Harry
Melhor do que estar vivo é poder viver mergulhado numa paixão todos os dias. Não existe céu azul, mar, brisa ou montanhas que superem - em nenhum segundo sequer - o momento mais simples de um sonho realizado.
- trexo de O 3º Travesseiro
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Tiago Potter havia acabado de desaparatar na frente da casa. Ventava uma brisa quente, típica do verão, e as nuvens se acumulavam no céu prenunciando uma tempestade. Estava ansioso para ver a esposa. Se irritara muito ao saber que ia ter que sair da cidade na última semana. Não gostava da idéia de deixar Lílian sozinha quando ela estava no estágio final da gravidez. Andava irritadiça e impaciente, reclamava o tempo todo de dor nas costas e ia ao banheiro umas trinta vezes por dia. Já estava em casa há duas semanas, após muita insistência do marido para que ela desse uma pausa nas atividades da Ordem.
Subiu o pequeno lance de degraus que separava a calçada da porta e teve um péssimo pressentimento quando percebeu que estava aberta. Sentindo o estômago embrulhar, Tiago entrou na casa e encontrou a sala na mais perfeita ordem, como Lílian fazia questão de deixá-la. Sem fazer barulho, subiu as escadas até o quarto do casal - esse, sim, estava uma verdadeira bagunça. As gavetas da cômoda estavam reviradas, as portas do armário abertas e várias roupas se acumulavam no chão e em cima da cama. Confuso, ele desceu em direção à cozinha. O café da manhã estava servido na mesa, intocado. Então encontrou um bilhete pregado na porta do armário escrito na letra redonda de Marlene Mckinnon.
Nos encontre no St. Mungos.
Sentindo uma zoeira estranha tomando conta dos ouvidos, Tiago saiu de casa e aparatou imediatamente para o hall do hospital bruxo, temendo pelo que podia ter acontecido com Lílian. Encontrou Marlene sentada calmamente numa cadeira, vestindo uma capa violeta. Ele se aproximou dela com as piores possibilidades tomando forma em sua cabeça.
- Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu - respondeu ela, séria. - Li está chateada com você.
- Chateada comigo?
- Sim, porque você está aqui falando comigo ao invés de ir ver a mãe do seu filho.
Ela sorriu ao ver Tiago disparar pelo corredor em direção à maternidade.
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A porta do quarto indicado pela enfermeira estava apenas encostada. Sem fazer barulho, Tiago entrou e encontrou Lílian olhando para a janela, sentada na cama, de costas para ele, vestindo uma camisola branca, os cabelos avermelhados espalhados pelos ombros. Furtuivamente, ele se aproximou e cobriu os olhos da esposa com as mãos.
- Está atrasado - disse ela, tirando as mãos dele de seus olhos. Ele a abraçou por trás e ela passou a mão, carinhosamente, pelos cabelos rebeldes dele, levantando o rosto para que Tiago pudesse beijá-la.
Ele fitou seu rosto. Estava pálida, cansada, mas definitivamente feliz. Ainda era aquela mesma menina por quem se apaixonara em Hogwarts, um pouco mais velha, mais alta e mais bonita, mas essencialmente a mesma. E ele ainda a amava da mesma forma, agora ainda mais que naquela época de criança.
Ficaram ali abraçados por um longo tempo, observando um grupo de crianças que corria pelo jardim do hospital.
- Com licença - uma enfermeira entrou no quarto com um pequeno embrulhinho nos braços. Lílian recebeu o bebê meio sem jeito, afinal, era tão pequenininho, parecia que ia se quebrar ao menor toque.
A enfermeira sorriu e deixou o quarto, voltando um minuto depois conduzindo pelo braço uma anciã. A velha estava envolta em um xale azul-miosótis, que contrastava com as vestes cinzentas extremamente surradas. Uma rala cascata prateada se pronunciava para fora do xale, ocultando-lhe parcialmente as feições enrugadas. Mesmo com apoio, ela avançava lentamente e seus passos curtos denunciavam cansaço de uma vida longa demais.
- Madame Cigfolla veio predizer o futuro do pequeno Potter - falou a enfermeira, o largo sorriso ainda se destacando nas feições finas.
Lílian olhou curiosa para Tiago, que meramente deu de ombros murmurando:
- É um costume entre bruxos ter videntes nas maternidades.
A velha senhora soltou o braço da enfermeira e avançou mancando para perto da cama de Lílian.
- Ah, então é você?! - exclamou, assim que seus olhos fitaram de perto a face rosada do bebê adormecido nos braços da mãe.
- O que foi? - perguntou Tiago, divertido. Quase podia se sentir de volta às aulas de Adivinhação em Hogwarts em que ele, Remo, Sírius e Pedro se divertiam prevendo mortes horríveis uns para os outros sob os olhares reprovadores da professora.
- Já vi o seu rosto numa visão, pequenino - murmurou a velha, como se não tivesse ouvido a pergunta do outro, se curvando sobre a cama para observar o bebê mais de perto. Harry estremeceu por um instante e abriu os olhos vivamente verdes, encarando a mulher como se tentasse compreender-lhe as palavras. - Estou contente por lhe dar boas vindas.
- Você viu Harry numa visão? - perguntou Lílian, sua voz tremendo levemente. Ela não estava se divertindo tanto quanto Tiago, suas experiências reais com adivinhações eram bem mais que simples brincadeiras.
- Harry? É um bonito nome.
- Você viu Harry em uma visão?! - insistiu Lílian. Tiago olhou para a esposa confuso e lhe segurou a mão com firmeza, pensando se tinha sido uma boa idéia encarar aquilo como piada.
- Vai querer ouvir o que os céus predizem para ele ou não? - perguntou a velha, se erguendo ao máximo que sua coluna encurvada permitia.
Tiago olhou para Lílian com cautela, esperando que ela recusasse, mas a ruiva simplesmente acomodou o bebê junto ao ombro e falou com muita firmeza:
- Sim.
- No céu o Sol está em Leão - começou a bruxa. - É um signo positivo, de Fogo, governado pelo Sol - à medida que as palavras ecoavam, sua expressão adquiria uma luminosidade estranha, ao mesmo tempo em que seu porte se tornava altivo e forte, sem que, no entanto, ela deixasse de parecer enrugada e torta. - A criança nascida no último dia do mês sete ocultará a luz que traz sobre a testa por muitos anos, até que possa novamente ser reconhecido entre os seus e, quando isso finalmente acontecer, muitos o aclamarão, mas o seu verdadeiro poder estará oculto. A Lua encontra-se em Áries, indicando uma personalidade independente, muita coragem e determinação, e necessidade de fazer as coisas a seu modo. Urano está em Escorpião. Muitas vezes levará suas supostas responsabilidades tão a sério que se tornará obcecado. Saturno e Júpiter estão em Virgem. Sua vida se estenderá como uma longa estrada de escuridão e mistérios e várias vezes ele terá que se contentar com o fato de que nem tudo depende de seus esforços. Plutão está em Libra e Netuno chega a Sagitário. Prevejo difíceis provações em seu caminho, pessoas que ele ama partirão prematuramente, muito sofrimento e frustração, toda a esperança se esvaindo, mas ele nunca deixará de ser um apoio aos que o procurem.
- Ele vai ser um auror ou algo assim? - perguntou Tiago, quebrando o incômodo silêncio que se instalara após a velha ter parado de falar.
A bruxa o olhou pensativa, como se avaliasse se devia ou não responder. Então se retraiu, a sensação de luz e grandeza ao seu redor desapareceu e ela voltou a se apoiar pesadamente no braço da enfermeira.
- Não posso dizer com certeza - falou, finalmente. - Sei que o caminho dele está envolto em trevas, mas me parece ser também um caminho jamais percorrido por qualquer bruxo antes - ela tocou a testa do bebê com a ponta do dedo indicador, traçando uma espécie de linha irregular. - Que você seja digno de um sacrifício tão grande, pequenino.
Então deu um sorriso enrugado a Tiago e Lílian e andou em direção ao corredor, com as costas dolorosamente encurvadas e os passos curtos e trêmulos sustentados pela enfermeira sorridente.
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Uma figura encapuzada estava parada em frente ao número 21 de uma tranqüila rua no subúrbio de Londres. Estava lá há poucos instantes. Tão repentinamente aparecera que quem visse poderia jurar que brotara do chão. Mirava impassível a fachada da casa dos Potter.
Era uma casa absolutamente trouxa, com uma fachada pintada de bege e as portas e janelas cinzentas. Nada denunciava que vivia ali uma família de bruxos, a não ser pela coruja encarapitada na janela. Aliás, pelo intenso tráfico de dezenas de corujas entrando e saindo pelas janelas. Sorrindo, a jovem Marlene McKinnon se perguntou como os trouxas não viam aquilo.
Subitamente, um ronco alto interrompeu o silêncio da rua. Marlene olhou para os lados, já meio que suspeitando o que viria a seguir. Então ela viu: há cerca de trinta metros de distância, uma enorme motocicleta tocou o chão, parando há menos de dois metros dela.
- Imaginei que ia encontrá-la aqui, senhorita McKinnon - disse o condutor da motocicleta monstruosa, tirando o capacete. Tinha a barba por fazer, os cabelos negros que caíam charmosamente sobre os ombros e um sorriso cínico e irritante. Falava vagarosamente, como quem estava realmente entediado com a vida.
- Mas com certeza não veio aqui por isso, não é mesmo, senhor Black? - perguntou ela, imitando o modo vagaroso de falar de Sírius e sorrindo desdenhosamente.
- Não - respondeu ele, já não sorrindo tanto quanto antes. - Vim ver meu afilhado - disse, colocando mais entonação que o necessário na palavra "afilhado".
Ele desmontou da moto e a acompanhou até a porta, sem nem mesmo se preocupar em tirar a motocicleta do meio da rua. Marlene ia tocar a campainha, quando a porta foi aberta por uma moça de cabelos loiros levemente anelados que iam até o meio das costas. Usava compridas vestes cor de rosa.
- Suspeitei que tinham chegado - disse a moça, esticando o pescoço para conferir se o barulho que ouvira viera realmente da moto de Sírius. - Dumbledore já não disse para não vir aqui com essa coisa, Sírius?
- Ah, sem sermão, Andrômeda - disse ele, empurrando a prima para o lado e entrando na casa. Dezenas de corujas faziam um estardalhaço dos infernos entrando e saindo pelas janelas, espalhando cartas e pacotes para todos os lados e se encarapitando nos móveis a fim de descansar da viagem.
- Sírius, estou falando sério, você pode entregar o esconderijo assim - continuou Andrômeda, assim que fechou a porta após a entrada de Marlene.
- Pelo amor de Deus Andrômeda, você fala como se alguém estivesse procurando Lílian e Tiago! - falou Sírius, sorrindo largamente. O sorriso, no entanto, se desfez ao que ele percebeu o olhar significativo que a prima lhe lançava. - O que foi?
- Gideon e Fabian foram atacados de surpresa por cinco comensais ontem - disse Andrômeda. - Sabiam que membros da Ordem estariam lá.
- Do que estão falando? - perguntou Marlene olhando de Andrômeda para Sírius sem compreender aquela troca de olhares. - Você está sugerindo que alguém está passando os planos da Ordem para os comensais?
- Ou talvez que alguém da própria ordem esteja fazendo isso - murmurou Sírius. Ele olhava para a parede sério. Tão sério que não parecia a mesma pessoa que estivera sorrindo desdenhosamente instantes antes. - Onde está o Remo?
- Ah, não Sírius, você não pode estar suspeitando do Lupin - disse Marlene baixinho. Ela também já não sorria mais.
- Semana passada tive que matar cinco lobisomens - disse ele. - Ele os está aliciando.
- Certo, vamos deixar esse assunto para mais tarde - cortou Andrômeda. - É impressionante, não? - perguntou, fazendo um sinal em direção às corujas. - Eles receberam um cartão até do Ministro da Magia. Tivemos que colocar um Feitiço de Imperturbabilidade no quarto para o bebê poder dormir.
Nesse momento, Tiago desceu as escadas com um sorriso que parecia ter sido grudado ali com poção colante. Depois de alguma conversa, o grupo subiu para o quarto do bebê. Assim que Andrômeda fechou a porta, o silêncio se fez.
Não era um quarto muito amplo, embora coubesse com folga berço, cômoda, armário e um baú de brinquedos. Mas ficava definitivamente pequeno quando ocupado por quatro adultos, além de todos esses móveis. As paredes, que há semanas atrás haviam sido cobertas de pôsteres e tinta mágica super-berrante agora exibiam um discreto tom azul-claro, mais condizente com o quarto de um bebê recém-nascido.
Silenciosamente, os amigos se reuniram em torno do berço onde dormia um menino miúdo e branquinho. O pouco cabelo se concentrava no topo da cabeça, os fios muito escuros e revoltos que prometiam seguir a tradição dos Potter. Um pouco acima do berço, flutuavam pequenos ursinhos montados em vassouras que se moviam de um lado para o outro. O bebê, alheio a tudo e a todos, dormia a sono solto, com uma carinha de paz e satisfação.
- Vocês já escolheram um nome? - sussurrou Marlene.
- Harry - respondeu Tiago, radiante.
- Lílian sempre dizia que quando tivesse um filho ia pôr esse nome - completou Andrômeda. - Espero que ele não reclame e resolva mudar. Já falei que Nyphandora agora só atende por Tonks?
- Só Harry? - perguntou Sírius, meio que adivinhando a resposta.
- Harry James Potter - completou o orgulhoso pai.
- Os homens são todos iguais mesmo - resmungou Marlene.
- O que você quer dizer? - perguntou Tiago.
- É melhor vocês saírem. Briguem lá fora ou vão acordar o Harry - alertou Andrômeda.
Ela sorriu observando Sírius sair, seguido por Marlene e Tiago, que continuavam a discutir ("os homens são todos egocêntricos!"). Então se voltou para o bebê. Lílian lhe contara sobre a previsão de Cigfolla - muitas provações aguardavam aquela criança.
Talvez estivesse influenciada ou impressionada, mas ela também tinha a sensação de que a vida não seria fácil para o pequeno Potter, assim como não seria para toda aquela geração que chegava ao mundo no auge da barbárie da guerra. Mas sabia também que todos eles iriam saber como enfrentar tudo aquilo da melhor maneira possível. Então aproximou-se do bebê e sussurrou em seu ouvido:
- Seja bem vindo, Harry.
E saiu pela porta a fim de falar com Lílian. O bebê se agitou, abriu os olhos verdes por um momento, mas logo em seguida voltou a dormir. Um raio iluminou o quarto e toda a rua lá fora, mas nenhum barulho foi ouvido por causa do feitiço. Subitamente, o céu desabou sob a forma de grossos pingos de chuva que rapidamente banhariam toda a cidade.
Era início de agosto de 1980 e a Ordem da Fênix estava prestes a viver um dos momentos mais difíceis da história da comunidade mágica de todos os tempos.
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