Se Afaste do Sol



Neville Longbottom apertou os olhos antes de realmente abri-los para a manhã que se instalava sorrateiramente pela enfermaria. Ela estava praticamente vazia. Se ele se mexesse na cama barulhenta, seria possível ouvir o ruído reverberando pelas paredes como algo muito maior do que era. Ele não conseguia abrir os olhos imediatamente. E isso acontecia principalmente porque ele tinha medo de fazê-lo e acordar para a realidade.



Realidade, pensou consigo mesmo, odiando a cada segundo mais, estar consciente. Preferia estar em um coma profundo a ter acordado novamente. Preferia estar morto a ter de encarar a realidade. Ele sabia, mesmo que houvesse passado inconsciente durante dois dias, que ela não tinha salvação. Enquanto Neville havia escapado da desgraça maior com apenas alguns arranhões e costelas quebradas, ela não havia escapado ilesa. Gina Weasley estava inconsciente há dois dias e todos sabiam o que se passava com ela.



Neville apertou ainda mais os olhos, deixando que os cílios desaparecessem nas pálpebras, enquanto tentava prestar atenção no silêncio e esquecer as imagens rápidas que lhe vinham à cabeça. Ele apenas estava conseguindo dormir devido a medicamentos dados por Madame Pomfrey, caso contrário se limitaria a ficar acordado, de olhos arregalados, encarando ou o teto, ou a cama de Gina. Ela não havia se mexido nem um centímetro nos últimos dois dias e sua aparência mudara tanto que era quase impossível de se acreditar que ela continuasse viva.



Embora seu coração batesse, num ritmo tão lento que era quase imperceptível, ela aparentava realmente ser uma morta. Seus cabelos vermelhos assumiram um tom frio e a cor já não passava de um borgonha sem vitalidade. A pele era cinzenta, parecendo pouco elástica e tampouco aparentava vida. Nada nela fazia alguém acreditar que estivesse viva. Apenas se notava a presença de vida em seu corpo se ela fosse examinada de perto.



Ao contrário de Neville, seu corpo já não sustentava as cicatrizes arrebatadas naquele ataque, que ninguém saberia dizer como ocorreu. Gina não tinha marca alguma, nem ao menos um arranhão. Seus ossos haviam curado totalmente e sua pele se tornara tão lisa que ela parecia uma estátua de mármore cinzento. Isso tudo em apenas dois dias. É a transformação, ele se deixou pensar, lutando consigo mesmo para abrir os olhos e afastar a coberta de sobre sua cabeça. Qual não foi seu susto quando, ao levantar o tronco do colchão fazendo menos barulho do que ele imaginava que faria, encontrou Gina em pé ao lado de sua cama hospitalar.



Ele parou, sustentando todo o seu ser em uma respiração engasgada na garganta. Gina tinha os olhos colados na luz solar que entrava pela janela de vidro enorme da enfermaria. Seu corpo magro e esguio estava muito ereto, os pés descalços pisando confortavelmente no chão gelado de pedra. Os cabelos borgonha eram como fios de tecido antigo largados ao redor do rosto anguloso e profundo. Os olhos... Ah, os olhos dela, ele refletiu rapidamente, quase se permitindo chorar.



Seus olhos eram apenas um restulho do que já haviam sido. Estavam fracos, sem iluminação alguma, sustentados por uma espécie de incapacidade de olhar para além do que viam há poucos metros. Ela mal piscava e quando o fazia os deixavam fechados por um tempo considerável. Todo seu rosto carregava uma aura de incapacidade, de desinteresse, de pouca, se não, mínima, força de vontade. Ela suspirou, mesmo que seu corpo não parecesse precisar de ar em seus pulmões para funcionar. Em breve, ela precisaria de um novo combustível.



- Gina? – Neville chamou com a voz baixa, pouco mais alta do que um sussurro. A garota virou os olhos inexpressivos na direção dele muito devagar, sem deixar claro se ela o estava escutando ou prestando atenção naquilo que ele dissera. Ela apenas estava com os olhos na direção dele, porque ele tinha certeza de que Gina não estava realmente o olhando. – Você não pode ir em direção ao sol, Gina, é perigoso, você tem de se afastar do sol – ele alertou, erguendo-se devagar da cama e calçando os chinelos acolchoados, caminhando rapidamente em direção à garota, conseguindo postar-se entre ela e a luz solar.



- Por quê? – ela perguntou, de repente, depois de alimentar o silêncio dele durante aqueles segundos que pareceram horas. Seus olhos haviam voltado ao lugar de origem, mas dessa vez a janela não era seu objeto de interesse, mas sim, Neville. O garoto engoliu em seco ao ouvir a voz rouca e rasgada que ganhara lugar no corpo de Gina. Ele podia sentir saudade da voz aveludada e naturalmente sensual que ela tinha, mesmo sendo apenas uma menina.



- Porque o sol vai machucar você, assim como o fogo – ele respondeu, olhando fundo nos olhos rasos dela. O castanho estava escuro, mais escuro do que já havia estado. – É melhor você se esconder do sol e de luzes muito fortes. Temos de agradecer que está apenas amanhecendo e que a luz da manhã recém nascida não pode machucar você, verdadeiramente. – Neville se espantou consigo mesmo por seu conhecimento sobre a praga que Gina carregaria dali em diante. Queria afastá-la da janela, levá-la de volta a sua cama, mas não se atrevia a tocá-la. Não se atreveria a tentar tocá-la.



- Por quê? – ela perguntou novamente, levando os olhos para a janela. Pela primeira vez desde que ele abrira os olhos, conseguiu vislumbrar alguma expressão nos olhos rasos. Ela estava curiosa. Era curiosidade aquilo que ele encarava em seus olhos. Era curiosidade aquilo que ela demonstrava pela luz do sol. Parecia uma criança descobrindo o mundo.



- Porque você tem uma nova natureza agora, Gina.



- Não – ela negou, sacudindo a cabeça levemente, deixando seus olhos caírem ao chão, para seus pés descalços. Os fios de tecido antigo que eram seus cabelos caíram sobre seu rosto, tornando-se uma cortina borgonha densa. – O que aconteceu comigo?



Neville engoliu em seco, afastando-se dela, enquanto tentava ignorar o fato de que aquelas imagens voltavam à sua cabeça. Ele correu até as janelas, puxando as cortinas cinzentas que estavam afastadas. Depois de cobrir as janelas com as cortinas empoeiradas, a enfermaria transformou-se em uma sala escura, tão escura que Neville correu até o lampião a gás que ficava sobre o criado mudo ao lado de sua cama e acendeu-o. Ele sentou-se em sua cama, cerrando os olhos.



- O que aconteceu? – Gina repetiu, fazendo com que as imagens na cabeça dele se tornassem mais nítidas. Parecia que quanto mais ela insistisse, mais forte ficava aquela lembrança. E parecia que quanto mais forte ela ficava, menos ele se renderia a colocá-la para fora. Pensar naquilo era reviver cada detalhe daquela noite que mudara a vida dos dois. – Eu estou diferente, Neville, eu sei que existe alguma coisa que está fora de ordem dentro de mim, mas eu não consigo encontrar porque eu não tenho lembranças suficientes. Não existem memórias e referências suficientes dentro de mim.



Ele continuou em seu silêncio, preso em sua mente, temeroso quanto ao fato de falar alguma coisa e se deixar contar alguma coisa. Sua boca parecia encher-se com os relatos, mas ele mantinha os lábios apertados, reprimindo qualquer coisa que pudesse sair dali. Neville estava tão concentrado em sua tarefa que não percebeu quando o corpo magro e fantasmagórico de Gina se aproximou de sua cama e colocou-se aos seus pés, pousando a cabeça leve demais em seu colo.



- Você tem alguma idéia do que eu estou sentindo? – ela perguntou, sem realmente esperar uma resposta. Seus olhos escurecidos encaravam o breu que havia em toda a parte da enfermaria, exceto na cama de Neville. – Eu sinto minha pele repuxando, sinto que meu estômago vai saltar de dentro de mim, sinto como se meus olhos estivessem queimando... – ela disse com a voz rouca baixa transformada em um ruído grave, assustador. – O que me perturba é que nada parece estar em ordem aqui dentro – ela levou o dedo indicador até a cabeça, apontando-o para a testa coberta pelo cabelo sem vida. – é como se alguém tivesse se preocupado em desarrumar as gavetas em que eu guardo minhas memórias, minhas lembranças... Minha vida.



Gina ergueu a cabeça, apoiando-se nos joelhos imóveis do garoto, empurrando seu corpo para cima. Agora, ela podia vê-lo por cima, tendo seu umbigo na altura dos olhos dele. Neville continuou mantendo sua cabeça baixa, ainda em luta consigo mesmo, resistindo quase que inutilmente à tentação de contar à ela o que acontecera em detalhes. A garota suspirou, colocando as mãos nos ombros dele gentilmente, sentindo seu corpo se abaixar e suas pernas se afastarem uma da outra. Neville podia sentir aquela presença se aproximando cada vez mais, mas ele não se atreveu a abrir os olhos.



- Não existe um modo de você conseguir entender isso. Não existe uma maneira de eu demonstrar o quanto eu preciso de você, do quanto eu desejo você. – ela disse, apoiando-se nos ombros dele enquanto projetava seu corpo, aparentemente, frágil por sobre o dele, deixando que as penas colocassem-se confortavelmente uma ao lado de cada perna do garoto. Neville respirou fundo, mostrando-se assustado com a atitude sexual dela. – Sim, eu quero você. Eu desejo você!  – ela suspirou alto, abaixando o quadril de modo que sua vulva sentisse o membro sexual do garoto. Seu rosto encaixou-se entre o pescoço e o ombro direito dele, fazendo com que sua respiração tocasse os pelos arrepiados do pescoço de Neville. – É como se eu pudesse sentir seu gosto apenas em estar, assim, perto de você.



- Você está me assustando – ele sussurrou, finalmente deixando-se desprender um lábio do outro e abrir seus olhos. Os cabelos dela caíam como uma cachoeira congelada por suas costas, cobrindo boa parte da visão que ele tinha da sala. Aquela teria sido uma atitude sensual e lhe causaria até mais do que pelos arrepiados se ele não estivesse tão assustado com aquilo tudo. Ela mexeu de leve o quadril, erguendo a cabeça e encarando os olhos temerosos dele com os seus rasos e vazios espelhos de alma.



- O que aconteceu comigo? – ela repetiu, usando a voz de um modo que ele não imaginava que a rouquidão pudesse ser usada. Era grave, mas suave ao mesmo tempo. Aquele tom de voz lhe causou um arrepio tão grande que a primeira coisa em que ele conseguiu pensar foi a sucessão de fatos da fatídica noite acontecendo em perfeita ordem. – Fale! – ela disse com o mesmo tom de voz, claramente ordenando que ele lhe falasse. Neville limpou a garganta com um pigarrear longo e se colocou a falar as coisas na ordem em que as via em sua cabeça.



- Você deve se lembrar de que nesse ano está acontecendo o Torneio Tribruxo em Hogwarts – ele disse, rapidamente recebendo uma confirmação por parte dela. – Então, você também deve se lembrar de que há duas delegações convidadas a se hospedar em terras da nossa escola. – Ela confirmou novamente, erguendo a mão como quem dizia para ele continuar rapidamente. Ele engoliu em seco e continuou, acelerando quase sem perceber o ritmo da narrativa. - Nós éramos uma dupla inesperada, principalmente porque eu sabia que você só havia aceitado meu convite para poder ir ao baile, porque a entrada só era permitida a alunos superiores ao quarto ano, sendo que os acompanhantes podiam pertencer aos primeiros três anos.



Ele sorriu com a lembrança, deixando os olhos correrem para o escuro, distraindo-se com as imagens que via se formarem em sua frente. Era como se tudo estivesse acontecendo novamente, mas daquela vez ele era apenas um espectador dos acontecimentos. Era uma terceira pessoa na presença da menina ruiva e do garoto desengonçado. Era uma quarta pessoa, se ele considerasse a presença desagradável da terceira pessoa em cena. Da pessoa responsável por tudo aquilo. Ele ao menos sabia se podia chamar aquela criatura de pessoa.



Logo depois do baile, ele havia convidado a bela Weasley para uma caminhada ao longo do pátio, mesmo sabendo que ela não cederia às investidas dele justamente por ele ser Neville. Ser Neville era um peso, um peso que ele carregava há quatro anos. O garoto gordinho, o garoto criado pela avó que sempre usava a mesma roupa, o garoto desajeitado que nunca se dera bem em matéria alguma, exceto Herbologia... Era improvável que Gina se sentisse atraída por ele, muito menos que ela deixasse que ele a beijasse nos jardins de Hogwarts durante aquele passeio.



- Linda noite – ele disse, olhando para o céu, tentando distrair-se com qualquer coisa que não estivesse ligada a ela. Gina apenas resmungou e se dirigiu a um banco vazio próximo a um arbusto que ela não conseguia identificar. – Babosa, planta trouxa – ele informou, sentando-se ao lado dela no banco, enfiando as mãos nos bolsos fundos.



- Neville – ela começou, baixando o tom de voz até aquele tom aveludado, naturalmente sensual, assumir uma postura séria e definitiva. Parecia que qualquer coisa que ela falasse com aquela voz viraria lei. Ele suspirou, sabendo o que viria a seguir. – Você sabe o porquê de eu ter vindo ao baile com você, não sabe? Eu não quero que você me entenda mal, não quero que crie ilusões em algo que não passa de amizade. – ele, que tinha os olhos baixos, mordeu o lábio inferior, segurando a respiração. Neville, que era naturalmente um garoto sensível, começara a sentir a bola de choro que se formava em sua garganta. Não era tristeza. Era frustração.



- Tudo bem – ele sussurrou, ainda sem respirar. Tinha certeza de que se, se deixasse respirar, as lágrimas cairiam por sua face redonda. – Eu nem havia pensado nisso.



- Não mesmo? – ela desacreditou. Neville revirou os olhos, erguendo-se do banco ao ouvi-la pedir uma confirmação. Era possível que ela tivesse tão pouco tato para perceber que ele gostava dela? E quem não gostava de Gina Weasley, com seus cabelos cor de fogo e os olhos castanhos de felino?



- Não – ele disse, deixando-se respirar apenas um pouquinho, tentando transformar sua frustração em raiva ou indiferença. Não que ele não imaginasse que algo assim aconteceria, já que ele era apenas o menino gordinho que sempre arrumava problemas. Ela tinha opções mais interessantes. – Vamos voltar? Está frio aqui fora.



Neville, que já estava em pé, esticou a mão para ajudar Gina a levantar, mas antes que ela visse sua mão esticada em sua direção, ele a puxou de volta. Ele não precisava de outra frase o lembrando de que nunca haveria nada entre eles. Ele virou-se de costas e deu dois passos em direção ao castelo, percebendo a presença de Gina a alguns centímetros atrás dele. Ele andava com as mãos nos bolsos, encarando os sapatos. Era a própria imagem da frustração. Gina jogou uma mecha do cabelo para trás.



- As Esquisitonas são ótimas, não são? – ela comentou, tentando atrair o garoto desengonçado para uma conversa. Ela deu pulinhos nos saltos barulhentos das sandálias gastas emprestadas da mãe, tentando alcançá-lo.



- É – ele respondeu, torcendo as sobrancelhas. Mas ele não as torcia em desaprovação ou indiferença quanto a ela, coisa que ele não conseguiria fazer, mas sim porque ele ouvia um ruído que não parecia em nada com os sons naturais de Hogwarts ou com os casais se agarrando atrás de arbustos repolhudos.



Neville parou de andar, abaixando levemente a cabeça, enquanto dobrava o corpo num movimento singelo. Movimento que o fazia aguçar a audição. Ele se dobrava na direção da babosa, que anteriormente estivera olhando. O ruído era parecido com sucção, algo sendo sugado, algo sugando... Ele mordeu o lábio inferior, chegando bem próximo de Gina e sussurrando em seu ouvido:



- Você está ouvindo isso? – a voz do garoto era urgente. Gina apertou os olhos, esticando o pescoço para a direção em que ele estava arqueado.



- Esse ruído que vem da planta trouxa? – ela recitou rapidamente, deixando a voz sair tão baixa quanto a voz dele.



- É – ele confirmou, segurando firme o braço dela. Tão firme que Gina o puxou, torcendo as feições, numa expressão que dizia claramente que aquilo havia doído. – Acho que devíamos voltar para o castelo.



- Não seja bobo – Gina disse agitada de um modo diferente da agitação de Neville. A agitação dela estava combinando com seu sorriso e a postura corajosa, digna de uma aluna da Grifinória. Ela ergueu a mão segurando firme o braço dele, voltando-se para o banco de pedra próximo à babosa. – Vamos dar uma olhada, não deve ser nada mais do que um animal.



Neville tremeu, mas deixou-se ser levado pela ruiva. Ela sacudiu a cabeça, tirando o cabelo do rosto com o gesto, sem preocupar-se em usar as mãos. Uma delas segurava forte o braço de Neville, a outra estava esticada em frente a seu corpo. A mão esticada tocou de leve a ponta do banco, enquanto a outra soltava o braço de Neville e a ajudava a se equilibrar por sobre o assento de pedra. Gina esticou o pescoço, tentando enxergar por sobre a babosa sem sucesso. Ela voltou-se para Neville com um sorriso sádico e colocou os dois pés sobre o banco de uma vez só. Ele tremeu novamente, se aproximando mais dela e segurando de leve sua cintura. Gina apertou as sobrancelhas, virando-se para ele.



- Não seja bobo – ela repetiu, mas sem pedir que ele a soltasse. Pelo contrário, isso a ajudava a se equilibrar enquanto esticava ainda mais o pescoço e olhava para o outro lado da planta. De onde estava Neville não conseguia ver o rosto da menina, mas pelo gritinho que ela soltou quando seus olhos finalmente encontraram o que estavam procurando não foi nada animador. – Merda – ela xingou em uma voz tão baixa quanto um sussurro, pulando para trás.



Gina jogou-se para trás no banco, caindo sobre o corpo de Neville, erguendo-se rapidamente, enquanto buscava segurar o braço dele e puxá-lo para cima. Neville estava um tanto tonto, mas mesmo assim conseguiu erguer-se e seguir a garota. Ela estava agitada, tentando correr, mas sem garantir sucesso com as sandálias de salto. Os dois mal haviam conseguido se afastar dois passos quando a silhueta negra contra a luz do castelo lhes bloqueou a passagem. A garota soltou um ruído estranho por entre dentes, algo como um grito refreado, e deu um passo para trás, fazendo Neville colidir seu corpo com o dela.



- Merda – ela xingou novamente, sem se preocupar em afastar os cabelos do rosto assustado. Os olhos castanhos de felino estavam arregalados e a boca entreaberta mostrava mais do que surpresa. Ela estava apavorada, temerosa.



- Eu não queria! Eu não queria! – repetia a voz enfraquecida da silhueta negra.



Neville apertou os olhos, tentando enxergar mais do que as luzes do castelo permitiam enxergar. Eles estavam em posição totalmente desfavorável, precisavam virar-se. Gina parecia travada, prestando atenção ao que a silhueta repetia. Era uma voz fraca, como Neville já havia notado, mas ele podia capturar mais do que fraqueza. A voz trazia uma espécie de arrependimento e de melancolia. O garoto segurou o braço de Gina, apertando os dedos no mesmo ritmo em que ele mexia singelamente os pés.



- Eu não queria atacar aquela garota! – a voz disse mais uma vez.



Mostrava um sotaque não-britânico em seu inglês. Tampouco era um sotaque francês, Neville notou, ainda girando os pés discretamente, fazendo a silhueta girar com eles. Tanto o volume que as roupas faziam em seu corpo quanto o sotaque carregado nos erres mostravam que a silhueta pertencia a um dos estudantes de Drumstrang. Aos poucos, a silhueta desolada foi ficando visível. Neville parou de apertar os dedos no braço de Gina ao mesmo tempo em que parou de mexer seus pés e que a silhueta ficou totalmente visível na luz que vinha do castelo. Era temível, para não dizer aterrorizador.



- Eu achei que podia agüentar por mais tempo com aquele cervo – o jovem garoto vestido com as peles clássicas de Drumstrang tinha os olhos colados em seus próprios pés. O rosto era magro, macilento, com as feições muito marcadas na pele cinzenta. Nada nele parecia ter vida. Os cabelos negros eram fracos, pareciam quebradiços e caíam em ondas singelas pelos ombros largos.



A boca era fina, tão fina que mal aparentava ter lábios e quando ele, finalmente, ergueu os olhos, Neville pode ver a expressão mais vazia e rasa que ele já pensara em notar nos olhos de alguém. O azul claro dos olhos do rapaz não eram nada mais do que pontos coloridos sem vida, sem brilho. A pupila era apenas um ponto preto que cercava praticamente toda a íris dos olhos muito redondos, também sem vida alguma, devido à escuridão.



- Tudo bem – Gina disse, ganhando a atenção do rapaz pela primeira vez. Ele havia erguido seus olhos, mas o que ele olhava não parecia estar no mesmo foco dos dois. – Nós entendemos que você não queria atacá-la.



- Entendem?



- Claro! – ela fingiu uma compreensão exagerada. Era claro que aquela era sua maneira de tentar fazer com que aquela criatura se afastasse deles. Neville não pode deixar de notar o filete de líquido que escorria por sua boca, caindo diretamente em sua camisa vermelha. O sangue era apenas um ponto escuro quando tocava o tecido, mas nos lábios do rapaz era o mais verdadeiro sinal de que eles deviam sair correndo dali.



- Mas apenas uma coisa me deixa irritado...



- Não – ela o interrompeu, como quem estava decepcionada com ele, mesmo sem conhecê-lo. Fazia parte de seu plano inteligente. Ela podia sentir os apertões de Neville em seu braço, apertões esses que serviam como guia para seus pés. No mesmo instante, ela mexeu seus pés discretamente para trás, assim como Neville o fazia. – Não fique irritado!



- Então me responda por que eu ainda sinto fome? – o rapaz perguntou, passando a língua pelos lábios sujos de sangue, deixando visível por detrás dos mesmos, uma fileira de dentes afiados. Gina pareceu decepcionada consigo mesma dessa vez, olhando nervosa para seus pés, que caminhavam para trás num ritmo singelo.



Isso foi um erro, Neville pensou quando percebeu que os olhos do vampiro seguiram os olhos da ruiva e caminharam junto aos dela para seus próprios pés em movimento. No mesmo instante, ele ergueu os olhos para os dois e sorriu, mostrando os dentes afiados e os dois caninos mais finos ainda. Gina tremeu, sem soltar um pio pela boca, ao contrário de Neville, que gemeu alto com a visão dos dentes.



- Porque vocês também querem fugir de mim? – o vampiro perguntou, parecendo não entender o motivo do medo dos outros dois. Como se fosse possível ficar confortável com um vampiro novato e seus dentes à mostra. – As outras duas garotas também queriam fugir...



- Você não acha que isso tem uma explicação lógica? – Gina disse em tom irônico, arqueando sutilmente o rosto para frente, o suficiente para que o vampiro prestasse atenção novamente em seu rosto. – Você é um vampiro, oras!



Ela ergueu a voz até que ela causasse eco no pátio vazio. Não fora sua intenção, mas todo cuidado era pouco. Todos sabiam que não se podia irritar um vampiro, principalmente se ele era um novato. Os novatos não têm o mínimo controle, Neville pensou apavorado, apertando tanto o braço de Gina que ela puxou o membro, ficando livro do toque dele. O vampiro ergueu os olhos escuros para a ruiva, mostrando os dentes.



Nenhum dos dois alunos respirava. Sua respiração estava presa na garganta, assim como os olhos que não deixaram o vampiro em nenhum momento. Porém, toda sua atenção não fora suficiente para os movimentos rápidos do ser. Em um segundo, o vampiro estava parado em frente a eles com os dentes a mostra sem parecer notar que o fazia. Mas no segundo seguinte, os dois alunos foram jogados para trás, sentindo o corpo pesado do vampiro prender aos dois no chão de pedra gelada.



Neville não conseguiu raciocinar naquele intervalo de apenas um minuto. Quando deu por si, estava com as costas no chão, sentindo o frio subir por suas roupas e o sangue escorrer de sua nuca. Havia batido a cabeça com força e estaria inconsciente se não estivesse tão preocupado com Gina. O vampiro mantinha uma das pernas sobre o peito do garoto e apenas com aquele membro conseguia segurar Neville preso ao chão.



O vampiro parecia mais interessado em examinar Gina do que matá-la. Os dedos longos e pálidos percorriam toda a extensão de seu pescoço, parando ao chegar à clavícula. A mão circundou o pescoço e ele jogou os cabelos dela para trás com apenas uma sacolejada de sua cabeça. Gina não estava acordada, seus olhos estavam fechados e o peito dela não parecia se mexer. Neville sentiu as lágrimas chegarem aos seus olhos e, se ele pelo menos conseguisse encontrar a voz dentro de si, poderia gritar por ajuda.



O corpo de Gina foi erguido do chão, sendo puxado pelo vampiro até que este conseguisse chegar com o rosto ao pescoço dela. Por mais incrível que pudesse parecer, Neville se deixou pensar por um momento, ele ainda tinha forças e elasticidade de segurá-lo ao chão. Neville não tinha forças para erguer os braços e buscar a varinha que estava caída ao seu lado no chão. Ela não parecia tão próxima a ele, mas não custaria tentar.



- Não! – Neville se viu gritar, de repente, quando o vampiro enterrou os dentes afiados, sem piedade, no pescoço de Gina. Ele não tivera tempo de tentar fazer qualquer coisa, o sangue já escorria do pescoço dela, manchando as vestes quentes do vampiro tanto quanto seu vestido leve. Ela tinha a cabeça caída, continuava desmaiada. O que poderia ser bom, já que ela não sentiria dor alguma.



- Ok – Gina o interrompeu, acordando-o de seu pequeno devaneio. As cenas foram cortadas de sua visão e apenas o que restava era a escuridão. A escuridão e a jovem transformada ainda sentada em seu colo, com as pernas sobre as suas. Pelo menos, ela havia aquietado seu quadril, sem mais provocar enrijecimento algum. – Eu sou uma vampira agora?



A voz dela era calma, fria e indiferente, totalmente diferente de qualquer reação que qualquer outra pessoa teria diante daquela situação. Ela piscou muito rápido, entreabrindo a boca e jogando uma das pernas para o lado, empurrando o corpo para longe do colo de Neville. Ela puxou as pernas para perto de si mesma, encostando as costas na cabeceira de metal da cama barulhenta. Seu rosto ainda era inexpressivo, mas o modo como ela mexia os dedos era um indicador da confusão que ela sentia por dentro.



- Como aconteceu? – ela perguntou, de repente, sem esperar que Neville confirmasse ou negasse o fato. Talvez ela não precise de confirmação, ele pensou, virando o corpo para ela, encostando as costas no outro extremo da cama.



- Depois que ele bebeu seu sangue, ele a deixou deitada no chão. – Neville começou, deixando que a mente viajasse para a cena do acontecido, porém dessa vez, ele não fora carregado para a cena, tudo que acontecera com o vampiro estava apenas rodando em sua cabeça. – E veio até mim, eu já tinha perdido muito sangue, mas no intervalo de tempo que ele levou largando você, tirando a perna de cima de mim e se preparando para me atacar, eu consegui evocar minha varinha e... – ele se interrompeu, engolindo em seco.



- E o que?



- Usei algo que não devia.



- Uma maldição imperdoável? – ela mostrou admiração pelas mãos que se contorciam.



- Crucio – ele admitiu, depois de alguns segundos de silêncio. Era difícil para ele admitir que havia usado tal feitiço, pois fora aquele feitiço que acabara com a sanidade de seus pais, mas somente daquele jeito ele poderia ajudar Gina. Apenas se aproximando da desprezível mulher que acabara com a vida de seus pais ele poderia ajudar Gina e salvar a si mesmo. – É irônico, não é? Usar uma maldição imperdoável para salvar uma vida. Usar algo que pode matar alguém em vida de modo altruísta.



- Mas você não acabou com ele apenas com isso. - ela deduziu, sem respirar. Ela não precisava mais disso. - Crucio não mata, exatamente.



- Não – Neville admitiu, sacudindo a cabeça. – Mas foi suficiente para fazê-lo cair e tempo suficiente para mantê-lo no chão enquanto o socorro chegava.



Neville acabou sua narração naquele ponto. Gina sabia o que havia em seguida: comoção geral, todos querendo saber como aquele vampiro havia entrado em Hogwarts sem ser detectado, o reconhecimento pela coragem de Neville, principalmente vindo daqueles que sabiam o que realmente havia acontecido com seus pais e a temporada na enfermaria, sob os cuidados extremos de Madame Pomfrey.



Ele apenas não contou a ela como se sentia. Não quis colocar muito sentimento em sua narrativa, ou então acabaria chorando sem conseguir terminar. Ele queria dizer que estava feliz por ela não estar totalmente morta, mas completamente infeliz e com um sentimento de fracasso por ela ter se tornado o que havia se tornado. Ela até mesmo poderia ser a mesma Gina, menina inteligente, esperta, determinada e linda, mas sempre haveria aquela escuridão dentro dela. Sempre haveria aquela sede insaciável.



- Ninguém sabe o que fazer comigo agora – ela disse em voz baixa e, pela primeira vez, expondo algum sentimento. Era frustração aquilo que ela sentia? Ou era medo? Medo de si própria. Medo do cheiro que lhe chamava e cantava aos seus ouvidos. Medo de não conseguir se conter mais e atacar o pescoço de Neville, como diversas vezes naqueles poucos minutos em que estiva consciente, como o monstro que era, havia imaginado.



A veia pulsava e o coração parado dela começara a bater tão rápido que parecia impossível não ser ouvido do lado de fora. Seu peito vibrava e a saliva com gosto agridoce invadia sua boca. Ela lambeu os lábios, ainda presa ao sentimento de frustração e medo, mas mesmo assim hesitou em esconder o que queria. Tinha os olhos grudados no pescoço curto e rechonchudo do garoto. Ele não parecia o mesmo garoto gordinho e desajustado agora.



- Gina? – ele chamou, fazendo com que atenção dela voasse de sua veia para seu rosto. O que não adiantaria em nada para aplacar aquele desejo, já que a veia podia ser escutada, podia ser sentida. Tudo dentro dela vibrava, ela precisava se alimentar. Ele mordeu o lábio inferior, olhando para baixo, pensando no que dizer em seguida. – Dumbledore está conversando com seus pais e eles estão pensando num jeito de...



- De? – ela perguntou, respirando fundo sem precisar que seus pulmões se mexessem. – de me tirar de perto do convívio humano o mais rápido possível? De tentar reverter essa situação? – ela estava gritando agora, com a voz tão aguda que Neville podia ouvir os próprios tímpanos reclamando, vibrando.



O rosto dela havia se transformado em algo indistinto. Os olhos estavam apertados, os cílios pressionados um contra o outro enquanto as sobrancelhas se arqueavam tanto que parecia impossível de seu rosto conseguir comportá-las. A boca entreaberta deixava os dentes afiados e caninos salientes visíveis. Ela não tinha mais aquele rosto lindo e angelical que só Gina Weasley parecia possuir, mas se transformara num quadro pintado por luxúria e terror. Apenas uma pergunta pairava os pensamentos de Neville: O que aconteceria com ela, agora?



Gina ergueu-se da cama de repente. Os cabelos sem vida balançaram lentamente atrás dela como se fossem meras cortinas em uma casa abandonada. E como as meras cortinas que pareciam, os cabelos seguiram balançando até que Gina se aproximou de uma das cortinas da enfermaria. Merlin, Neville sussurrou dentro de si, temendo pelo que ela faria.



Como que num surto de premonição, ele correu até ela, mas não conseguira ser rápido o suficiente para a velocidade extra-humana da vampira recém nascida. A cortina já havia sido aberta. A cortina havia sido aberta e a luz penetrava com força no aposento amplo. A janela alta agora estava sendo manchada pela fumaça que exalava daquele corpo já sem vida. Gina já não existia, o que jazia na frente de Neville era um mero monte de cinzas.

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