Cap. 4
De como o A. foi passando e divagando, e em que pensava e divagava
ele, no caminho da vila de Azambuja até o famoso pinhal do mesmo
nome. — Do poeta grego e filósofo Dêmades, e do poeta e filósofo inglês
Addison, da casaca de peneiros e do pálio ateniense, e de outros
importantes assuntos em que o A. quis mostrar a sua profunda
erudição. — Discute-se a matéria gravíssima se é necessário que um
ministro de Estado seja ignorante e leigarraz. — Admiráveis reflexões de
ziguezague em que se trata de re política e de re amatoria. —
Descobre-se por fim que o A. estivera a sonhar em todo este capítulo,
pede-se ao leitor que volte a folha e passe ao seguinte.
Eu darei sempre o primeiro lugar à modéstia entre todas as belas
qualidades. Ainda sobre a inocência? Ainda sim. À inocência basta uma
falta para a perder; da modéstia só culpas graves, só crimes
verdadeiros podem privar. Um acidente, um acaso podem destruir
aquela, a esta só uma ação própria, determinada e voluntária.
Bem me lembra ainda os dois versos do poeta Dêmades que são
forte argumento de autoridade contra a minha teoria; cuidei que tinha
mais infeliz memória. Hei de pô-los aqui para que não falte a esta
grande obra das minhas Viagens o mérito da erudição, e lhe não
chamem livrinho da moda: estou resolvido a fazer minha reputação com
este livro.
De beleza e virtude é a cidadela
A inocência primeiro — e depois ela.
Mas a autoridade responde-se com autoridade, e a texto com
texto. E eu trago aqui na algibeira o meu Addison — um dos poucos
livros que não largo nunca — e atiro com o filósofo inglês ao filósofo
grego e fico triunfante: porque Addison não põe nada acima da
modéstia; e Addison, apesar da sua casaca de peneiros, é muito maior
filósofo do que foi Dêmades com a sua túnica e o seu pálido ateniense.
O erudito e amável leitor escapará desta vez a mais citações:
compre um Spectador, que é livro sem que se não pode estar, e veja
passim.
Eu gosto, bem se vê, de ir ao encontro das objeções que me
podem fazer, lembro-as eu mesmo para que depois não me digam: Ah!
Ah! vinha a ver se pegava! Não senhor, não é o meu gênero esse.
Francamente pois... eis aí o que poderão dizer: Addison foi
secretário de Estado, e então... Então o quê? Não concebem um
secretário de Estado filósofo, um ministro poeta, escritor elegante, cheio
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de graça e de talento? Não, bem vejo que não: têm a idéia fixa de que
um ministro de Estado há de ser por força algum sensaborão, malcriado
e petulante. Mas isto é nos países adiantados em que já é indiferente
para a coisa pública, em que povo nem príncipe lhes não importa já, em
que mão se entregam, a que cabeças se confiam. Em Inglaterra não é
assim, nem era assim no tempo de Addison. Fossem lá à rainha Ana(8)
que deixasse entrar no seu gabinete quatro calças de coiro sem criação
nem instrução, e não mais senão só porque este sabia jogar nos fundos,
aquele tinha boas tretas para o canvassing de umas eleições, o outro
era figura importante no Freemason’s hall!
Já se vê que em nada disso há a mínima alusão ao feliz sistema
que nos rege: estou falando de modéstia e nós vivemos em Portugal.
A modéstia, contudo, quando é excessiva e se aproxima do
acanhamento, ao que no mundo se chama falta de uso, pode ser num
homem quase defeito inteiro. Na mulher é sempre virtude, realce da
beleza às formosas, disfarce de feldade às que não o são.
Por mim, não conheço objeto mais lindo em toda a natureza, mais
feiticeiro, mais capaz de arrebatar o espírito e inflamar o coração do que
é uma jovem donzela quando a modéstia lhe faz subir o rubor às faces e
o pejo lhe carrega brandamente nas pálpebras... Pouco lume que tenho
nos olhos, pouco regular que seja o semblante, menos airosa que seja
figura, parecer-vos-á nesse momento um anjo. E anjo é a virgem
modesta, que traz no rosto debuxado sempre um céu de virtudes... De
alguma beleza sei eu cujo olhos cor da noite ou de safira (Dialec. Poet.
Vet.) cujas faces de leite e rosas, dentes de pérolas, colo de marfim,
tranças de ébano (a alusão é sortida, há onde escolher) davam larga
matéria a boas grosas de sonetos — no antigo regime dos sonetos, e
hoje inspirariam miríades de canções descabeladas e vaporosas,
choradas na harpa ou gemidas no alaúde. Contanto que não seja lira,
que é clássico, todo o instrumento, inclusivamente a bandurra, é igual
diante da lei romântica.
Ora pois, mas a tal beleza, por certo ar alamoda, certo não sei quê
de atrevido nos olhos, de deslavado na cara e de descomposto nos
ademanes, perde toda a graça e quase a própria formosura de que a
dotara a natureza.
Vede-me aqueles lábios de carmim. Há maio florido que tão lindo
botão de rosa apresente ao alvorecer da madrugada?... Mas olhai agora
como o riso da malícia lho desfolha tão feiamente numa desconcertada
risada...
Desvaneceu-se o prestígio.
Não havia moço nem velho, homem do mundo ou sábio de
gabinete que não desse metade dos seus prazeres, dos seus livros, da
sua vida por um só beijo daquela boca. Agora talvez nem repetidos
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advances lhe façam obter um namorante de profissão e ofício... E há de
pagá-lo adiantado, e por que preço!..
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Mas o que terá tudo isto com a jornada de Azambuja ao Cartaxo?
A mais íntima e verdadeira relação que é possível. É que a pensar ou a
sonhar nestas coisas fui eu todo o caminho, até me achar no meio do
pinhal da Azambuja.
Aí paramos, e acordei eu.
Sou sujeito a estas distrações, a este sonhar acordado. Que lhe
hei de eu fazer? Andando, escrevendo: sonho e ando, sonho e falo,
sonho e escrevo. Francamente me confesso de sonâmbulo, de
soníloquo, de... Não, fica melhor com seu ar de grego (hoje tenho a
bossa helênica num estado de tumescência pasmosa!); digamos
sonílogo, sonígrafo...
A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar
estas folhas, e passar o capítulo seguinte, que é outra casta de capítulo.
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