Cap.1



CAPÍTULO 1
De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra,
depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se
escrevendo estas suas viagens. Parte para Santarém. Chega ao terreiro
do Paço, embarca no vapor de Vila Nova; e o que aí lhe sucede. A
Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa. Lorde Byron e um bom
charuto. Travam-se de razões os ilhavos e os Bordas-d’Água: os da
calça larga levam a melhor.
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, (1) de
inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo —
entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a
laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de
Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até a
minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e
me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa
infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas
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viagens nem as suas impressões pois tinham muito que ver! Foi sempre
ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois
hei de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de
quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crônica.
Era uma idéia vaga; mais desejo que tenção, que eu tinha há
muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu
alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me
as instâncias de um amigo, decidem-me as tonteiras de um jornal, que
por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a
minha visita. (2).
Pois por isso mesmo vou: pronunciei-me.
São 17 deste mês de julho, ano da graça de 1843, uma Segunda
feira, dia sem nota e de boa estréia. Seis horas da manhã a dar em S.
Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço. Chego muito a horas,
envergonhei os mais madrugadores dos meus companheiros de viagem,
que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Já vou quase
no fim da praça quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma
carroça d’ancien régime: é o nosso chefe e comandante, o capitão da
empresa, o Sr. C. da T. que chega em estado.
Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último
rebate. Partimos.
Numa regata(3) de vapores o nosso barco não ganhava decerto o
prêmio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns
ístmicos ou olímpicos para esse gênero de carreiras — e se para elas
houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antiestrofes,
atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais — não cabe
nem um triste minguado epodo a este cansado corredor de Vila Nova. É
um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso
e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais
bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui e
ali, algumas raras feições se percebem, ou mais exatamente se
adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das crônicas. Da Fundição para
baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor com um
período da Dedução Cronológica, aqui e ali assoprado numa tentativa
ao grandioso do mau gosto, como alguma oitava menos rasteira do
Oriente.
Assim o povo, que tem sempre o melhor gosto e mais puro que
essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se
chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus passeios
favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as
hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior
extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo;
do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios,
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mosteiros, sítios consagrados a recordações grandes ou queridas. Que
outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado
Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido.
Já saudamos Alhandra, a toireira; Vila Franca, a que foi de Xira, e
depois da restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal
restauração caiu, como a todas as restaurações sempre sucede e há de
suceder, em ódio e execração tal que nem uma pobre vila a quis para
sobrenome.
A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se
livrar a gente de um governo de patuscos, que é o mais odioso e
engulhoso dos governos possíveis.
É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viagem
acudiu ao princípio de ponderação que ia involuntariamente fazendo a
respeito de Vila Franca.
Mas eu não tenho ódio nenhum a Vila Franca, nem a esse famoso
círio que lá foi fazer a monarquia. Era uma coisa que estava na ordem
das coisas, e que por força havia de suceder. Este necessário e
inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há de levar muito
tempo, há de ser contrastado por muita reação antes de completar-se...
No entretanto, vamos acender os nossos charutos, e deixe-mos os
precintos aristocráticos da ré; à proa, que é país de cigarro livre.
Não me lembra que Lorde Byron celebrasse nunca o prazer de
fumar a bordo. É notável o esquecimento no poeta mais embarcadiço,
mais marujo que ainda houve, e que até cantou o enjôo, a mais
prosaica e nauseante das misérias da vida! Pois num dia destes, sentir
na face e nos cabelos a brisa refrigerante que passou por cima da água
enquanto se aspiram molemente as narcóticas exalações de um bom
cigarro de Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que há
no mundo.
Fumemos!
Aqui está um campino fumando gravemente o seu cigarro de
papel, que me vai emprestar lume.
— Dou-lho eu, senhor... — acode cortesmente outra figura mui
diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os
do moçarabe ribatejano.
Acenderam-se os charutos, e atentamos mais devagar na
companhia que estávamos.
Era um efeito notável e interessante o grupo a que nos tínhamos
chegado, e destacava pitorescamente do resto dos passageiros, mistura
híbrida de trajos e feições descaracterizadas e vulgares — que abunda
nos arredores de uma grande cidade marítima e comercial. Não assim
este grupo mais separado com que fomos topar. Constava ele de uns
doze homens, cinco eram desses famosos atletas da Alhandra, que vão
todos os domingos colher o pulverem olympicum na praça de Santana, e
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que, à voz soberana e irresistível de: unha, à unha, à cernelha!...
correm a arcar com mais generosos , não mais possantes, animais que
eles, ao som das imensas palmas, e a troco dos raros pintos por que se
manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio entusiasmo das
multidões. Voltavam à sua terra os meus cinco lutadores ainda em trajo
de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da véspera.
Mas ao pé destes cinco e de altercação com eles — já direi por quê —
estavam seis ou sete homens que em tudo pareciam seus antípodas.
Em vez do calção amarelo e da jaqueta de ramagens que
caracterizavam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote
grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas. O
campino, assim como o saloio, tem o cunho da raça africana; estes são
da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil.
Ora os homens do Norte estavam disputando com os homens do
Sul: a questão fora interrompida com a nossa chegada à proa do barco.
Mas um dos ílhavos — bela e poética figura de homem — voltando-se
para nós, disse naquele seu tom acentuado.
— Ora aqui está quem há de decidir: vejam os senhores. Eles, por
agarrar um toiro, cuidam que são mais que ninguém, que não há quem
lhes chegue. E os senhores, a serem cá de Lisboa, hão de dizer que sim.
Mas nós...
— Nenhum de nós é de Lisboa: só este senhor que aqui vem
agora.
Era o C. da T. que chegava.
— Este conheço eu; este é dos nossos (bradou um homem de
forcado, assim que o viu). Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi
numa ferra, isso é verdade; mas aqui de Valada a Almerim ninguém
corre mais do que ele por sol e chuva, e há de saber o que é um boi de
lei, e o que é lidar com gado.
— Pois oiçamos lá a questão.
— Não é questão — tornou o ílhavo — mas se este senhor fidalgo
anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca
outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus! mas não foram os
campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o
fez o que é, e fez terra das areias da charneca.
— Lá isso é verdade.
— Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aos
nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoura
que a faz Deus por sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não
faz, não fazem eles, que nem sabem ter mão nesses mouchões com o
plantio das árvores: só lá por cima é que algumas têm metido, e é bem
pouco para o rio que é, e as ricas terras que lhes levam as enchentes.
Mas nos , pé no barco, pé na terra, tão depressa estamos a sachar o
milho na charneca, como vimos por aí abaixo com a vara no peito, e o
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saveiro a pegar na areia por não haver água... mas sempre labutando
pela vida...
— A força é que se fala — tornou o campino para estabelecer a
questão em terreno que lhe convinha. — A força é que se fala: um
homem do campo que se deita ali à cernelha de um toiro que uma
companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores,
pelo rabo!...
E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante. que
achou eco nos interessados circunstantes que já se tinham apinhado a
ouvir os debates.
Os ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a
consciência de sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.
Parecia a esquerda de um parlamento quando vê sumir-se no
burburinho acintoso das turbas ministeriais, as melhores frases e as
mais fortes razões dos seus oradores.
Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por
derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava,
com um gesto expressivo
expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida
aos seus antagonistas:
— Então agora como é e força, quero eu saber, e estes senhores
que digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.
— Essa agora!...
— Queríamos saber.
— É o mar.
— Pois nós que brigamos com o mar, oito a dez dias a fio numa
tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um
toiro, qual é o que tem mais força?
Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por
esta vez a oposição, e o Vouga triunfou do Tejo.

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