Como chegamos a esse ponto?



Ao entrar no conhecido dormitório vermelho e ouro, suspirou. Gostaria tanto que tivesse sido diferente. Ela pensou, ao tirar o suéter com o emblema da Grifinória e afrouxar a gravata, calçando os chinelos e procurando o seu pijama dentro do malão. Tudo seria diferente se eu tivesse realmente ido para a Sonserina. Aqueles pensamentos a fustigavam desde que tinha pisado pela primeira vez em Hogwarts. Seu melhor amigo, confidente e o único bruxo que havia conhecido antes de cruzar a plataforma 9 ¾ sempre deixara claro que não tinha dúvidas de que seria selecionado para a casa daqueles que tem linhagem antiga, chamados sangue-puros. Desde o início, sabia que ela não tinha a menor chance, já que tinha nascido em uma família não-bruxa, ou como Severus chamava, Trouxa.


E o próprio Severus tinha afirmado a ela, em uma tarde ensolarada de primavera, que não havia problema nenhum em ser nascida-trouxa.


Entrou no chuveiro do banheiro dos monitores, pedindo a Merlin que não tivesse mais ninguém ali àquela hora. Tinha postergado o banho o máximo que podia porque, ao seu modo estranho de ver as coisas, o banho era o momento que ela tinha pra ficar com ela mesma. Ali, embaixo da água quente e corrente, era não era Grifinória, não era nascida-trouxa, não era nem bruxa. Ela era apenas humana, em uma linha direta com os seus pensamentos, sentimentos e temores. Encheu a mão de xampu e passou pelos longos cabelos ruivos. Sabia que depois do fato de ter a mágica no sangue, ter os cabelos vermelhos era o fator de que Petúnia mais sentia ciúmes: enquanto Lily possuía longos cabelos vermelhos, belos, sedosos e fortes, Petúnia tinha o cabelo sem vida, quebradiço e num tom muito comum de castanho. Ela sabia que tinha tirado na loteria genética, que tinha muita sorte de possuir tudo aquilo, mas, em várias situações, toda aquela herança tinha se provado maldita.


Quando a carta de Hogwarts chegou, pelas mãos da austera Professora McGonagall, acompanhada de explicações maiores tanto sobre o que a sua filha caçula exatamente era, quanto a instituição e o que se aprendia lá, e ainda sobre todo o mundo mágico ao qual estavam prestes a serem introduzidos. Se lembrava perfeitamente de que, na manhã do dia 1 de setembro de 1971, véspera de sua estreia em Hogwarts, tinha pedido para sua mãe fazer uma trança em seus cabelos, para chegar bonita à nova escola. Petúnia, em um acesso de fúria, disse que tudo aquilo era ridículo, que ela era uma aberração, e que a trança estava feia. E sem mais nem menos, enquanto dava os últimos ajustes no malão, Petúnia apareceu em seu quarto com uma velha tesoura e, sem o mínimo aviso prévio, puxou o cabelo e o cortou, jogando os restos capilares pela janela, diante dos olhares consternados de Severus e sua mãe, que aguardavam do lado de fora da casa dos Evans, esperando por uma carona.


Enquanto calçava as meias, sentada no banco, já completamente vestida, as palavras ecoavam em sua mente.


Eu não preciso da ajuda dessa Sangue-Ruim. Dessa Sangue-Ruim. Sangue-Ruim. Sangue-Ruim. A voz desdenhosa de Severus Snape tamborilava em sua mente, fazendo o seu estômago revirar.


Ela está chateada porque você é especial e ela é comum. A lembrança de dias em que tudo era mais simples não deixou de desenhar um sorriso no rosto daquela Lily Evans que se encarava no espelho, mais velha e mais consciente das decisões que tinha tomado, há cinco anos atrás. Eu quis vir. Eu quis ser uma bruxa. Eu poderia ter ficado. Ter escolhido continuar com a minha vida. Ela assentiu ao ver o reflexo tão conhecido no espelho: cabelos longos, leves sardas pelas maçãs do rosto e os olhos, verdes como esmeraldas.


- Sabe, Lily, eu acho que não exista uma menina em toda a Sonserina que não inveje os seus olhos? – Disse Severus repentinamente, em uma ocasião em que almoçaram juntos no jardim, no segundo ou terceiro ano. Dois alunos das casas de maior rivalidade da história bruxa britânica se sentarem lado a lado para comer não era uma coisa propriamente aceita.


- Porque, Sev? – Lily não pôde deixar de rir do comentário aleatório do amigo.


- Você nunca viu uma imagem do Slytherin? – Lily balançou a cabeça negativamente. – Ele tinha os olhos verdes. Como os seus. – A menina piscou, tentando conter a expressão de confusão. – Você não entende. Lá, na Sonserina, é vital ter sangue puro. E qualquer coisa, qualquer uma mesmo, que possa os ligar ao mais importante defensor dos Sangues-Puros, já é extremamente valorizada.


- Ora, francamente! Com tanta coisa para se preocupar, como por exemplo, os testes práticos de Slughorn, e essas garotas cuidando a cor dos meus olhos. Francamente. – O garoto deu de ombros e mordiscou uma tortinha de abóbora e ela revirou os olhos.


- Você nunca vai entender. A aparência é o que importa, na minha casa. Na Corvinal, é a inteligência. Na sua querida Grifinória, - os lábios dele se incrisparam nos cantos e ela não pôde conter uma risada. – é a coragem o que interessa. Na Lufa-Lufa, só Deus sabe. Eles dizem que é a amizade e a lealdade, mas eu realmente espero que seja algo a mais do que isso. – Lily deu uma gargalhada. A Lufa-Lufa também era uma incógnita para ela. – Eu quero dizer, há quanto tempo eles não ganham um campeonato de casas ou a taça de quadribol? – Os dois se olharam por um instante e começaram a rir.


- Por Merlin, Sev! Por que tanta maldade?


- Não é maldade, é só curiosidade. Eu não entendo a Lufa-Lufa. – Ele respondeu inocentemente.


- Pois é, a professora deles é a de Herbologia. Nada contra, eu sei que é bastante útil, mas... Despropositado. – Eles riram mais uma vez, e o garoto magro de pele macilenta olhou fundo nos olhos de esmeralda de Lily.


- Eu sinto falta de você. – Ele confessou com um suspiro, e ela sorriu para ele, colocando a mão sobre o seu ombro, tentando confortá-lo.


- Não tem problema, Sev. Estamos juntos. Não me importa essa guerra de casas, toda essa rivalidade. Você foi o meu primeiro e melhor amigo, e eu nunca vou deixar você na mão. Eu nunca vou esquecer você. – Ele tomou toda a coragem do mundo e pegou a mão que não o encostava.


- Nós vamos ficar juntos até o fim, não é? Estou contando com isso. – Disse ele, com um sorriso fraco.


- Sempre. – Ela sorriu para ele e apertou a sua mão afetuosamente.


Lily se olhou no espelho de cabelo molhado e recentemente penteado, com uma aparência de que fora lambida por um hipogrifo ou algo assim, e bufou. Tinha aquele mesmo corte de cabelo desde que se lembrava por gente, a não ser pelo curto intervalo de tempo em que Petunia decepara a sua trança, porém, por efeito da raiva e da magia mal controlada, os seus cabelos cresceram quase que imediatamente, assombrando a sua malévola irmã, que assistira a tudo aterrorizada. Cansara de ter a mesma feição há quinze anos. Pegou a varinha e rezou para que fizesse certo e não cortasse nada de errado. Mentalizou um corte de cabelo que o deixaria acima dos ombros, em duas alturas e todo picotado, além disso, ganharia uma franja. Contou até três, concentrou-se no cabelo e girou a varinha em torno da própria cabeça, murmurando:


Episkey beauté. – Abriu os olhos vagarosamente e encontrou-se de cara com uma nova pessoa, com um novo rosto, emoldurado pelo cabelo que havia pedido segundos antes. Sorriu, satisfeita com resultado, até que se sobressaltou com uma presença indesejada.


- Eu gostei bastante! – A voz afinada e engasgada a assustou.


- Muito obrigada, Murta. Fico feliz que tenha lhe agradado. – Lily sorriu condenscendentemente para a garota translúcida a poucos metros dela.


- Eu gostaria de fazer algo diferente, sabe... – Respondeu Murta, passando a mão pelos cabelos castanhos. – Mas sabe como é, estou morta. – Ela começou a choramingar.


- Eu não sei se dá para fazer algo assim, em você... – Lily tentou consolá-la, por um erro que sabia não ter cometido.


- Eu sei... Ninguém se importa com a pobre Murta, morta há anos, ela já é feia mesmo, ninguém olha para ela...


- Me escute, - Lily a interrompeu, não querendo ouvir as lamúrias da fantasma. – eu vou conversar com o Professor Flitwick. Talvez ele saiba algum feitiço que funcione... em você. Então, eu volto e a gente tenta, tá bom? – A garota quase transparente deu um salto do vaso em que estava supostamente sentada e veio em direção à Lily, que se sentiu como se tivesse sido colocada em uma banheira de água gelada.


- Muito obrigada, mesmo! Vou esperar por você. – Lily não pôde deixar de sorrir e deixou o banheiro, com uma promessa que não sabia se poderia cumprir.

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