa esconder as coisas de mim! – Black tentou rebater, novamente sorrindo.

- Ah, não estou escondendo nada desde o segundo ano, desculpa te desapontar. Acho que você vai ter que tentar “coisas não tão convencionais” com outra pessoa.

- Mas... nós nunca te vimos com nenhuma mulher! Quer dizer, tirando aquela lufa-lufa que te perseguiu ano passado até te pegar no Dia das Bruxas...

Os olhos cor de mel de Remo assumiram uma luz sonhadora, ele deu um sorriso bonito e largo, que ofuscou as olheiras e a palidez características.

- Estou esperando alguém que faça eu me sentir feliz ao acordar e pensar nela, que me dê vontade de mandar flores e cartões. Sei que alguma hora vou encontrar alguém que seja especial, uma garota que me complete – seu sorriso aumentou ainda mais, estava sereno. – Até lá, eu simplesmente não vejo motivos para sair com qualquer uma (sem ofensas, cara). Eu não ligo, fui um pouco sozinho a vida toda, posso esperar mais um tempo por alguém que faça eu me apaixonar.

Os três ficaram embasbacados ante aquela visão um pouco fora de moda de amor, porém muito bonita, o tipo de coisa que faria qualquer ser do sexo feminino se derreter. Com isso, Tiago sentiu que o plano havia realmente falhado e saiu de debaixo da capa com Pedro.

- Fim do plano então, Almofadinhas.

Remo ficou olhando aquilo tentando descobrir se era verdade ou efeito do álcool, abriu ligeiramente a boca, mas a fechou de novo, porque não encontrou nenhuma palavra que se adequasse ao momento. Sírius então sentiu que era hora de assumir a responsabilidade

- Sei que vai ficar furioso, mas confesso que bolei um plano para descobrir se você era gay.

- O QUÊ? – Os três o olharam com culpa enquanto Lupin explodia, avermelhado de raiva e com sobrancelhas muito juntas. Sabiam que deviam ficar calados e ouvir. – Não acredito que fizeram isso! Meus amigos! Me enganando desse jeito, como se eu fosse um idiota! Podiam simplesmente ter me perguntado, mas nããão! Precisavam encenar uma coisa ridícula para me deixar desconfortável e confuso! Não confiam em mim? – Encarou-os com olhos grandes e magoados, semblante sombrio, pálido, que os fez sentir que a coisa era realmente séria. – Depois de tudo o que já aconteceu, eu merecia mais...

Virou as costas sem dizer mais nada e marchou em direção a Hogwarts, enquanto seus amigos se olhavam com culpa, cabeças baixas.

- Ele tem razão – murmurou Pedro, infeliz por ter concordado com a ideia na hora em que foi dada. – Somos uns idiotas mesmo.

- Como sempre! Cara, me diz como não nos ocorreu conversar com ele – Tiago estava muito sério, os olhos brilhantes por trás das lentes de seus óculos ovalados.

Um silêncio de chumbo caiu sobre eles, parados ali no meio do nada, em um canto qualquer de Hogsmeade.

- Deixa, eu vou atrás dele e peço desculpas. Digo que eu que convenci vocês dois a isso – disse Sírius, cabeça baixa, com o indicador e o polegar direitos segurando a parte do nariz que fica entre os olhos.

- Não, todos erramos – rebateu Tiago.

- Me deixa consertar, a ideia estúpida foi minha. – E a seguir voltou a sorrir mais confiante. – Uma ou duas palhaçadas e amanhã quando ele acordar já vai ter perdoado sem nem se dar conta, deixa comigo – Sírius parecia determinado, e não houve mais o que discutir. Deu um rápido abraço de cumplicidade nos outros e correu para o castelo.

Mas, independente da sexualidade, Tiago continuou pensando que Remo bravo era muito, mas muito parecido com Lílian.

 

Black caminhou rápido pela escola deserta, sabia muito bem onde ele estava. Seus passos ecoavam nos corredores vazios do terceiro andar, então abriu a porta de uma sala de aula que não era utilizada e Remo Lupin se virou para ele com a expressão aflita, mas o moreno continuou sério.

- Você é um mentiroso, Remo John Lupin. – E a seguir, aquele sorriso de fazer bambolearem as pernas. – Você não me disse que era um ator tão bom, seu canalha.

Lupin sorriu aliviado e atirou os braços em volta do pescoço de Sírius, que o enlaçou pela cintura com carinho.

- Então eles acreditaram? Nossa, foi tão difícil com aquele uísque... o que eles disseram? – O licantropo perguntou, ainda preso a Sírius.

O moreno o soltou com delicadeza e deu uma risada.

- Na verdade, você foi tão bom que eles estão realmente preocupados e sentindo uma baita culpa. Mas não se preocupe, eu me ofereci para conversar com você e explicar o que aconteceu, já já volto lá com a notícia que está mais calmo e que eles podem ficar tranquilos.

Remo suspirou, fechou os olhos por alguns segundos e, ao abri-los novamente, o alívio havia partido, a voz estava rouca.

- Sabe, eu realmente não gosto de mentir para eles.

Sírius se aproximou dele e passou a mão por seu braço, como um consolo.

- Eu também não. Merda, você sabe! – Virou-se, começou a andar pela sala. – Eu sei que eles vão ficar putos quando contarmos, e com razão! Mas eu... eu não quero tirar  privacidade deles, entende? Não quero que eles fiquem preocupados ao se trocar, que fiquem com medo de acordar no meio da noite com dois amigos transando na cama do lado – deu uma risada amarga. – Porque eu, sinceramente, ficaria.

- Six, você tem medo que eles achem que não somos mais quem éramos antes disso tudo – a conclusão de Lupin foi calma, sem julgamentos.

- Talvez. Acho que eles vão se sentir desconfortáveis dividindo um dormitório conosco. Acho que vão pensar que estão atrapalhando e que só queremos ir num canto dar uma rapidinha. Acho que vão se sentir inibidos no próprio quarto, parar de sair de toalha do banheiro, parar de deixar o malão aberto com as cuecas sujas jogadas lá dentro. Acho tudo isso e acho mais algumas coisas. Remie, eu só quero que eles fiquem felizes enquanto não terminamos esse ano. Depois disso não importa, vamos embora da escola e eles poderão fazer o que quiserem em suas casas. Mas esse é nosso último ano aqui, nosso último tempo vivendo com eles, não quero estragar isso.

Encarou-o com olhos suplicantes, como se pedisse para o lobisomem dizer que era uma causa justa, que ele não era egoísta e que era visível o amor por seus amigos. Em vez disso, ele se aproximou e lhe deu um beijo terno, carinhoso.

- Você é uma pessoa boa, Six – olhou fundo naquele mar cinza e nebuloso. – Eu entendo o que você diz e tenho medo disso também. Vamos disfarçar por mais alguns meses como você propôs, mas eu gostaria que contássemos a eles depois da formatura. Eles merecem.

- Eu sei, eu jamais pensaria em esconder isso deles por mais tempo, mesmo esses meses vão ser difíceis. Acho que Tiago só não vai falar nada por causa do que fizemos hoje, porque eles já estavam desconfiados de você.

Remo riu com gosto.

- Só de mim. Só do cara quieto. Jamais do gostosão da escola.

Sírius deu um muxoxo. Sentia que, para ele, a palavra “homossexual” era muito forte.  Gostava das mulheres, e gostava muito, mas percebeu que não gostava só delas. Não era fingimento, não era disfarce, não queria construir uma reputação para acobertar seus casos com homens e, principalmente, com Lupin. As coisas simplesmente aconteceram assim.

- Agora faça um favor, Sírius, vá falar com eles, não gosto de deixar Tiago e Pedro preocupados. Eu vou para a biblioteca fazer o relatório, se conseguir, e só apareço na sala comunal depois da janta.

Beijaram-se novamente, dessa vez com sofreguidão, desejo. Remo agarrou os cabelos da nuca de Sírius, que iam até os ombros, e os puxou com força, enquanto o outro percorria suas costas e nádegas com as mãos. Foi um beijo longo, demorado e íntimo, e ao fim dele encararam-se muito próximos. Sírius passou as mãos pelos cabelos do outro, pareciam felizes.

Tudo havia saído conforme o planejado.

 

***

 

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Bjos a todos que leram, L.W.

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