Savin' Me
Eu andava distraída como sempre. Os pés não pareciam tocar o chão, tamanha era a minha distração. E alguém poderia me culpar? Alguém que nunca tenha lido Conan Doyle em sua vida talvez, mas quem conhecia a literatura do mestre não conseguiria mesmo me culpar por andar tão distraída. E, afinal, eu não tinha porque deixar de acompanhar os passos de Sherlock através das ruas de Londres atrás do misterioso charreteiro enquanto andava pelos corredores de Hogwarts. Eu conhecia aquela escola como se fosse a palma da minha mão.
E foi quando o charreteiro entrou na sala de estar de Sherlock que eu fui surpreendida de tal maneira que me parece ainda muito surreal para ser dito em voz alta e não parecer loucura. Minha distração quase custou minha vida. Teria sido um terrível preço a pagar, não fosse a heroína de cara amassada Cho Chang. Caramba, como eu queria que tivesse sido outra pessoa, mas veio a ser Cho. A menina parada no lugar certo, na hora certa, pronta para me jogar para fora do meu caminho no exato momento em que aquela enorme estátua de mármore despencou ao chão. Ela teria esmagado minha cabeça.
- Oh, por Merlin! – eu consegui exclamar, muito alto, jogada ao chão com minha mochila jogada para um lado e o meu livro de Conan Doyle demolido pela estátua. Eu tinha certeza de que suava frio e eu sentia as lágrimas caírem pelos meus olhos, sem sentir uma grande emoção além da surpresa e do alívio. Eu ao menos conseguia saber como eu me sentia. Era uma coisa estranha.
Era como se eu não conseguisse explicar o modo como eu me sentia de nenhuma maneira. Eu sentia que eu estava ali, mas meu corpo era tão leve e tão abatido ao mesmo tempo que eu comecei a duvidar que eu ainda estivesse viva. Ergui-me nos quadris depois de alguns segundos totalmente imobilizada. Eu não sentia meus membros, não sentia meus músculos e muito menos o cabelo bagunçado que caíra sobre meus olhos durante a queda. Cho estava do outro lado do corredor, me olhando admirada.
Admiração e surpresa pareciam pouca coisa, já que o rosto dela estava limpo, leve e ela começara a sorrir. O rosto, normalmente mal humorado e arrogante, agora transparecia a mais pura alegria e uma espécie de... Ninguém acreditou em mim quando eu contei, mas eu jurei que tinha visto uma sensação de “dever cumprido” no modo como ela me cumprimentou com a cabeça e saiu caminho apressada pelo corredor. O caminhar leve era mais uma prova daquilo que eu via de estranho nela.
Eu respirei fundo, ainda observando o caminhar dela quando notei que havia algo errado. Minha cabeça já tinha se virado para a minha mochila, mas eu voltei os olhos para o corpo de Cho que praticamente dançava pelo corredor. Era tão inacreditável que eu não havia me atrevido a contar para ninguém, mas ela tinha uma espécie de cronômetro acima de sua cabeça.
Ok, eu poderia ter batido minha cabeça, estar vendo coisas ou ter minha visão embaçada, mas não! Eu tinha certeza de que estava bem e que aquilo realmente estava acontecendo. Cho Chang, garota que acabara de salvar minha vida, tinha um cronômetro com oito números no alto da cabeça.
Eu não conseguia acreditar no que via. Observei Cho Chang e seu cronômetro enquanto ela ainda era visível pelo corredor. Mesmo depois que ela virou uma esquina e desapareceu de vista, eu continuei com meu olhar incrustado naquele corredor, esperando que ela voltasse e que aquela visão dos números fosse apenas uma visão; algum trauma de quem tinha sofrido um atentado recentemente e que começara a imaginar coisas. De repente, estar louca me parecia muito mais agradável do que estar sã e estar enxergando coisas que ninguém mais via.
- Hermione – ouvi a voz desajeitada de Neville gemer enquanto uma mão grande e de dedos gordinhos me tocava o ombro. Eu ainda não tinha me deixado pensar nisso, mas eu continuava sentada no chão de pedra do corredor, com os cabelos bagunçados e atirados sobre o meu rosto. Minha mochila jazia longe de mim enquanto meu livro estava destruído embaixo da estátua. Naquele momento, não me parecia nada demais perder um livro para uma estátua homicida. Voltei à realidade, virando a cabeça até que meus olhos encontraram o rosto de Neville. – Você está bem?
Ele era gentil, tão gentil que eu sorri quando nossos olhos se encontraram. Eu deixaria que ele me ajudasse e estava pronta para me apoiar em seu braço e deixar que ele me puxasse para cima, recuperando minha dignidade, quando vi os números correrem sobre sua cabeça. Eles se mexiam e pareciam diminuir, ao passo que começavam do inicio novamente. O infinito de números correndo sobre a cabeça de Neville. Uma idéia assustadora. Tão assustadora que eu cerrei meus olhos, respirando o mais fundo que eu consegui.
- Eu preciso da Ala Hospitalar – eu sussurrei baixo; tão baixo que eu mal pude me ouvir. Porém, Neville pareceu ter me entendido, pois, mesmo sem minha ajuda, me ergueu do chão e me sustentou sobre seus braços, passando meu braço sobre seu pescoço.
Eu era um peso morto, um peso que era carregado para a Ala Hospitalar por um colega gordinho que não parecia ser capaz de uma gentileza como aquela. Neville fazia força, era visível e eu ajudava como podia. Eu estava num daqueles estados em que o paciente ao menos consegue se mover. Eu estava estática. Porém, conseguia ajudar Neville com meus pés. Eu me movia devagar, mas ajudava. Meus olhos continuavam cerrados. Eu não queria correr o risco de me assustar novamente com aqueles números. Isso se eles continuavam ali, sussurrei para mim mesma, me roendo com a curiosidade de abrir os olhos.
- Um degrau – Neville me disse, projetando meu corpo por sobre o degrau. Durante aquela pequena parada, eu venci meu medo e abri meus olhos. O que eu vi não me agradou. Eu sabia que não iria me agradar, mas mesmo assim abri meus olhos. Eu estava louca, precisando mesmo da ajuda da Madame Pomfrey. Talvez também de um psicólogo; sendo bruxo ou não.
Meus olhos presenciaram a maior presença de cronômetros sobre as cabeças das pessoas, do que eu seria capaz de imaginar que poderia acontecer. Enxergar os números sobre a cabeça de Neville e sobre a cabeça de Cho parecia pouca coisa diante do número absurdo de alunos com oito números rodando sobre suas cabeças, que havia no Salão Principal.
- Porque você me trouxe aqui? – eu vacilei, minha voz se tornando um pequeno borrão de algo que fora um dia. O tom mandão característico tinha desaparecido e em seu lugar estava a voz de uma menina medrosa que era deixada pela primeira vez sozinha em casa, no escuro. Apesar de eu ter vacilado, minhas pernas conseguiram me manter em pé, mesmo quando eu me afastei um pouco do suporte gentil que Neville era.
Eu não conseguia afastar meus olhos. Apesar de triste e assustador, era impressionante. Todos aqueles alunos, reunidos ao redor de suas mesas me pareciam tranqüilos demais para pessoas que carregavam números sobre suas cabeças sem ao menos saberem. Oh Merlin, eu gemi por dentro, mordendo o lábio inferior. Eu queria fechar meus olhos e fazer aquilo desaparecer. Porque comigo? Eu me perguntei, depois de fechar os olhos e abri-los com rapidez, torcendo para que os cronômetros desaparecem.
Neville arregalou os olhos quando percebeu que estava indo para o lado contrário do castelo. Eu estranhei, mas Neville não era um garoto muito esperto, apesar de ser muito sensível e gentil. Concentrei-me fortemente no rosto redondo, enquanto via a sombra daqueles números se colocarem em sua testa.
- Você ainda quer que eu a leve até a Ala Hospitalar? – ele perguntou a meia voz, se certificando de que eu conseguia ficar sobre meus pés antes de afastar o corpo gorducho que me servia de apoio. Eu sorri gentilmente.
- Claro - respondi, virando de costas para o salão e deixando que ele carregasse minha mochila pelo resto do caminho. - Eu não estou livre de um desmaio, não é mesmo?
Argumentei, apoiando minha mão em seu ombro, enquanto seguia o caminho até a Ala Hospitalar. Na verdade, apesar de ele carregar aqueles números, eu não queria ficar sozinha. Parecia mais assustador ainda estar sozinha do que caminhar ao lado de um daqueles cronômetros. Mantive minha cabeça baixa durante todo o percurso, apenas me preocupando em me perguntar o porquê daquilo. Os três minutos que levamos atravessando o castelo pareceram séculos.
- O que você tem? – perguntou Neville, parando na porta da Ala Hospitalar, com as costas encostadas em um armário de vidro. – Você veio silenciosa durante todo o caminho e evitava olhar para as pessoas.
Eu abri a boca para argumentar que aquilo poderia ser um reflexo do meu trauma de ter escapado da morte certa, mas ele fora mais rápido e acabou com a minha desculpa pronta.
- É algo mais do que reflexo do acidente, Hermione.
Não respondi, fiquei quieta, olhando para frente, evitando olhar o rosto dele. Eu conseguia enxergar o reflexo de seu cronômetro pelo vidro do armário em que ele estava encostado. Pelo vidro eu também conseguia enxergar o meu reflexo. Meu reflexo pálido e sem cronômetro nenhum sobre a cabeça. Aproximei-me do vidro, levando uma das mãos a me apoiar nele e a outra ao alto da cabeça, onde deveria estar o meu cronômetro.
Era mais do que estranho, e eu abominei a falta dos números sobre a minha cabeça, apesar de estar feliz de não ter que me preocupar em nunca mais olhar para meu próprio reflexo. Neville virou-se para o vidro, assim como eu fazia, mas diferente de mim, não era o susto e nem o medo que ele tinha estampado em seu rosto; mas sim, preocupação.
- Preciso entrar – eu disse, me afastando dele e rumando para as portas pesadas da Ala Hospitalar, porém fui parada a meio caminho por uma legião de Corvinos que carregavam uma garota em seus braços. Ela estava visivelmente desmaiada e os números em sua cabeça rodavam muito mais rápido que o de qualquer outro aluno presente naquela parte do castelo.
Impressionei-me comigo mesma por não ter me deixado assustar mais do que de devia com o aparecimento de tantos cronômetros juntos, mas eu apenas consegui me deter no cronômetro da garota desmaiada. O rosto dela estava pálido e, por sua boca entreaberta, era expelido o ar que saía de seus pulmões. Era dificultoso, isso era mais do que visível. Porém, mais assustadora do que aquela cena eram os números de seu cronômetro.
Os oito dígitos se transformaram rapidamente em quatro e ali eu podia ver que o cronômetro não voltaria ao inicio. Os quatro dígitos rapidamente se transformaram em apenas três e eu pude perceber o que não conseguiria perceber antes; Eu me aproximei devagar da legião de Corvinos quando um deles conseguiu abrir as portas e eles arrastaram a garota desmaiada para dentro.
O cronômetro dela contava exatamente com um centésimo de segundo quando ela deu seu último suspiro e cerrou os olhos. Fora como um relógio que perdera a bateria instantaneamente sem que ninguém pudesse repor as pilhas e fazê-lo voltar a funcionar. Eu não pude fazer nada; não tinha capacidade de fazer nada enquanto aquela menina sofria os últimos segundos de vida.
Com morbidez suficiente para o restante de uma vida, eu descobri para o que servia aqueles cronômetros sobre as cabeças das pessoas. Voltei-me para Neville com uma lágrima nos olhos, satisfeita por ver que seu cronômetro ainda contava com os oito dígitos e que não fazia a menor menção de diminuir seu número. Ele se aproximou e me consolou num abraço sincero.
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A corvina que eu vira morrer havia tido uma parada cardíaca devido a uma fraqueza que ela tinha desde o nascimento. Eu sabia que nunca poderia ter feito nada, mas continuava sentindo que eu era uma inútil e esse senso de responsabilidade não melhorava em nada a minha questão de sanidade. Os cronômetros continuavam a rodar sobre as cabeças das pessoas e eu continuava a tentar fugir deles, apesar de não conseguir retirar os olhos dos dígitos dançantes.
- Sabe – eu comecei a dizer para Neville, sentado ao meu lado na arquibancada enorme no campo de quadribol. Ele havia me tirado de perto da Ala Hospitalar quando percebeu que a morte da garota não me fizera bem. Sensível e esperto nesse ponto. – acho que as coisas sempre acontecem por uma razão.
- E porque você diz isso? – ele interrogou, olhando para o campo de quadribol, onde o time da Grifinória treinava. Podíamos ver Gina carregando a goles até os arcos por diversas vezes. – Por causa da menina?
- Por tudo – eu respondi, levando minha cabeça até meus joelhos. Minha testa tocou delicadamente a parte mais baixa das minhas coxas. Eu podia sentir o sangue descer até minha cabeça, mas isso me distraía do cronômetro ligeiro de Neville. Durante aqueles dois segundos que fiquei quieta, me deixei pensar no que o que aqueles dígitos poderiam refletir. Neville tinha a contagem mais rápida que eu já havia visto enquanto Gina tinha uma contagem mais lenta, elegante.
- Tudo o que? – ele insistiu, vendo Gina desviar de um balaço.
- Você acreditaria se eu dissesse que posso saber quando uma pessoa está para morrer? – eu disse muito rápido, numa voz baixa e cavernosa. Eu duvidava que ele pudesse ter ouvido alguma coisa, mas ele ouviu.
- Como assim? – não parecia apavorado. Eu esperava que ele arregalasse os olhos e que me chamasse de maluca, mas ele continuou olhando em frente, prestando atenção aos movimentos dos jogadores.
- Será que é possível uma pessoa ser escolhida por alguma força maior para ter poder de interferir no momento de morte da outra? – eu perguntei, mas minha pergunta não fora direciona a Neville. Eu a recitei mais para mim do que para ele. Era uma enorme dúvida que me surgira na hora. Será que eu havia sido escolhida para salvar as pessoas? Salvar as pessoas quando eu pudesse salvá-las?
- Do que você está falando? – ele se virou para mim, os olhos apertados no rosto redondo. – de um poder místico, uma força espiritual?
- Estou falando de salvar as pessoas – eu retruquei, respondendo a mim mesma com aquela afirmação. Era um tanto estranho, principalmente porque eu parecia estar aceitando bem aquela situação. Nem por um segundo, durante aquele delírio, me deixei pensar que aquele poder poderia ser a pior coisa com a qual eu já tivesse me envolvido. E, sim, eu considerara Voldemort na conta. – Estou falando de ser o herói de alguém! O herói de muitas pessoas!
Neville apertou ainda mais um dos olhos, enquanto eu sorria como uma boba. Suspirei, pronta a aceitar que aquele era meu dever, mas acidentalmente virei minha cabeça para o campo de quadribol; aquele movimento mudou tudo. Eu me levantei de imediato, chocada. Meu corpo parecia duro e eu sentia que meus músculos não queriam me obedecer.
Gina voava com a Goles debaixo do braço em direção aos arcos rivais, pronta para marcar mais um ponto naquele mesmo dia, porém apenas uma coisa me chamava a atenção nela. O cronômetro em sua cabeça aos poucos começara a diminuir. Os oito dígitos se tornaram seis e logo em seguida viraram quatro. Minha mente girava e eu tentei encontrar o motivo da morte.
O campo parecia inofensivo, não fosse o pesado balaço que voava em direção à cabeça dela. Gina, distraída, não o notou, mas eu o vi e puxei a varinha com uma rapidez impressionante. O cronômetro agora tinha três dígitos e eu não podia perder mais tempo. Apontei a varinha para a vassoura de Gina e fiz com que ela derrubasse a garota.
A ruiva não se machucou ao cair ao chão, apenas derrubou a bola. Minha varinha voltou ao ar e atingiu em cheio o balaço, rasgando-o em pedacinhos no exato momento em que todos perceberam o que ele faria com a artilheira, caso a atingisse. Todo o time desceu ao encontro da menina, enquanto eu e Neville corríamos escada a baixo a fim de encontrá-la também.
Não pude deixar de notar a expressão de dever cumprido no meu rosto. Justamente por culpa daquela expressão, eu percebi o que Cho Chang sentia quando me salvou da estátua homicida.
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Eu pretendia xingar Hermione. Pretendia gritar tanto com ela que minha garganta doeria; Isso se ela não tivesse feito aquilo para me ajudar. Eu via os pedaços do balaço errante jogados pelo chão, recém destruídos por ela. Minha heroína. Nada melhor do que poder chamar minha melhor amiga de heroína. Ela se aproximou de mim, estendo a mão para me ajudar a levantar e eu perdi minha voz dentro de mim.
Meu rosto se ergueu para agradecer com um sorriso que ficou preso em meus lábios. Tentei recuperar minha voz, mas ela parecia ter fugido para algum lugar distante onde nunca mais poderia ser encontrada. O rosto continuava o mesmo; aqueles mesmos olhos sinceros e o mesmo tom de pele rosado, mas agora sua testa tinha a sombra de alguma coisa que rodava sobre sua cabeça.
- Tudo bem? – ela sussurrou, me erguendo do chão, enquanto eu levava minha mão sobre sua cabeça e tentava expurgar aquela espécie absurdamente estranha de cronômetro que corria infinitamente sobre seus cabelos castanhos. Ela não tentou me impedir, apenas virou-se para Neville e sorriu. Sua voz saiu certa do que falava quando ela disse a frase em direção a ele: - Definitivamente, todo mundo é o herói de alguém!
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