Atraso
A tolice é totalmente proporcional à sua teimosia. Não faz muito tempo que percebi isso. Refiro-me aos meus pais, na verdade. Para ser mais específica, minha mãe. Teimosa nata, ela insistia para que eu abrisse o envelope pardo. Faz muito tempo desde que ignorei a chamada de Hogwarts para estudar em um lugar desconhecido, de um remetente que nunca ouvi falar. Geralmente, recebíamos envelopes com promoções extraplanetárias de descontos imperdíveis. Quando recebi a aceitação da escola, digamos escola-internato, achei que tudo fosse realmente piada. Vou ser mais sincera, ainda penso ser piada. Enquanto abria a carta, sob os olhos excitados da minha mãe e as sobrancelhas arqueadas do meu pai, estávamos durante um café-da-manhã tranquilo de segunda-feira. Os correios geralmente entregavam a correspondência por volta das 10 da manhã, mas naquele dia recebemos aquela correspondência às 8, quando Samia ainda nem ao menos tinha chegado em casa. O horário me fez acreditar fielmente que a carta era uma promoção de 90 por cento de desconto em algo extraordinariamente caro, ao invés das de 20% a 50%.
Enfim, não fui abduzida, nem entrei em pânico quando li o que a carta dizia. Na verdade, eu ri. Muito. Nada do que estava escrito naquela carta fazia sentido. Confesso que a parte que me tocou naquele 31 de julho, há 8 anos, foi o fato de parecer real. Meus pais ficaram orgulhosíssimos de ter sua única filha como “bolsista”, ou seja lá o que “ser aceita” significa, aos 11 anos. Contaram-me algumas histórias de amigos que também tiveram filhos que foram convidados a estudar em Hogwarts, porém nada mencionaram a mim até aquele dia porque recearam que eu ficasse desapontada por não ser... bem, não ser uma bruxa escolhida, ou algo assim. Ficaram incrédulos por um instante por causa do tipo de escola na qual eu fora aceita. Mas nada os fez desanimar ou perder a fé de que aquilo era real. Fui eu quem andou na contramão da casa. Pode-se dizer que fui teimosa como minha mãe. E realmente não aceitei a lorota de ter recebido uma carta do além, sobre minha aceitação numa escola de magia e bruxaria. Depois de ler o conteúdo da carta, minha mãe exclamava de alegria, com os olhos marejados e nariz avermelhado. Meu pai me abraçava como se fosse meu aniversário, e dizia que se orgulhava de mim. Minha expressão estava entre indiferença e constrangimento. Não se pode achar normal que seus pais ajam dessa maneira quanto à um envelope de um desconhecido.
Passados esses anos, eu confesso que ainda estou meio aflita ao lembrar dessa história. Não diria que é arrependimento, nem remoço. Mas acho que, se eu tivesse ido, teria encontrado explicação para muitas coisas que aconteceram comigo desde quando me entendo como ser humano. Escolhi ficar porque sempre fui personificada pela ideia de que nossas escolhas do presente são o início do nosso futuro. Ou quem sabe escolhi ficar por medo. Entretanto, minha curiosidade sobre as coisas sempre falou mais alto.
Antes de decepcionar meus pais (“COMO ASSIM você não quer ir?!”, ainda lembro do tom de voz da minha mãe) e fazê-los não contar a ninguém a respeito de magia e o que eu supostamente seria segundo ditava aquela carta, eu senti, mesmo sem acreditar no que ela dizia, deveria saber do que aquilo se tratava. Encontrei muitas respostas no mundo real, ou, como encontrei em um livro da biblioteca central, o "mundo trouxa", seja lá o que isto quer dizer, mas algumas respostas ainda eram limitadas na época. Ouvi falar de vários termos que até hoje não entendo muito bem do que se tratam! Coisas como “aparatação”, “immobilus” ou “pomo-de-ouro” ainda não fazem sentido para mim, mesmo para alguém como eu que estuda relações internacionais e já leu milhares de coisas bizarras que acontecem mundo afora. E é isso que me frustra muito, em todos esses anos. Pesquisei no banco de dados dos correios para investigar o remetente, mas não havia nada que me levasse a alguma resposta. Se houvesse algo anormal a associar àquela carta era o fato de encontrar sempre uma coruja cinzenta perto da minha janela, ao longo do dia, ao sair para aula da manhã, no meu novo colégio da época de infância, e até quando eu chegava, ainda estava lá a pobre ave. Tentei alimentá-la, mas ela guinchava e ia embora. Então eu deixei para lá, não é?
Bom, o que me fez querer voltar no tempo recentemente foi o fato de que, depois de ficar tanto tempo sem respostas, e vendo que não tinha nada mesmo a perder, inventei uma desculpa a mim mesma, convencendo-me de que iria à estação de King’s Cross apenas para tomar um cappuccino (creio eu, não há outro semelhante no universo, os cappuccinos de Londres são incríveis) reuni coragem e me aventurei pelo mistério escondido pela carta. Eu sei, deve ser estranho ter repugnado a carta com tanto fervor e depois confessar que guardei o envelope e seu conteúdo em um bauzinho onde preservo minhas lembranças mais marcantes, o que neste caso faz muito sentido. Eu deveria estar quinze minutos antes do trem partir, na plataforma 9 ½.
Antes de chegar àquele lugar, eu sentei em uma das cadeiras espalhadas no portão de embarque e analisei minuciosamente em que raios estaria a plataforma 9 ½. “Que inferno!” não pude evitar esse pensamento, “ONDE estaria essa plataforma?! Ela NÃO EXISTE, eu sabia que era algum tipo de trote! Se eu soubesse quem foram os responsáveis...”, mas no instante em que eu maquinava o que eu poderia elaborar para punir os “malfeitores”, três rapazes e uma jovem passaram pela minha direita, esbarrando na bolsa que eu deixei displicentemente no chão e na qual apoiava meu cotovelo. O pequeno esbarrão teve seu grande preço: uma poça de cappuccino, um oxford melado de creme de baunilha, uma bolsa aberta que esparramava seu conteúdo pelo chão e uma garota de 19 anos à flor-da-pele.
- Droga! – Talvez eu tenha dito algo feio também, mas não me lembro muito bem das coisas quando as faço com raiva. Fui obrigada a me levantar devido o líquido que havia sido entornado no meu sapato – Que horas são? – perguntei para qualquer um que ouvisse minha indignação diante daquilo.
Antes de sair de casa, não imaginava passar por tal constrangimento. Se houvesse neste mundo a possibilidade de saber do futuro, eu seria a primeira a me candidatar para compreender este karma que às vezes me acompanha. Olhando em volta rapidamente, lancei um olhar penetrante à jovem mulher que acompanhava aquele grupo. Quase ao mesmo tempo, dois dos três rapazes tentavam pegar minha bolsa do chão e colocavam seu conteúdo no lugar devido com a mesma delicadeza que King Kong batia no seu peito. Organizaram tudo rapidamente e, simultâneo a isto, andavam em direção à uma das plataformas, enquanto um deles permanecia de braços cruzados, apreciando a situação. Ou ele estava apenas constrangido também?
- Que horas são, por favor? – Dei bastante ênfase ao por favor, pois estava realmente brava. Não porque tivesse sido algo extremamente frustrante ter ido à estação, ou o fato de ter minhas coisas espalhadas no chão, ou pelo fato de ter um rapaz que não ajudou em nada aparentar estar satisfeito pela confusão. Estava brava de não encontrar nada significante que me desse respostas quanto à Plataforma 9 ½ ou qualquer pista sobre minhas perguntas.
- Pelo amor de Deus, porque vocês precisam ser assim? – a jovem não parecia estar realmente os repreendendo, mas estava zombando dos rapazes certamente. Com o olhar extremamente penoso pela atenção chamada por toda a situação, a jovem apenas sacudiu os cabelos para arrumá-los e estendeu seu pulso a fim de verificar o relógio rapidamente – Eu sinto muito pelo seu transtorno. – Ela disse apressadamente - Quero dizer, nós sentimos muito – Lançando um olhar significativo aos três rapazes. E demoradamente ao que estava de braços cruzados – Estamos com um pouco de pressa... Ah, onde posso conseguir uma bebida dessas para você?
- Não se preocupe com isso – eu disse um pouco exasperada, dando um forte nó do cadarço do meu sapato. Peguei minha bolsa que estava estendida na minha cadeira e, instintivamente, dei um largo passo para trás, esbarrando no rapaz alto que havia ajudado a pegar minhas coisas. O chão estava limpo.
- Ah... Algum de vocês pode me dizer que horas são? Acho que estamos atrasados... – continuou a jovem ruiva em direção ao rapaz de óculos remendados – Não podemos perder a cerimônia de abertura.
- Não vamos perder a abertura, Gina! Já estamos próximos à plataforma. Faltam exatos... – Ele olhou em volta e parou abruptamente no grande relógio da torre central da estação. – Faltam exatos 6 minutos para perdermos o Expresso e... Ai!
- Já entendemos que faltam 6 minutos para o trem partir, Harry. – A jovem disse-lhe com um nada-discreto beliscão.
- Tudo bem, vocês aprontaram o que tinham que aprontar. Agora temos de ir logo. – O rapaz alto que estava de braços cruzados tinha uma voz grave, mas apropriada para o tamanho dele. Era engraçado perceber que ele tinha um jeito meio desengonçado de apressar seus companheiros. Embora fosse o mais alto dos três rapazes, ele não esboçava qualquer superioridade ante eles. Todos tinham um aspecto diferente dos demais adultos da estação. Muito embora fossem claramente seres humanos, não pareciam se importar muito com os ares do momento, de maneira que mostravam-se realmente serem estrangeiros ou alheios ao vai-e-vem de King’s Cross.
- Esperem um instante! Onde eu coloquei minha varin... Er, quero dizer, onde está minha caneta?! – Um dos rapazes que ajudou a pegar minha bolsa procurava algo nos bolsos freneticamente. Não sabendo mais onde procurar, mudou de seu aspecto branco-vela para um tom azulado.
- Neville! Qual é seu problema?! Temos exatos dois minutos para ir à plataforma 9 ½, sua var... Caneta já era! Consiga outra no Olivaras. Vamos logo! – exclamou a jovem. Ela certamente tinha um tom autoritário. Mas seu rosto era tão delicado que dificilmente alguém se magoaria em receber ordens suas. Aparentemente.
Mas ao ver todo o desenrolar da situação, meus olhos brilharam ao ouvir Expresso, trem e plataforma 9 ½ e que sem dúvida significavam muita coisa. Não poderia deixar essa oportunidade desaparecer como meu próprio cappuccino que há cinco minutos tinha se despedido espalhado pelo chão. Minha curiosidade se manifestou tão logo ouvia cada segundo daquela conversa. Sem entender o porquê, e quase em arrependimento, tomei a segunda decisão mais sensata – ou não – da minha vida.
- Ei! Esperem um segundo! – Não foi exatamente um grito. Na minha concepção, apenar falei “alto” – Eu vou com vocês!
- Como? – falou a jovem, meio incrédula.
- Eu vou com vocês. É que... Me perdi do meu grupo... e... – Eu sempre fui uma péssima mentirosa. Mas não poderia perder tal oportunidade. Precisava saber do que eles estavam falando. Além disso, depositei todo o meu poder de persuasão na vontade de entender do que aquela carta há anos atrás significava. Mesmo não acreditando que eu poderia ser quem diziam que eu era. – Vamos imediatamente para a plataforma, ou perderemos o Expresso e...
- Perdoe-nos, mas... Quem é você? – o rapaz de óculos remendado parecia curioso. Ele colocou uma mão no bolso e descançou em uma das pernas, relaxadamente. Enquanto ele me analisava com suas duas órbitas verdes e brilhantes eu tentava manter a calma e continuar com ar confiante. Eu temia que ele fosse mais esperto do que parecia ser. E ele era. – Por acaso você sabe que passaremos meses lá, não é?
“Não te interessa quem sou e não sabia que iam ficar meses longe. E para onde vocês estão indo?”. Era o que eu desejava realmente dizer. Depois de me equilibrar entre o lado do meu sapato ensopado de cappuccino e o outro lado seco, notei as enormes malas que eles carregavam. Cada um puxava rodinhas e traziam consigo um emblema. Este, o pouco tempo de atenção só me permitiu ver o que significava. Reconheci o emblema imediatamente.
- Ah, perdoem-me. Sou Granger, Hermione Granger. Tenho algo que pode esclarecer a vocês o que eu estou fazendo aqui...
- Inferno! Perdemos o trem! São nove e um! Eu sabia que ela iria fazer a gente se atrasar! E agora?! Como chegaremos a Hogwarts a tempo para a cerimônia?! – O garoto mais alto se revelou extremamente grosseiro, além de cínico. Seu rosto se tornou tão vermelho quanto os fios de cabelo que caiam teimosos na sua testa contraída de aborrecimento – Tudo porque ela não presta atenção onde põe as coisas dela! Droga! Temos que ir agora, mas não podemos comentar nada com a Sra. Weasley, ou ela vai me colocar para dormir com o Perebas! Deixem-na aí e vamos embora agora. - Antes, poderia até tachá-lo como simpático. Naquele momento minha revolta foi aberta com uma retro-escavadeira e nada iria fechar isto.
- Eu NÃO coloquei minha bolsa de propósito para atrasar sua vida, MOCINHO! – Ele pareceu indiferente, até chamá-lo de “mocinho” – E não ouse se referir a mim como uma desconhecida curiosa – que afinal era o que eu era - a se aventurar com um grupo de estranhos – que era o que eles eram – quando eu realmente preciso de respostas! – Distraída, apontei involuntariamente para ele e o ignorei no segundo seguinte, voltando minha postura a quem eles se referiram a Gina – Desculpe-me. Recebi isto há nove anos e gostaria de saber do que se trata.
Talvez porque já estivessem atrasados, eles deixaram a agitação e permaneceram impactados ao mirar a carta amarelada pelo tempo. Tomei o cuidado de conservá-la, para eventos como este. Eu senti que a partir daquele momento eu não precisaria mais me constranger devido às coisas esquisitas que me aconteciam. Os quatro seguiam os olhos da carta a mim, e fitavam novamente a carta, meio risonhos, meio incompreensíveis. Alguns segundos depois, eles se convenceram de que eu não era uma desconhecida qualquer. Percebi isso muito claramente quando Gina me estendeu a mão.
- COMO você conseguiu sobreviver todos estes anos?! – ela disse tão logo deixou a carta na mão do rapaz com os óculos remendados – COMO você pôde recusar ir para Hogwarts? – Dizendo esta última palavra quase como um sussurro. – Você sabia que as coisas não acontecem da mesma maneira duas vezes? Tudo poderia ser diferente se você tivesse ido estudar conosco. Quem sabe fôssemos amigos há anos! – Gina andava de um lado para o outro, entre frustração, pelo fato de alguém ter-se recusado estudar em Hogwarts, e profunda, pela tentativa de me ajudar de algum jeito. – Vamos Granger. Você irá conosco.
- Gina, o que você está fazendo? – Harry mencionou sua opinião, mas sequer deu o trabalho de ser convincente. - Sei que todos são bem-vindos n’A Toca, mas não é esperar muito da Sra. Weasley? Podemos esclarecer algumas coisas a ela antes de irmos – Ele acrescentou simpático, como se ele quisesse ser tratado desta maneira, no meu lugar. Talvez ele quisesse ajudar de qualquer forma, sendo verdadeiro.
- Não podemos mais perder tempo, vamos logo antes que percamos a cerimônia. Até A Toca é um longo caminho de King’s Cross. – Disse o rapaz que ainda remexia seus bolsos a procura de uma caneta.
- Eu não me responsabilizarei por ela, Harry. Acho que será uma péssima ideia... – Só pude ouvir os cochichos do rapaz ruivo. Na verdade, naquele momento nada me agradaria mais do que descobrir do que ser tratava a carta... Comecei a revirar minha bolsa a procura de coisas que pudessem me desligar de casa... Confirmar que sou mesmo o que Hogwarts diz que sou... Enviando um sms aos meus pais dizendo que estava tudo bem e desligando o celular logo em seguida... E lembrar-me de tudo o que li nos livros da biblioteca central... Estando agora eu junto àquele grupo... Especificamente das palavras em latim... Agora andando em direção a uma cabine telefônica... O que é isso na minha bolsa? Não é meu. Parece uma... A palavra com certeza é... – IMMOBILUS!
Então tudo se deu tão rápido quanto estar em uma confusão com cappuccino e estar em seguida com um grupo de desconhecidos apontando para mim suas varinhas. A cena se resumia em um garoto ruivo paralisado, imóvel, a minha frente, e eu, aterrorizada, com minhas mãos frias e trêmulas, segurando uma varinha. Naquele momento eu compreendi muita coisa. Mas acima de tudo, eu compreendi que jamais poderia pensar tão alto novamente.
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