Ato Zero



A vida de Severo Snape, assim como algumas outras, começou antes dele nascer.

O Universo havia se preparado, ajustando cada circunstância e cada fato para sua chegada. Se ele nascesse um pouco antes, ou mesmo um pouco depois, seria uma pessoa completamente diferente. Mas era difícil saber quando exatamente havia começado sua vida - com sua mãe? Com seu avô? Com o bisavô antes dele? Nunca foi fácil delimitar isso.

O que se podia dizer com facilidade era sobre Eileen.

Quando chegou à Hogwarts, diziam que ela era uma sangue-puro. Uma palavra chique, que exaltava tradição e poder, mas que indicava somente que era filha de dois bruxos. Sangue-puro ou não, Eileen era pobre como um rato de Igreja. Não fosse o fundo para alunos carentes, teria tido sérios problemas.

Seu sobrenome fazia dela uma piada: Prince. Eileen, filha de príncipes? Talvez os príncipes do Lixão.

Mas, na verdade, ela realmente era filha de príncipes. Ela era realmente parte da família Prince. Apenas aconteceu dela ser uma filha bastarda.

O velho patriarca da família Prince não havia visto com bons olhos o relacionamento de seu único filho  com uma curandeira pobre, de modo que o deserdara e não reconhecia Eileen como neta. Seu pai fugira de casa e, junto com a curandeira, vivia uma vida pobre mas cheia de amor. Eileen não sabia exatamente como se sentia à respeito disso.

Seu pai havia posto nela seu sobrenome, "Prince", mas não havia lhe dado nada muito além disso. Ele não tinha nada muito além disso para lhe dar, na verdade. Nem mesmo um irmão para brincar, pois não haveria condições de criá-lo. Mal havia condições para a pequena Eileen!

Não se sabia ao certo se ela fora uma tentativa de amolecer o coração do pai dos Prince, mas se esse fora o caso, havia sido uma falha excepcional. O patriarca não quisera saber dela, nem da esposa do filho, nem do próprio filho. Para todos os efeitos, ele nunca tivera um filho. Ele renegava a relação dele com a curandeira com todas as suas forças, do fundo do seu coração. Nunca quis ver Eileen. E nunca perdôou seu filho, sangue do seu próprio sangue. Nem mesmo quando morreu.

Ainda assim, a morte do Patriarca foi uma das piores coisas que poderiam ter ocorrido para Eileen. Ele a renegava, ele a odiava, mas ele nunca se dera ao trabalho de excluir formalmente o filho e seus descendentes da sua herança... de modo que os sobrinhos e primos, com rancor, decidiram que iriam por sua conta pegar o que lhes pertencia. Ela tinha vinte anos.

E teve de fugir com seus pais. Sangue-puros. Um pai ex-nobre. Fugindo. De matadores. Da fúria da família. O pai de Eileen disse que desprezava o dinheiro. Eles não quiseram escutar.

O melhor esconderijo em que seus pais puderam pensar foi o de trouxas. Mudarama-se para uma aldeia trouxa, vivendo como tais e ignorando seus poderes mágicos. Faziam de tudo para não chamar a atenção de ninguém e, esperavam eles, dos tios e primos e sobrinhos do antigo patriarca Prince também.

Eileen se acostumou. Com tudo se acostuma. Seus anos em Hogwarts eram como um sonho. E o dia em que viu o que o pessoal da aldeia fez com uma garota que consideravam bruxa, teve ainda mais medo de mostrar sua verdadeira condição. E a pobre coitada nem bruxa era. Só havia errado a mão nas ervas e feito os que tomaram seu chá delirar e ter sonhos estranhos.

Seus pais viveram se amando até o final da vida. Pobres e unidos. Se algum dia se arrependeram - se terem enfrentado o patriarca, de fugirem, de se fazerem de trouxas - ela nunca descobriu. Nunca indicaram nada. Eles chegaram a ver seu casamento, mas nunca seu único neto...

Eileen Prince se casou, um dia, anos depois de ter se mudado para a aldeia com seus pais e alguns depois do caso da menina-bruxa-do-chá. Conheceu Tobias na festa da colheita, e se encantou com seus olhos claros e a postura forte.

Dançou com ele uma vez, duas, três. Se encontraram depois dos festejos quatro, cinco, seis, e queriam se rever mais e mais e cada vez mais. Tobias era forte e rústico, mas tinha um grande coração e realmente gostava dela. Ele costumava erguê-la do chão com apenas uma mão, assustando-a, e quando pensou em se casar foi pedir sua mão ao pai dela. Era assim que ele achava que as coisas deveriam ser feitas.

Tinha sido assim com seu pai, e o pai de seu pai antes dele. Tobias Snape era um homem que prezava a tradição. Eileen Prince se apaixonou por ele, aceitou se casar, e assim o fizeram. Tobias não era rico, mas tinha um pouco mais de dinheiro que seus pais, de modo que ela não reclamava de nada.

Quando começou a faltar o dinheiro, eles decidiram se mudar. Ou melhor, Tobias decidiu se mudar, para longe, para Spinner's End, onde estavam abrindo oportunidades para homens como ele. Eileen argumentou que podiam ficar lá, que faria bordados ou coisas do tipo para sobreviver (podia até memso usar mágica!), mas ele ficou tão irritado que ela cedeu. A obrigação de prover a casa era do Homem, então iam se mudar. E fim de conversa.

Eileen asentiu. Tobias era um bom homem, mas um pouco machista e com um senso de inferioridade extremo, talvez por não ter tido muitas oportunidades de estudar. Era apenas uma questão de saber lidar. Ela o amava o suficiente para isso, e o amor que ele tinha por ela era tão grande que ficava fácil lidar. Ela nunca contou a ele que era uma bruxa.

Infelizmente, esse tipo de coisa não se consegue esconder para sempre...

Um dia, Eileen ficou grávida, como era de se esperar. Tobias Snape ficou muito, muito feliz, e esperava que fosse um menino. Realmente foi um, e ele quase chorou pela primeira vez na vida. Quase.

Batizaram-no de Severo Snape, escolha de Eileen. Tobias preferia um nome de antigos reis, como Guilherme ou Augusto ou Ricardo, mas havia cedido. Ou sido enfeitiçado para ceder. Tanto faz.

Eileen não abriu mão de escolher o nome do filho, e optou por um que considerou forte, sério e muito cheio de charme. Na verdade, era o nome do amigo imaginário que tinha na infância, com quem brincava na ausência de um irmão de verdade. Queria ter dado a ele seu nome, Prince, mas teve medo de ser descoberta, então decidiu abdicar dele.

Não pretendia contar nada à Tobias sobre sua condição ou a de Severo, mas seu filho contara sozinho. Tinha dois anos quando a primeira amostra de sua magia apareceu.

Ele estava brincando, do lado de fora, quando as folhas secas ao redor dele começaram a pegar fogo. Uma, duas, três, todas elas. Severo ria. Tobias correu para tirar o filho de lá... e percebeu que elas pegavam fogo quando ele as tocava. Se sentiu enjoado.


Naquela noite, bebeu. Bebeu muito. Bebeu todas. "Meu filho é uma aberração!".

Eileen suspirou. Decidiu contar à ele. Pegou sua velha varinha, empoeirada e sem uso, e mostrou à Tobias. Contou tudo a ele - sobre ela, sobre Hogwarts, sobre seus poderes. Não se importou com o fato de que poderiam rastrear sua magia após tantos anos e, para sermos justos, ninguém apareceu também. Contou sobre Severo.

 E Tobias continuava repetindo: "Meu filho, meu filho é uma aberração".

Ele nunca conseguiu amar Severo desde esse dia. Havia um forte bloqueio em seu coração.

Ele odiava Severo por ser uma aberração. Ele odiava seu filho por ter mostrado à ele a verdade sobre sua mãe. Desde aquele dia, Tobias se sentia mal em relação à Eileen.

Ela tinha poderes mágicos. Ela podia fazer coisas com as quais ele não podia sequer sonhar. Ela era melhor, muito melhor do que ele, e podia a qualquer momento deixá-lo. Era uma idéia que Tobias não conseguia suportar.

Passou a beber todos os dias. E a bater em Eileen. "Use seu poder mágico, use!" dizia ele, bêbado, batendo nela. Mas ela nunca usou, porque sabia que iria magoá-lo. Eileen, apesar de tudo, o amava.

E todas as vezes em que pensava em deixá-lo, sem dizer nada, Tobias aparecia, com a cara envergonhada, pedindo seu perdão e prometendo melhorar. Ela sempre acreditava. Ela não queria desistir dele nem de seu casamento. Ela não queria ser responsável por aquela derrota.

Então ficava ali com ele. Continuou com ele conforme Severo crescia, um pouco abandonado, e continuou brigando com ele esse tempo todo. Amando Tobias de uma forma errada e distorcida. Ele nunca a perdôou por ser bruxa. Nunca se perdoou por se sentir inferior à ela. Ele deveria cuidar dela. Como poderia, sendo ela tão superior...?

E Eileen nunca saiu de lá, até o dia de sua morte. Mesmo sendo humilhada, espancada e ferida. O casamento, tão bom anos antes, despencou cada vez mais desde que o bebê apareceu. Mas o pequeno Severo nunca soube do antes. Sabia apenas do que via. Talvez por isso mesmo amasse a magia e o nome de sua mãe (que fingia ser seu), desprezando o pai e o sangue trouxa pelo que via todos os dias.

Feridas, gritos, olhos roxos. Nenhum abraço e nenhuma sensação de paz. A cada dia.

E foi nesse lugar que Severo Snape nasceu, o pequeno príncipe. 

Nem todas as histórias podem ser contos de fadas. 



Continua... 

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