K i r e d h e l



Capítulo Único     
(K I R E D H E L)
     


    
      

O fogo, a saraivada de flechas, os corpos caindo no lar de Ulmo, nada seria esquecido. A espada que decepava Teleri a Teleri. O Rei tombou. Maldito seja Morgoth e seu poder de enegrecer o mais puro coração, maldita seja a reivindicação de Fëanor, malditos sejam os noldor por deixarem-se liderar por ele. Maldita seja a lâmina que derramou do mesmo sangue. kiredhel, maldita seja a ti. Madita seja. 
As chamas ganhavam o céu, as jóias de Elbereth, destruídas, espalhavam-se em poeira cósmica. Reduziram-se em cinzas as naus que outrora pertenceram aos Telerin. Telerin e Noldor lutando contra si; a mesma raça, a mesma diferente-raça sangrando e, ao fim, os sobreviventes choravam por aquele que seria conhecido como Fratricídio de Alqualondë. 
A cidade-porto de Alqualondë nunca esqueceu de seus mortos, três séculos de lágrimas desaguaram no porto, três séculos de tributos. A menininha lançou o barco-cisne no mar, outros imitaram seu gesto. Trezentos barcos-cisnes bateram suas asas e voaram para o infinito das águas lacrimosas. A menininha chorava, em seu coração incrustou-se o ressentimento para com aqueles que foram seus irmãos. 
- Eu os odeio, papai - falou a pequena Rowena. 
- Não tanto quanto a mim, querida. 
Rowena cresceu tanto quanto seu ódio. O corpo fresco escondia as chamas do temperamento ruim da jovem donzela élfica. Salazar a conhecia bem, e amava-a como Platão. Admirava-a a distância, Rowena corria descalça aqui, Rowena dançava com as borboletas acolá. Rowena nadava nua com peixes... Salazar suspirava e tremia sem cessar.  
Ergueu-se das águas, caminhou deixando pegadas molhadas na relva. Seus olhos encontraram os de Salazar, que se enrubesceu. 
- Há quanto tempo estás ai? - enfureceu-se a jovem. 
- E-eu não... 
- Não admito que me espies, entendeste? - ralhou com dedo em riste. Salazar se desculpou e prometeu não repetir a falta em troca do silêncio de Rowena, pois o pai da moça não mais o veria com bons olhos, não que se importasse, mas Rowena nada falou. 
 
X
 
 
As mãos brutas, marcadas pela labuta, martelavam o aço incessantemente, aos poucos, o noldo reforjava a mais assombrosa das armas um dia embainhada por um elfo. kiredhel renascia pelas mãos calejadas de Godric. A cada gota de seu suor, o corpo de kiredhel reverberava a Luz da terra desconhecida. Em seu âmago, Godric almejava conhecer a Luz, entrar em Valinor, e residir nas terras sagradas dos Grandes Senhores do Oeste, mesmo que o exílio imposto à casa de Fëanor ainda existisse após tantos anos. Godric nada temia, seja lá o que viesse em seu caminho, enfrentaria com kiredhel em punho. E assim foi. 
Esgueirava-se pelo Ermo, procurando o exato momento de atacar, quando chegada a hora desembainhava a Espada de Griffindor e rechaçava os orcs incautos que apareciam à sua frente. 
- SINTAM A ESPADA DE GRIFFINDOR - esbravejou Godric, que avançava, deixando uma trilha de cabeças de orcs atrás de si. Godric chegara ao destino esperado, mas seus feitos chegaram antes e foram além. 
 
X
 
 
Salazar descumpriu a promessa feita a Rowena, incontáveis vezes a contemplou com seus olhos furtivos. Rowena nunca o percebeu, sequer soube de seus sentimentos, via-o com indiferença, nem eram amigos, mal trocavam palavras. Salazar!, olhos-de-cobiça, continuava a namorar o corpo de Rowena às escondidas. 
- Doce Rowena - disse para si. 
- Deveria tamanha ousadia escapar impunemente? - falou a voz dura de Godric enquanto a afiada kiredhel tocava as costas de um Salazar desprevenido.  
- Vai-te embora - virou-se Salazar em afronta. - não deverias pisar nestas terras. 
- O que há? - perguntou Rowena, já vestida, com os braços na cintura. Seu olhar era inquisidor.  
- Chamo-me Godric.  
- Por que apontas tua espada contra Salazar? – perguntou rudemente. - Ordeno-te que o deixe ir a-go-ra.  
- Tu o ordenas, mulher? – riu-se - Tomaria mais cuidado com os banhos daqui para frente. 
- Que dizes? – perguntou afoita, mas era tarde, Godric já havia saído. 
 
X
 
 
O estômago de Godric se alegrara com a ceia farta, pois muito trilhou sem provisões, seus ouvidos se admiraram com as canções dos telerin. Godric fora bem recebido por eles, gostara de todos salvo Salazar, é claro; desde o incidente ambos olhavam-se de atravessado, e o teleri não perdia a oportunidade de questionar o passado de Godric. Quanto à moça, Rowena, achou-a demasiadamente tola.  
- De onde és mesmo? – perguntou Salazar repleto de más intenções. 
- De Fora.  
- Deixa-o comer, Salazar - falou o dono da casa. – Mais vinho? 
- Devias guardar o vinho para ocasiões importantes, papai. 
- Não devemos alimentar bem quem aqui chega? Em minha casa nunca faltará comida e vinho para um matador de orcs. – gargalhou o homem e os demais juntaram-se a ele no riso e no brinde – além disso, Godric é um irmão, eu já o amo se todas aventuras vividas forem genuínas. 
- Um irmão? – debochou Salazar. – Os noldor também foram um dia, veja no que deu! 
Os risos se extinguiram abruptamente. Pela primeira vez, o anfitrião saiu da linha. Néscio Salazar. Que aguente as consequências! Saiu com orgulho ferido, deixou Aman.
Agora Godric entendia o porquê de seu pai lhe pedir a ocultação da sua real raça, compreendeu que sua espada fora responsável por afastar seu povo das benções dos Senhores do Oeste. Por qual outro motivo kiredhel tem o nome que tem? Quantas vidas tiraste, Corta-Elfo, quantas?

X


Ah, Salazar. Se tudo acontecesse como esperava, em breve Godric seria, no mínimo, exilado de Aman. Dificilmente escaparia da punição dos Senhores do Oeste, e além de tudo, havia os telerin e o próprio Rei de Doriath, todos sedentos por justiça. Thingol, enfim, estava a caminho, e vingaria a morte do irmão, Rei dos telerin morto por kiredhel.

X


Em penitência, a labuta. Godric labutava de sol a sol, qualquer coisa que os Telerin lhe pedia, fazia sem questionar, sentia vergonha do pretérito, chorava por sua família e pelo feito de Corta-Elfo.
Em suas mãos o futuro barco-cisne ainda em madeira. 
- Se dependesse disso para viver, morrerias – falou Rowena, que surgiu do portal do depósito.
- Se vens aqui para me empertigar... - falou impaciente.
- Estas estranho, e não é de agora.
- Estas vendo coisa – rebateu.
- Sabes que não! Sabes que não. O que há contigo, Godric? – Silêncio.
Rowena tomou as mãos grossas de Godric, ambos os olhos cintilaram, nunca haviam se tocado antes, o homem bruto comoveu-se pelo toque da mão delicada, havia tempo que não sentia o frescor de uma elfa. Rowena, surpresa, encostou a cabeça no peito suado. Mãos espessas buscaram os botões de Rowena. Ah, Suspira, donzela élfica, suspira, porque silenciada será com um beijo. Teleri e Noldo enlaçando-se: o sangue daquela que deixava de ser donzela, a agilidade do Quendi que sabia labutar.
- Vai-te daqui, diaba! – disse Godric depois do desenlace.
- Como...?
- SAI. SAAAIA.
Rowena correu. O mal estava feito.

X


E quebrou-se silêncio.
A hoste cinzenta chegava a galope. Nos ombros, as aljavas lotadas para a vingança.
“Assassino, Assassino” – ecoou.
Godric não correu. Um noldo nunca foge.
- Eis que kiredhel desafia-nos – falou o Capa Cinzenta – Edhel ath edhel!
EDHEL ATH EDHEL” – bradou a hoste. Os cavalos relincharam, o inimigo seria esmagado. Sangue por sangue.
Elfo por elfo.
- TELEEEEERINNN – e o Rei de Doriath soltou seu último grito, mas sua hoste não disparou. 
“FOGO. FOGO” – gritaram alguns.
Os barcos-cisnes de Alqualondë tornaram-se tochas flamejantes. Rowena lançara-se com seu cisne a bater asas de fogo. Logo a flotilha de barcos-cisnes juntou-se no fogo.
As chamas cobriram o corpo de Rowena, as chamas tocaram seus botões deflorados.
Namárië, noldo que odeio por toda vida, Namarië, noldo que amo por toda noite. – despediu-se uma Rowena em chamas. Então o barco-cisne voou para as profundezas de Ulmo, descansando no leito das lágrimas dos telerin.
O solitário noldo, desesperado, correu para o mar, em vão. Salazar o teria ferido, mas Thingol o impediu “não se atinge pelas costas nem mesmo um noldo”, falou.
- ROWEEEEEEEEEEEEEEEEEEENA – jogou-se na areia molhada de pranto, era o primeiro choro do noldo destemido e o último de um infausto. – Kiredhel; que seja esta última vez que fira um elfo. Kiredhel atravessou a goela daquele que a reforjou impedindo que um "namárië" a Rowena saísse de seus lábios. Morreu assim, o noldo, vingou-se assim os telerin.
De Kiredhel, nunca mais se soube. Seus feitos nunca foram cantados, as lágrimas lhe bastava. 
Namárië, Kidherel, namárië.





Fim

 


Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.