Fazendo Contato



O professor continuou imóvel ao retirar sua face da penseira. Ele olhava a sala com curiosidade e girava a varinha entre os dedos com paciência, demonstrando sossego emocional ou, realmente, seu oposto. Sem os óculos de meia-lua ele parecia mais jovem, embora seus olhos precisassem se enrugar muito para enxergar ao longe.


Longos minutos se passaram sem que Dumbledore mexesse um músculo além dos dedos finos nos quais a varinha continuava a rodar. Ele estava tomado por pensamentos, como fazia na maioria de seu tempo. Mas desta vez as lembranças eram de um passado sombrio, que, por alguns meses, ele preferira esquecer, e que agora retornava como um inferi, algo sem vida, sem luz.


Envolto nos fatos de suas lembranças, o bruxo demorou a levantar-se da cadeira que deixara nas primeiras horas da manhã naquele mesmo dia. Somente quando o relógio na parede oposta bateu meia-noite e uma chuva pesada começou a cair sobre os vitrais coloridos da janela foi que ele se mexeu.


Dumbledore pegou a penseira com uma das mãos compridas, refletindo se deveria ou não mergulhar mais uma vez no seu conteúdo. Decidiu-se que não, que já era bem tarde, e o dia seguinte seria exaustivamente longo. Então, caminhou até o armário à sua frente e depositou o objeto em seu interior, iluminando-o com a luz curiosa de sempre. Cansado demais para continuar a ler o artigo que iniciara na manhã daquele dia, o professor apenas tomou um pequeno gole de hidromel e caminhou em direção a seus aposentos.


Porém a noite de descanso pela qual Alvo aspirava não poderia ter sido pior. Sonhos nefastos margearam-no na calada da noite, onde um garoto de cabelos loiros cacheados repunha o capuz negro e saía às ruas disparando explosões verdes para todos os lados. Pessoas caíam nas calçadas, outras gemiam, implorando pela morte, se contorciam num esforço vão de vencer as maldições lançadas pelo bruxo.


Esses sonhos iam e vinham. Em outros, Alvo entrava pela porta da frente de sua casa e encontrava dezenas de pessoas na sala de estar. Um corpo inerte no chão era agarrado pelo irmão. As pessoas apontavam para ele, e berravam monstruosidades. Algumas o xingavam, enquanto outras se limitavam em apontar e berrar coisas como: “ A culpa foi sua, toda sua...!”.  No final da fila de pessoas o rapaz de cabelos loiros esperava e sussurrava a todo o momento: “Não precisava ser assim! Foi você quem quis que acontecesse deste jeito...”


Iluminado pelos primeiros raios de sol que despontavam no horizonte, Dumbledore despertou ofegante, suando como nunca antes e com a expressão de uma criança amedrontada. A cena era de dar dó. Um homem sozinho naquele quarto escurecido, derramando lágrimas que se confundiam com o seu suor, e tomado pelo horror de um passado não tão distante.


O bruxo permaneceu imóvel, seus belos olhos azuis estatelados demonstrando o horror dos pesadelos pelos quais acabara de passar, lampejos de uma história marcada por perdas e desilusões. Sob as cobertas, Dumbledore terminara de assimilar os últimos acontecimentos do sonho, comparando-os com a dura realidade pela qual passava o mundo mágico. Ele hesitou por alguns momentos até levantar-se e calçar os chinelos de couro.


Vagarosamente o professor se espreguiçou antes de caminhar entre a mobília lustrosa do quarto até o lavatório alguns metros a sua frente. O mago encheu suas mãos de água e levou-as até o rosto, tentando retirar as marcas daquela noite sombria.


Dumbledore, após vestir-se com suas roupas extravagantemente esplêndidas, bordadas com formas lunares e estrelas, olhou para os jardins ainda escuros pela janela de seu quarto desarrumado. Desajeitadamente, Alvo caiu novamente sobre a cama apoiando os cotovelos sobre os joelhos e mirando a luz do sol avançando serenamente pelas montanhas distantes. O bruxo parou por alguns momentos apenas brincando com as estrelas em sua roupa, agitando a varinha e fazendo-as formar belíssimas constelações. Mas no fundo, pode ser que ninguém percebesse se visse a cena do alto, Dumbledore pensava, e pensava muito.


E manteve-se ali, inerte, apenas pensando. Então, num repente, ele levantou-se decidido, girou a varinha e pronunciou um encantamento. Num segundo as colchas e travesseiros se ergueram no ar e caíram suavemente sob os lençóis já alinhados. Assim, enquanto Dumbledore partia marchando para seu escritório, o quarto estava perfeitamente limpo e organizado.


Dumbledore parecia ter pressa pois nem percebeu que alguns de seus doces estavam sendo devorados por ratos raivosamente gulosos. Ele seguiu até a cadeira rígida por trás da escrivaninha de trabalho e puxou alguns pergaminhos e um frasco de tinta.  Debruçando-se sobre os papéis, se pôs a escrever desesperadamente.


 


Caro Gerardo,


 


Sua experiência distorcida de nosso plano inicial tem, infelizmente, alcançado um patamar assustadoramente cruel.  Os avanços de sua, devo admitir, mirabolante estratégia de alcançar o poder tem se desenhado de forma sombria em todo mundo. Por isso devo alertá-lo.


Seus planos têm extrapolados limites que nunca antes haviam sido rompidos. O mundo quer sua cabeça Gerardo e creio que, com a dedicação dos ministérios, você não gozará de muitos anos mais de liberdade.


Peço-lhe que repense seus métodos, pois assassinar trouxas não é uma maneira nem limpa nem muito honesta de formar aquilo que chamávamos de uma sociedade mais justas para os bruxos. A cada dia você se distancia mais do ideal do bem maior, que abrangeria todos, e não segregaria ou exterminaria trouxas, e, na significação literal da palavra, você falha ao dirigir idéias que antes eram tão belas e moralistas.


Espero fazer-lhe refletir sobre tudo isso.


Cordialmente,


 


Alvo


 Ao terminarem de escrever o pequeno bilhete, as mãos frágeis do professor mantiveram a pena firme entre os dedos como se ele quisesse ainda continuar a mensagem que se arrastara tão dificilmente até as últimas letras. Dumbledore mirava o papel meticulosamente enfeitado com traços vermelhos e relia cuidadosamente todas as palavras, procurando qualquer sentimentalismo extremado que pudesse despertar em Grindelwald seu típico egocentrismo.


Após correr os olhos infinitas vezes pelas letrinhas finas, Dumbledore ergueu-se da mesma forma decidida com que chegara ali, dobrou a carta com cuidado sobre a escrivaninha e selou-a com seu brasão particular onde se liam as iniciais A.D. circundadas por runas misteriosas que, a olho nu, representavam apenas meros ornamentos. De forma ágil o professor abriu uma gaveta próxima e cortou um pedaço da fita escarlate que havia em seu interior. Acenando com a varinha fez a fita prender-se numa simplicidade surpreendentemente elegante à carta. Girando mais uma vez a varinha, a escrivaninha se arrumou numa velocidade tão grande que seria inútil tentar falar “quadribol” antes que os livros terminassem de se empilhar. Com a mensagem pronta, Dumbledore meteu o pequeno pergaminho no bolso das vestes e saiu rapidamente, fechando a porta silenciosamente.


Os corredores da escola estavam silenciosos pois àquela hora nem mesmo os mais dedicados alunos estavam de pé. Os vitrais estavam apagados, mortos, refletindo as sombras da madrugada. Os passos de Dumbledore ecoavam pelo castelo, produzindo o único som abafado em toda volta, confundido apenas com o farfalhar de suas vestes arranhando o chão áspero.  


Num instante Dumbledore alcançou as escadarias de mármore que levavam ao saguão de entrada ainda iluminado pelas tochas remanescentes da noite anterior. Ali o barulho de seus passos misturava-se aos roncos dos integrantes dos numerosos quadros que pendiam das paredes, caídos num sono abruptamente pesado. Mesmo contrafeito, Dumbledore riu-se do retrato de uma enorme senhora gorda que dormia sobre uma mesa repleta de garrafas vazias de conhaque. A embriaguez já conhecida da Mulher Gorda era evidenciada pela presença da amiga Violeta que, já desperta, cantarolava baixinho uma canção da mais remota melancolia.


Dumbledore terminou de descer os degraus quando Violeta soltava a última nota e caía desfalecida sobre as garrafas. A visibilidade nos jardins melhorava um pouco, facilitando os passos do professor no terreno íngrime que levava ao corujal. As tábuas da ponte de madeira nem mesmo rangeram sob o peso do Dumbledore, que continuava com passos firmes o trajeto.


Os degraus de pedra da torre circular que servia de morada às corujas da escola estavam levemente molhados, sendo eu por algumas vezes o professor precisou se segurar nos corrimões para não escorregar feio na pedra fria. A brisa da manhã batia com maior intensidade nas paredes à medida que Dumbledore seguia seu caminho. Sentia um agradável frescor quando alcançou o topo da torre e ele sentiu-se aconchegado em fechar-se juntos às corujas que acabavam de voltar da caçada noturna.


Que aves intrigantes são as corujas, que sabedoria ímpar elas têm. Dumbledore sempre reconhecera a grandiosidade desses animais e encontrava-se agora admirado com a serenidade do início de seu sono.


Algumas aves no topo do corujal ainda piavam alto e comiam os restos da caça, normalmente frutas e pequenos roedores, que traziam da floresta próxima. Outras corujas já se aconchegavam nos nichos da parede, fechando suas pesadas pálpebras,


Dumbledore não quis importunar o sono leve das mensageiras. Subiu, então, até o topo da torre, passando por aves que arregalavam os olhos já enormes para ele num gesto até mesmo ameaçador. Por vezes o professor parava e acariciava um ou outro animal, deslizando os dedos finos entre as penas. E assim ele seguiu pela escada espiralada, admirando a beleza e a elegância das aves até chegar ao último andar.


No final dos patamares circulares rodeados por nichos, Dumbledore se deparou com as belas aves de todo corujal. É preciso que se ressalte a soberania das corujas de Hogwarts: tinham porte diferente, impunham-se com maior destreza, animais fascinantemente incríveis. Aquelas corujas pareciam donas do lugar. Do ponto mais alto, piavam, fazendo uma enorme festa. Mas voltemos a Alvo.


O professor olhava curiosamente para os animais escandalosos nos nichos como se quisesse avaliá-los para uma tarefa exaustiva. Os olhos de Alvo mediam as corujas cuidadosamente, revendo seu tamanho (enorme, diga-se de passagem) e suas condições gerais para a missão que estava prestes a destiná-los. Por fim caminhou na direção de uma bela coruja das torres próxima à única janela daquela parte do prédio.


A coruja mirava Dumbledore duvidosa, com um olhar suplicante para que não lhe tirasse o seu longo e tranqüilo dia de sono. Mas a situação era urgente, urgentíssima. O professor, então, estendeu o braço para que o animal se aproximasse. Contrafeita, a coruja retirou-se do fundo de sua caverna e se aproximou lerdamente da borda, onde, com certo tédio, esticou a perna frágil para o homem à sua frente.


Dumbledore sorria gentilmente para a ave quando amarrou a fita escarlate da carta à pata do animal, que não reclamou nem um pouco do peso medíocre do volume. Com seus olhos em ressaca, a aves apenas esperava o comando do professor. Alvo, finalmente, fez a coruja subir em seu braço rijamente posicionado e caminhou em direção à janela. Então, sussurrando ao ouvido da ave, disse:


- Leve-a até Gerardo Grindelwald.


A voz do professor tremeu ao pronunciar aquele nome, não por temor a ele, mas pelo que qualquer pessoa pensaria ao vê-lo trocar mensagens com o velho amigo.


Suavemente, Dumbledore impulsionou a coruja em direção ao céu que começava a deixar o tom cinzento para um azul bem vibrante, prometendo um belo dia de sol. A ave mergulhou antes de retomar a altitude e continuar avançando para as montanhas distantes, suas asas curtas revezando entre as batidas. O professor acompanhou o percurso do animal sobre a floresta, onde as árvores mais altas sacudiam suas folhas enormes, até que ela se tornasse um pontinho no horizonte e desaparecesse de vista onde o sol, por fim, raiava.


 


 


 


O grande salão estava terminantemente vazio no momento em que Dumbledore pôs o pé no saguão da escola. Muitos quadros já despertavam e a Mulher Gorda havia, enfim, retornado a seu posto na torre da Grifinória. O professor tinha fome àquela altura, pois se levantara muito cedo. Seguiu, então, na direção da cozinha, tentando encontrar algo que lhe forrasse o estômago.


Era um ambiente aconchegante, a cozinha. Poucos estudantes haviam desfrutado daquela parte oculta do castelo. Mesmo naquelas horas da manhã, os elfos já estavam inquietos preparando a primeira refeição do dia. Corriam de um lado para outro tirando tabuleiros repletos de bolinhos dos fornos ou mexendo as fatias de bacon que pulavam das frigideiras. Suas perninhas pareciam incansáveis.


Dumbledore parou à porta do ambiente, apreciando o trabalho dos elfos. Pareciam não notar a presença do homem, pois comprometiam-se em grande escala com o trabalho, os elfos. Demorou alguns segundos até que alguns daqueles grandes olhos mirassem o professor ali parado: era uma elfa relativamente velha, com tufos saindo das orelhas enormes. Ela deu um saltinho e soltou um grunhido ao ver Dumbledore. Saiu, então, correndo em sua direção.


- Oh, professor, professor, perdoe Daly! Daly é uma elfa muito má. É tudo culpa de Daly professor. Foi Daly quem atrasou o café! Perdoe Daly, professor – os olhos da elfa, agora, enchiam-se de lágrimas.


- Acalme-se Daly, acalme-se – disse Dumbledore em sua voz serena – O café não está nem um pouco atrasado, minha velha amiga, e você não é uma elfa má. Só me adiantei um pouco, perdi o sono cedo demais.


Daly, dessa vez, olhava para Dumbledore com um risinho nos lábios, retribuído pelo sorriso rotineiro do mestre.


- Não quero importuná-la, Daly, mas será que poderia me arranjar alguns bolinhos de caldeirão e uma jarra de suco de abóbora? Como disse, meu dia começou cedo demais.


- É claro, professor Dumbledore. Daly vai pegar tudo que o professor precisa. Daly já volta, professor! Daly já volta! – e saiu correndo novamente pela cozinha.


Dentro de um minuto Dumbledore estava subindo as escadas de volta ao Grande Salão levando duas bandejas carregadas de coxas de frango, bolos de caldeirão, tortinhas de abóbora, bacon, suco de abóbora e um milhão de coisas mais, que, segundo Daly, deveria comer para ficar mais corado.


O professor chegou depressa ao Salão. Alguns estudantes corriam aos jardins para pegar o primeiro tempo de Trato às Criaturas Mágicas. Dumbledore, porém, sentou-se sozinho na mesa dos professores, olhando as quatro outras mesas onde, mais tarde, estariam os alunos das respectivas casas copiando as últimas tarefas e comendo as delícias preparadas pelos elfos lá embaixo.


O silêncio do castelo feria seus ouvidos. Dumbledore preferia estar dormindo àquela hora. Mas tudo ali era real. O sol invadia os vitrais e os primeiros pássaros alegravam a manhã. Porém ele estava sozinho, mais uma vez, e nunca se sentira tão mal.

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