Adeus, meu anjo
Um estalo de aparatação cortou o silêncio mórbido da Rua da Fiação, próxima ao rio. O homem que acabara de surgir na escuridão assustadora da estreita rua fabril caminhava pela ruela, sua longa capa esvoaçando à brisa quase inexistente da noite. Ele andou alguns metros, mal conseguindo se manter de pé, parecia ter bebido algumas boas doses de uísque de dragão aquela noite. Mas este não era o caso; não era a situação de Severo Snape.
Os cabelos negros sebosos de Snape brilhavam ao luar que se espreitava entre as chaminés; seu nariz enormemente grande lançava sobre seu rosto uma expressão ainda mais sombria do que de comum; os olhos se fixavam ao longe, mas nada olhavam, senão seus próprios pensamentos.
Severo parou em frente a uma casa com tijolos aparentes e um ligeiro ar de abandono, se demorando na soleira por alguns segundos, debruçado sobre o portal, pensativo. Então, num gesto cansado, sacou a varinha e apontou-a em direção à maçaneta da porta surrada pelo tempo. Ouviu-se um clique e a entrada se abriu, revelando um cheiro concentrado de livros e moveis velhos. Snape adentrou à sala, fechando a porta ao passar.
A sala confirmava exatamente o que as janelas opacas e gastas da casa revelariam a qualquer um que passasse por aquela rua: as paredes estavam cobertas por estantes repletas de livros velhos, juntando-se a um sofá puído, uma poltrona velha e uma mesinha de pernas bambas sobre a qual estavam jogados papéis, mais livros velhos, penas, pergaminhos e outros objetos; toda cena era encimada por um candeeiro assustador que pendia do teto.
Snape parecia não se importar com o estado deplorável de sua casa, não ligava para a poeira e a desorganização do ambiente, tinha conflitos demais aquela noite. Ele atravessou a pequena sala e desabou sobre a poltrona rasgada como um corpo inerte, sem vida. Seu olhar, novamente, se fixou ao longe, na parede de livros à sua frente, mas, evidentemente, olhava para seus próprios pensamentos.
Então, num aceno da varinha, uma taça e uma garrafa voaram em sua direção. Severo se serviu de vinho e pousou a garrafa sobre a mesinha. Afundou um pouco mais na poltrona, levando a taça aos lábios finos. Foi então que as lembranças vieram numa intensidade ainda maior.
Godric’s Hollow se projetou na memória de Snape. Estava em frente a uma bela casa de dois andares, as sebes do jardim bem aparadas contrastando com as paredes quase totalmente destruídas. O portão que divisava a casa da rua estava escancarado, como se alguém houvesse passado por ali com extrema pressa ou raiva. O corpo de Snape estremeceu ao ver a cena. Seus músculos se contraíram ao presenciar a destruição da casa. Por um instante pareceu que desabaria em lágrimas, mas, forçadamente, controlou-se e precipitou-se para o portão.
A porta da frente estava tão aberta como o pequeno portão que dava acesso ao jardim. Snape caminhou para dentro da sala e por um momento lhe pareceu que nada havia acontecido ali. A sala de estar tinha um aspecto totalmente diferente do pequeno cubículo empoeirado da Rua da Fiação: havia poltronas confortáveis de um carmim elegante, uma imponente lareira acesa na parede maior, um belo tapete sobre o qual se dispersavam pequenos brinquedos e, além disso, dando um tom de vida espetacular ao cômodo, uma série de fotografias de uma família muito feliz. Dos porta-retratos sorriam uma mulher de cabelos muito ruivos e olhos intensamente verdes e seu marido, ainda bem jovem, de cabelos rebeldes e óculos arredondados, os dois abraçando um pequeno bebê, uma cópia fiel do pai.
Nada naquele ambiente poderia revelar a desgraça que se abatera sobre a casa naquela noite.
Snape não deu atenção às imagens que sorriam e acenavam das fotos, e se adiantou para a escada que levava ao andar superior. Subiu alguns degraus antes de se deparar com uma massa inerte no chão.
Severo Snape encarou os olhos vazios de Thiago Potter com uma expressão de nenhum ressentimento. Aquele homem, que tanto lhe causara mal, que tanto lhe humilhara, e que, por fim, lhe roubara a única mulher que um dia o amara. Enfim Thiago Potter havia recebido o que merecia...
O homem abandonou o corpo do velho colega de escola caído nos degraus, a varinha ainda segura em uma das mãos rígidas, banhadas pela morte. Snape apenas tomou cuidado para não pisar em Thiago, e continuou a subir.
Quando enfim chegou ao segundo andar da casa, a cena mudou completamente. A destruição ali fora evidente. As paredes que davam para a rua estavam destruídas, mostravam apenas o outro lado do corredor repleto de mais algumas fotografias. Havia apenas uma iluminação vaga no último cômodo do corredor, fora a destruição.
Snape avançou em direção à luz baixa do quarto, desviando-se dos destroços do que fora a bela casa dos Potter. Ele sabia o que encontraria a seguir, mas de forma alguma estava preparado para encarar aquilo...
Lílian estava caída no centro do ambiente mal iluminado, o verde de seus olhos mirando algo que ela não podia mais ver, seus braços delicados jogados no chão. Os cabelos ruivos de Lílian Evans se abriam num leque entre os cacos do que sobrara do quarto, seu rosto se contorcia numa súplica pela vida, como se implorasse para que aquilo não acontecesse. Porém, acontecera...
O visitante entrou pelo portal branco que dava acesso ao quarto, e seus olhos negros caíram diretamente sobre o corpo da mulher. Foi quando Snape demonstrou seus maiores sentimentos naquela noite. Ao ver Lílian caída ao chão seu corpo perdeu as forças. Por mais que tentasse se manter de pé, suas pernas bambearam e ele cambaleou para trás, caindo contra a parede. Sentiu-se um monstro, a pior coisa que poderia existir. Como pudera fazer aquilo? Como pudera entregar a mulher que mais amara a um ser sem qualquer sentimento, sem qualquer emoção?
Snape permaneceu imóvel contra a parede, as lágrimas escorrendo involuntariamente sobre seu rosto. Mas ele precisava tocá-la, precisava despedir-se de Lílian Evans. Projetou, então, seu corpo para frente, mas o máximo que pôde foi engatinhar até a mulher, arrastando-se pelo chão. Parou ao seu lado, olhando fundo em seus olhos verdes que, antes, mostravam tanta vida, tanto sentimentos, e que, agora, encontravam-se sombrios, mortos.
As mãos do Príncipe Mestiço escorregaram pelos braços singelos de Lílian, deixando-se levar até as mãos finas da mulher. Ele apertou-as. Estavam geladas. Ele apertou-as ainda mais, tentando aquecê-la, fazê-la retornar. Não adiantava. Se fora...
Severo tomou Lílian em seus braços, apertou-a num abraço caloroso, banhado por lágrimas. A luz da lua iluminava seus rostos. A cada vez que mirava aqueles olhos verdes, desabava, apertava-a ainda mais. Não podia ser verdade, não podia...
O homem inclinou-se sobre os ouvidos de Lílian e, num movimento de seus lábios finos, sussurrou:
- Lílian, sou eu, Sev. Acorde querida, por favor, acorde... acorde... ACORDE!
O grito de Severo Snape ecoou pela casa silenciosa, seguido por seus soluços, um lamento verdadeiro de um homem que perdera sua única paixão. Lílian não acordou, mas seus olhos continuavam a fitar o amigo. Severo não se agüentou. Fechou as pálpebras da amada num movimento delicado e largou-a cuidadosamente no chão, ajeitando-a sobre o carpete.
Foi nesse momento que um ruído às suas costas chamou a atenção de Snape. Era o bebê, o filho de Lílian e Thiago Potter. Parecia uma miniatura do pai, mas, olhando atentamente, Severo viu os olhos intensos de Lílian encarando-o. O bebê chorava entre os brinquedos do berço que o prendia. Não poderia compreender o que se passava ali, mas chorava. Snape viu de relance uma cicatriz fina em sua testa, em forma de raio, antes que outro barulho rompesse o silêncio entre eles.
Pela parede destruída Snape viu uma imensa moto voadora se aproximando da casa. Não devia ficar mais ali. Desviou seus olhos da noite fria e não tornou olhar o garoto. Demorou-se mirando Lílian no chão. Agora, de olhos fechados, parecia apenas dormir, um sono tranqüilo e feliz. Sem sair do lugar, ouvindo a moto parar ao portão, ele disse, numa voz falha e quase inaudível:
- Boa noite, meu anjo!
Num movimento da capa a cena se desfez e Severo Snape partiu para outro lugar, onde nenhum vivo nem nenhum morto o amaria como Lílian Evans o amou.
Comentários (1)
OMG!! Chorando litros aqui!! Muito triste essa One-Shot. Me deprimiu!! :( Tadinho do Severo!! Igor, amei. Muito bem escrita!! Espero por mais coisas suas por aqui!! Beijos
2011-09-09