Capítulo 01




Os olhos abriram para mais um dia, encarando o cortinado negro de sua cama. Seus pais lhe falaram que deveria agradecer todas as manhãs pela vida que ainda tinha, mas não conseguia. Não conseguia nem queria agradecer por aquela vida terrível e miserável.


Hipoteticamente, não era uma vida exatamente miserável a que levava, em comparação com vidas alheias verdadeiramente terríveis. Mas viver lhe parecia um castigo, já que via o penoso sobreviver daqueles que não tiveram tanta "sorte" como ela e não podia fazer absolutamente nada para ajudá-los. Não importava o quanto seus ideais – cultivados durante uma Inglaterra em guerra – berrassem que deveria resistir, que precisava lutar por eles.


Impotência era tudo o que sentia todas as manhãs que acordava e começava todas as suas obrigações matinais – e fúteis, em sua opinião.


Retirou os cobertores igualmente negros e abriu as cortinas da sua cama, encontrando um quarto iluminado pela luz matinal. Não era muito grande, mas – muito provavelmente – maior do que casas inteiras. Suspirou, encaminhando-se para a penteadeira que ficava em frente aos pés da cama. Era feita de mogno negro, com alguns detalhes em prata que pareciam nunca parar de brilhar ostensivamente aos seus olhos. As maçanetas das gavetas também eram prateadas e um símbolo era desenhado na frente.


Não deu muita atenção, apenas encarando sua imagem no espelho.


Hermione não se reconhecia direito ao observar aquela imagem refletida. Sua pele, que já era branca, havia ficado ainda mais clara pela falta de luz do sol. Seus cabelos pareciam mais lisos, pois eles cresceram até a altura de sua cintura, fazendo os cachos ficarem apenas da metade para baixo. Não tinha uma aparência mal-tratada.


A escova já estava em sua mão antes de perceber. O hábito. Por isso, dava para notar o que realmente não reconhecia na imagem. O brilho do seu olhar que normalmente habitava ali em tempo integral desaparecera. Sabia que em alguns poucos momentos ele voltaria, mas as situações estavam se tornando cada vez mais raras a medida que o conformismo da situação penetrava em sua mente.


Seus lábios moveram-se minimamente num sorriso triste quando seu olhar baixou até a faixa de couro negro que tinha em seu pescoço, vendo as belas e trabalhadas letras que havia numa pequena placa dourada costurada sobre o couro. Elas formavam as palavras "Lorde das Trevas".


Terminara sua tortura em frente ao espelho poucos minutos mais tarde de sua inspeção e levantou-se, indo diretamente ao armário do mesmo estilo da penteadeira. Mogno negro, com enfeites em prata e nas maçanetas o mesmo símbolo.


Apesar de ser muito grande, ela só podia abrir uma das portas, onde se encontraria a roupa que iria vestir naquele dia. Gemeu quando observou o que deveria usar. As vestes eram negras, impecavelmente negras, sem qualquer traço de cinza. Nas bordas, extremamente chamativos, havia adornos feitos em fios dourados.


Retirou a camisola e pegou o cabide com as roupas. Dentro das vestes, havia as conhecidas calça e camisa negra. Arrumou-se, já se preparando para o inevitável. Seguiu até a única porta do aposento e abriu-a.


Logo na entrada, Nagini a esperava com ar ansioso. Mas antes que pudesse fazer alguma coisa, um silvo foi ouvido, chamando a atenção da cobra e fazendo-a deslizar até seu mestre, que encontrava-se sentado em uma cadeira lendo alguns papéis sobre a escrivaninha.


- Dormiu bem? – ele perguntou com ar indiferente, sem retirar os olhos dos papéis.


- Não sonhei. – respondeu rispidamente, enquanto se encaminhava até o lado dele.


Ele ergueu a cabeça, mostrando o mínimo sorriso que se instalara em seus lábios, enquanto a encarava se aproximar. Não estava feio, como era até alguns anos antes. Fazia talvez uns 7 anos que ele decidiu que seu corpo fabricado já não era útil com seu inimigo morto e já era possível trocá-lo. Escolheu um bruxo de seu agrado para tomar-lhe o corpo, utilizando um ritual de Magia Negra.


Agora aparentava ter algo próximo a 30 anos, possuía cabelos ondulados, nariz, tinha um corpo alto, magro e sem músculos definidos. Infelizmente, os belos olhos azuis tão claros e límpidos do bruxo não sobreviveram. Eles avermelharam-se, ficaram rubros e suas pupilas se transformaram em fendas, como os olhos de uma cobra. Ao menos agora eles tinham pálpebras para deixá-lo com um ar mais humano.


Assim que dera a volta, ajoelhou-se e abaixou a cabeça. Com a mão que não se apoiava ao chão, deixou-a junto ao peito e apertou com força as unhas contra sua palma.


- Obrigada, milorde, por poder servi-lo mesmo tendo sangue tão impuro. – recitara de modo automático, ainda levemente forçado.


- Pode levantar-se.


Levantou-se, encarando os rubros olhos que zombeteavam de sua condição impotente, fazendo-a demonstrar pelo seu olhar um pouco de sua fúria por aquele ritual humilhante praticado todas as manhãs.


No entanto, naqueles dez anos de convivência forçada, reconhecia que até as ordens mais fúteis – ou falta das "imprescindíveis" – tinham um propósito. Inferniza-la, disciplina-la, impedir possíveis fugas ou diverti-lo com sua demonstração de criatividade e perspicácia.


Sabia também que não havia escolhido-a no meio de tantas possibilidades de escravos por ser muito "sortuda" – ou azarada, no caso.


- Vamos a uma reunião daqui a pouco. Pode se divertir com Nagini enquanto não saímos. – ele desviou os olhos, voltando a calma indiferença de antes e retornando a leitura dos papéis.


Nagini a esperava ansiosa ao lado da cadeira que ela sempre se sentava, um pouco ao fundo, próximo de algumas estantes. Assim que sentou-se, Nagini foi se aconchegar sobre seu colo e enrolar-se em seu tronco. Ergueu a mão, acariciando a cabeça triangular, sentindo a áspera e grossa pele de Nagini. Seus olhos observaram o tapete trabalhado sob seus pés, mas o desenho tão conhecido não era o que realmente via. Eram apenas lembranças esparsas com uma ordem relativamente cronológica que buscava sempre lembrar todos os dias. O dia da derrota final era sempre o início...


Sua primeira lembrança do dia, depois de tanto tempo, parecia começar a ficar meio vaga, mas como num exercício para não esquecer, esforçou-se e lembrou.


"A imagem de Rony inerte e ensangüentado à sua frente, em meio a vários corpos estirados. Não sabia como conseguia ainda manter-se ajoelhada com todos aqueles ferimentos, só sabia que não conseguia controlar as lágrimas que caiam dos seus olhos, atravessando todo seu rosto até desmanchar-se sobre a pele fria do corpo sem vida.


Em poucos minutos iriam declarar sua rendição. Os alunos não precisavam morrer, mesmo que suas vidas estivessem condenadas. Claramente seriam executados."


Não houve muito mais tempo para seu exercício de recordação, pois ele simplesmente levantou-se da cadeira. Tinha chegado a hora de irem a tal reunião.


- Já está ficando na hora. – ele pronunciou-se, organizando os papéis.


Observava-o atentamente enquanto mexia na escrivaninha. Prendeu a respiração em expectativa quando os dedos abriram uma das gavetas. Mesmo depois de quase quatro anos, tinha esperanças que só fazia isso para guardar os papéis. Não, ele retirara da gaveta uma correia dourada e guardava no bolso das vestes verde escuras.


- Já lhe disse que irei me comportar. – ela falou num misto de decepção e indignação pela falta de confiança que ele tinha.


- E eu que confio plenamente. – ele disse com um sorriso de lado, enquanto a olhava de soslaio. Claro que ele só confiava plenamente se tivesse algo com que ameaça-la.


Ainda lembrava-se a primeira vez que ele usara aquilo...


"- Está tentando fugir, milorde! – ouvira a voz esganiçada de Bellatrix, fazendo-a pular de susto e olha-la.


Bellatrix encontrava-se no vão da porta que dava para a sala ampla onde reunia todos os comensais que tinham participado daquela guerra. Estavam discutindo alguma coisa que ela não queria saber e, como na época ele deixava, ficou numa sala ao lado onde se reunia outros escravos que permaneciam num silêncio mortal.


Minutos antes, uma escrava tinha se interessado em sua coleira. Como tinha sido a primeira vez que via outros escravos, percebeu que a sua era a única que tinha uma placa escrita o nome de seu dono. Todas as outras eram simples faixas de couro. A garota estava verificando-a quando Bellatrix chegara.


Não demorou milésimos de segundo e seu dono já estava junto dela. Havia um brilho de satisfação cruel em Bellatrix que denunciava claramente que ela estaria encrencada em alguns minutos.


Olhou desamparada para o Lorde das Trevas. Sabia que ele poderia ler sua mente. Não tinha sequer cogitado uma tentativa de fuga. Mas ele estava imperscrutável, enquanto a encarava.


- Encantou uma das escravas para que retirasse a coleira. – acusava sem piedade Bellatrix.


- Não! Não é-é verdade! N-não fiz na-nada, milor-lorde. – tentou se defender, gaguejante. Um aglomerado de comensais já se amontoava do lado de fora.


- Venha até aqui e retire a capa, escrava. – ele ordenara de um modo tão indiferente e gélido que seu corpo estremeceu. Ele nunca a tinha chamado daquele jeito tão autoritário.


Sem escapatória, obedeceu a suas ordens. Retirou a capa e a entregou nas mãos dele. Viu dos bolsos ele retirar uma correia dourada que nem sabia que ele carregava.


Saíram do aposento, em silêncio. Quando chegaram ao salão de reunião, mandou deitar-se de bruços sobre a mesa que ficava ao centro. Então ela entendeu porque Bellatrix estava tão vidrada nos acontecimentos.


Os próximos momentos, que não pode definir se eram segundos, minutos ou horas, foram cheios de dor, desespero e humilhação. Ele havia cortado sua blusa e deixado suas costas à mostra enquanto utilizava a correia para "disciplina-la" na frente de todos os comensais e escravos.


Ao final, tudo que sobrara de si mesma era um corpo cheio de cortes e sangrando, desidratado de tanto chorar, guardando retalhos de uma alma dilacerada. Não produzia nem gemidos e, provavelmente, só respirava por pura teimosia.


- O espetáculo acabou. – recitou a voz ainda gélida e indiferente.


Parte do que ainda sobrava de consciência sabia que todos haviam ido embora e um pano era enrolado em seu corpo com cuidado. Um par de braços delicadamente segurou seu corpo fragilizado e o mundo enegreceu quando fizera um esforço para saber quem era. Nagini foi a última visão que teve, e parte do rosto de seu mestre."


Desviou os olhos para desvanecer as sensações ainda vívidas em seu corpo e em sua alma do acontecimento. Ocorreu outros, mas aquele fora marcante pelo simples fato da injustiça. Novamente ouviu o silvo de chamada e Nagini imediatamente começou a sair e se desenrolar de seu corpo para ir até seu mestre.


- Nagini vai ficar comigo mais tarde, por que não poupa tempo e esforço e deixa que a carregue? – sua voz ficou levemente mais endurecida enquanto se levantava. Incrivelmente, Nagini era bastante delicada e nunca deixava marcas visíveis o suficiente em suas roupas que denunciassem que ela estivera ali. Com um pequeno alisamento, as mínimas dobras já sumiam.


- Primeiro: você não tem forças para carregá-la. Segundo: não quero que minha mascote fique escondida por baixo de suas escamas. Gosto de mantê-la à mostra. – ele aproximou, passando os dedos pelos cabelos castanhos impecavelmente arrumados, colocando-os um pouco para trás e deixando a coleira mais à mostra – Principalmente quando está usando essas vestes que combinam perfeitamente com a coleira que lhe dei.


- Que você me impôs. – ela corrigira, fuzilando-o.


Ele apenas sorriu com um brilho maldoso no olhar enquanto terminava de colocar a mecha do seu cabelo que tocara anteriormente, colocando-a por detrás da orelha com delicadeza.


- Sabe o que eu quero. – ele finalizara, enquanto seguia para a porta.


Por isso odiava aquelas vestes. Era feita sob medida para ela e só usava em ocasiões que ele considerava serem muito importantes. Era o dia que deixava de ser escrava para ser um troféu. Era uma das poucas situações nas quais ele não a deixava fazer mais nada além de segui-lo fielmente – com uma fidelidade que não existia – e sempre permanecer no mesmo aposento em que ele se encontrava, caso, milagrosamente, ele deixasse que ela fizesse algo além de permanecer ao seu lado em silêncio.


Abaixou os olhos, sem esperança de que aquela rotina infernal mudasse. Suas recordações lhe flagelaram. Aquelas tão nítidas quanto as de pouco tempo antes...


"Não sabia há quantas horas, minutos ou segundos encontrava-se sentada, amarrada pelos dois pulsos aos braços da cadeira e os tornozelos, às pernas. Naquele momento, parecia que seu estômago era consumido pela fome que não tinha sentido durante a semana, assim como a sede pela falta de água. Condenados à morte não precisavam se alimentar, diziam os carcereiros. Incapaz de permanecer em sua posição de proteção, sentiu-se à mercê dos fantasmas que assombravam sua mente. Por isso, agora, seus olhos buscavam alucinadamente algo para ocupá-la.


Escritório dos diretores. Escrivaninha logo à frente, cheia de papéis. Havia uma estranha gargantilha de couro negro com uma pequena placa dourada costurada, mas da posição em que estava só percebeu que tinha algo escrito, sem saber exatamente o que era. De longe, lhe deu uma péssima alusão a uma coleira canina muito grande.


As estantes continuavam abarrotadas de livros e poucas coisas haviam mudado. Muito pouco tempo, sim, era por isso. Estava ali há muito pouco tempo. Ela pensava com certo desespero, arranjando trabalho para a própria mente.


Teria dado um pulo da cadeira ao sentir algo gelado roçar seu pé, mas o máximo que conseguiu foi sair milímetros do assento, seus olhos nervosos encarando o que era o gelado ainda a roçar seu pé.


Nagini deslizava calmamente e repousava uma parte de seu corpo sobre seu pé para chamar-lhe a atenção. Uma revolução mental sucedeu-se à essa visão e toda sua inatividade naquela semana fora revertida a uma energia acumulada, que queria ser liberada naquele instante. Queria matar aquela maldita cobra a qualquer custo e naquele momento.


- Milorde, sei que não necessita de escravos, mas se faz tanta questão de ter um, não prefere um de melhor reputação que essa sangue-ruim condenada por resistência? Sabe quantos problemas ela nos deu e era uma das melhores amigas daquele pirralho Potter. Claramente, continuará dando problemas se não lhe dermos um fim definitivo! – a voz esganiçada de Bellatrix, com aquele toque de submissão, mas ao mesmo tempo nervoso, talvez até enciumado, fez Hermione paralisar.


- Quero dar uma imagem mais misericordiosa aos meus súditos, Bella, e nada melhor do que poupar a vida de um dos meus mais acirrados inimigos e lhe dar o privilégio de ser meu escravo. Seria a mascote perfeita para simbolizar o espaço que reservei a esses usurpadores em nossa sociedade purificada.


- Compreendo. – não havia satisfação na voz dela quando a ouviu, mas não parecia ousar ficar contra o adorado mestre – E quanto aos alunos mestiços e sangues-ruins? Como irá distribuí-los entre os nossos, como prometeu? – ouviu a porta sendo aberta. Hermione estava muito atenta ao que eles falavam. Praticamente prendia a respiração.


- Mais tarde irei fazê-lo. Mais tarde... – respondeu com uma calma que se arrastava em cada palavra, como uma pessoa que não iria se irritar com algo tão banal.


Ouviu o barulho da porta se fechando. Ainda encarava vidrada Nagini à sua frente, mesmo que não a olhasse de verdade. Seus músculos se tencionaram."


Não conseguia imaginar o que lhe aguardava naquela época. Pela pouca idade, ainda era ingênua e, não tendo para onde fugir, tornara-se impetuosa – algo que ganhara pelo puro desespero que sentia – e incrédula. Duvidava que ele realmente estivesse interessado em escravizá-la, pois era como Bellatrix havia dito. Já dera muito trabalho e não duvidava que ele soubesse sobre as destruições das Horcruxes.


Sentiu o braço dele sobre seus ombros, acordando-a para a realidade. Entrou no carro que esperava para levá-los ao prédio de relações públicas. Posicionou-se ao centro, pois ele não "gostava" que o Povo Inferior – composto pelos trouxas escravizados e outros povos, como os duendes e puros-sangues miseráveis – ficassem vendo-a. Ficar a uma distância segura de todas as janelas produzia a privacidade que ele queria.


Apenas a classe de elite sabia como e quem era. Era a pior coisa do mundo sentar-se entre seus piores inimigos e receber fugazes olhares de irritação, desejo ou desprezo.


- Qual livro separou para mim, hoje? – perguntou de modo displicente, enquanto observava o motorista ir abrir a porta da garagem onde se encontravam. Sentia um dos braços dele passando por seus ombros, o gesto dele para indicar sua posse sobre ela.


Já havia virado um certo hábito que ele a ocupasse com leitura enquanto estava na reunião. Não sabia exatamente a razão para essa decisão, mas não reclamava. Ocupava sua mente ao invés de verificar detalhes insignificantes do ambiente, que só a irritariam pela falta do que fazer, e ouvir os planejamentos que a deixavam enojada.


- A Arte da Produção de Venenos. – ele sorriu de lado, sem necessitar virar o rosto e saber a indignação dela.


Isso porque aquele fora o primeiro da série que ele havia lhe dado para ler, mas o único livro que recusara por conter figuras. Já tinha que aturar ter que ler sobre Magia Negra, ter figuras para representar as atrocidades já era pedir demais!


- Já disse que não vou ler livros com figuras. Principalmente os seus. – sibilou baixo.


Ele aproximou o rosto numa rapidez anormal e, num reflexo, abaixara o próprio, encarando o colo onde repousava suas mãos e seus músculos se tencionam.


- Não acha que já está bem grandinha para lê-los, querida mascote? – ele sibilou de volta, bem próximo ao seu ouvido. Neste momento, retirou de um dos bolsos o maldito livro e colocou-o sobre o colo dela, em cima de suas mãos. Sentia o rosto dele muito próximo enquanto ela encarava a capa do livro fixamente. – Já leu sobre magias bem mais atrozes... qual o problema de algumas figurinhas de mutilação com animais? – continuou, sentindo os dedos a brincar com suas mechas de cabelo.


Parecia ter lembrado o que era coragem e odiou-se por isso momentaneamente, tentando arranjar uma resposta cínica a altura rapidamente em sua mente.


- O problema está que letrinhas são muito mais meigas do que figurinhas. – ela respondeu no mesmo tom infantil, com um toque de ironia, voltando os olhos para ele de soslaio, sem perceber que afastava um pouco a cabeça para aumentar a distância do contato visual instintivamente.


- Não vai poder conviver apenas com as letrinhas. Então, comece a se acostumar com as figurinhas meigas desse livro, para que eu possa lhe dar livros com figurinhas menos meigas. Quero ampliar seu leque de leitura de agora em diante.


A porta do carro bateu, trazendo Hermione para a realidade. Estava tensa, com os nervos à flor da pele. Os olhos rubros estavam tão próximos aos seus que dava para ver nitidamente o par de fendas. Lutou contra o desejo de abaixar a cabeça, odiando-se ainda mais. Era ridículo, como podia ter dado brechas de submissão como aquela? Não, Hermione não se assustava com aproximações repentinas e nem demonstrava submissão por causa das mesmas. A conversa teve seu fim. E ela, como sempre, perdera a batalha.


O carro saiu rua a fora. Sempre tinha uma vontade de comentar em voz alta qual a razão de ele utilizar um método tão trouxa para se locomover, mas sempre, antes de conseguir sequer abrir a boca, ele sussurrava a ordem para se silenciar. Aquela não fora uma exceção. Ele apenas se ajeitou confortavelmente no assento depois que havia sussurrado sua ordem em seu ouvido e recebido seu habitual olhar enfurecido.


Assim que saíram da garagem, olhou para a janela por pura força do hábito. Nagini tinha se enrolado do outro lado do banco, repousando a cabeça sobre o livro imposto e pretendia dormir. Era uma viagem relativamente longa e passariam por diversos bairros de Londres.


Conforme passavam, por aquela pequena janela do carro podia ver no mínimo um mundo em caos, completamente esquecido do que seria misericórdia. Ouvia o estampido de tiros, gritos e alguns flashes de luzes meio distantes. Por onde passavam, todos simplesmente voltavam os olhos para o carro com ares curiosos ou temerosos. Alguns escondiam alguma coisa por baixo dos trapos que usavam.


Quando chegaram, nem havia percebido que acariciava Nagini. Estava se transformando em um hábito e sentia, para um pouco do seu desespero, que começava a se apegar ao animal. Sabia que, principalmente no início de sua escravidão, ele utilizava Nagini como um meio de vigiá-la, enquanto não achava seguro ficar levando-a para os lugares aonde ia. Tinha medo que agora a utilizasse como um meio de prendê-la a ele indiretamente através do apego sentimental com Nagini.


Retirou Nagini de cima do livro, automaticamente acordando-a. Agora era só caminharem por um monte de corredores, que ela não se interessava em ver os detalhes, até a sala de reuniões. Só sabia que o chão era acarpetado, a luminosidade do ambiente era produzida por velas e que havia estatuetas pelos corredores, mesmo que não lhes desse devida atenção – as ignorava veementemente. Não precisava ver os rostos dos seus inimigos, agora senhores, também esculpidos.


Mas algo lhe chamou atenção quando tinha virado a esquina. Um relance vermelho, tinha quase certeza. Olhou assustada para a esquina onde achava ter visto, parando de andar, sem perceber. A única palavra que lhe passara pela mente fora "Rony".


Rony, sim, os cabelos flamejantes e ruivos de Rony. Não pensou sobre o corpo que encontrara depois da batalha, sobre as feridas letais, sobre sua face deformada por alguma coisa que não conseguia nem identificar o que era. Seu corpo moveu-se sozinho, correndo na direção do relance vermelho e largando o livro. Não pensou em mais nada além de correr.


- Do meu lado, mascote. – ouvira a ordem clara, seu corpo reagindo imediatamente.


Parou, virando-se de costas ao seu objetivo e começando a andar até onde estava seu senhor com um misto de raiva e desespero, só conseguindo pensar que provavelmente Rony estava cada vez mais longe e não era possível persegui-lo. Tentava tomar o controle de seu corpo, mas ele não respondia a nada do que ordenava. Maldita Coleira da Escravização!


Um sorriso malicioso a esperava, assim que terminara de obedecer a ordem.


- Mais uma das suas alucinações com cabelos ruivos pelos cantos, meu bem? – ele disse baixo, as palavras parecendo tijolos de racionalidade sobre sua cabeça, fazendo-a bruscamente voltar ao lugar.


Sentiu os dedos dele penteando pacientemente seu cabelo, enquanto sentia seu rosto ruborizar com a declaração. Não era a primeira vez que perdia completamente a racionalidade e só voltava quando ele lhe ordenava para voltar ao lado dele, fazendo um comentário cínico sobre seu comportamento. Sentia-se infantil ao lembra-se que Rony não mais pertencia ao mundo dos vivos, mas parecia que uma parte da sua cabeça ainda não havia aceitado o fato, mesmo depois de tantos anos.


Olhou para o lado, dando de ombros, aparentando indiferença, mas sabia que era inútil disfarçar aquilo. Era inútil disfarçar qualquer coisa, porque ela era um livro completamente aberto e transparente para a habilidosa legilimência dele. Mesmo que ela soubesse oclumência – o que não era o caso – era só ele ordenar para quebrá-la que ela continuaria a ser um livro aberto.


- Pegue o livro e vamos. – ordenou, logo ambos retornando o caminho.


Por sorte, não teve outros rompantes de alucinação no percurso até a sala, onde já se encontravam todos os comensais. Havia duas cadeiras vazias, reservadas para ela e para ele.


Um dia chegou a tentar decifrar a tênue linha que ele fazia entre si, sua legítima escrava, e os comensais, seus "leais" servos. Era tão fina que poderia se romper. Se fosse retirar o fato de que sua lealdade estava exclusivamente ligada à coleira que ele jamais tirava de seu pescoço e que vivia ao lado dele, dia e noite, tudo parecia exatamente igual.


Sabia que, muito provavelmente, era a única escrava que podia portar uma varinha, assim como também podia utilizá-la, tornando-a mais igualitária aos servos dele. Ele punia-os quando estes faziam algo errado ou falavam o que não deviam, dava-lhe ordens claras para serem cumpridas. Talvez o modo como ele os tratava fosse também um pouco diferente. Ele era muito mais frio e intolerante quando se tratava dos seus servos e não os provocava a cada oportunidade que surgia. Não sabia com que propósito ele desejava iguala-la a eles, mas acreditava que devia ter uma razão bem clara. Talvez fosse até humilhante.


Nem percebeu que já havia se sentado na cadeira. Desviou os olhos em direção ao livro, ignorando a sensação de ser observada e abriu-o.


As figuras pareciam saltar das páginas, atraindo seu olhar e fazendo seu estômago revirar. Até que estava sendo forte, na primeira vez havia simplesmente vomitado e tivera pesadelos por semanas. Nem "Poções Mui Potentes" tinha "figurinhas" tão atrozes.


Tentou esconde-las por baixo da mão, tentando só ler as letras, mas as figuras pareciam gravadas em fogo em sua mente e, juntando com as palavras, tudo só tendeu a piorar. Fechou o livro antes de ter um acesso de vômitos novamente e ser castigada por estar interrompendo a reunião.


Sabia que aquelas figuras não eram tão chocantes quanto poderiam ser, assim como sabia que piorariam conforme os livros se aprofundassem na pior parte humana existente. E mesmo com tudo isso, ele arranjaria um jeito de demonstrar ao vivo os efeitos daquilo que aprendia. A primeira vez foi chocante.


"Ele decidiu leva-la para ver a construção de alguma coisa que, como descoberto mais tarde, seria sua próxima moradia. Mandou colocar uma capa com capuz para segui-lo e, como pôde perceber, ele era cheio de feitiços anti-revelações, mas não disse nada. Era um alívio poder finalmente sair de quatro paredes.


Esse alívio demonstrou ser a pior das suas aflições. Trouxas, todos escravizados, trabalhavam em condições terríveis, talvez pior do que animais. Mulheres, homens e crianças que pareciam não descansar direito por dias.


Não sabia o quanto de coragem o Lorde tinha de revelar aos trouxas a existência de bruxos, mas pelo que percebia já havia demonstrado e, provavelmente, devia ter se assegurado de que não haveria retaliação agressiva deles. As Guerras Mundiais estavam ali para comprovar o quanto os trouxas também podiam ser poderosos.


Enquanto segurava as lágrimas e tentava ignorar as lamúrias, as ordens ditas aos gritos e o pensamento de que lutara com tanto afinco em vão, um estralo muito alto foi ouvido, assustando-a.


Seu mestre parou, fazendo-a olhá-lo intrigada. Ele sangrava no peito e havia um furo chamuscado em suas roupas. Alguém tentou baleá-lo.


No entanto, a ferida cicatrizou com uma velocidade anormal, não deixando nenhum tipo de marca. O que sobrara da ferida foi apenas o sangue que conseguiu escorrer antes da restauração acelerada de seu corpo. Como uma Horcrux, uma simples bala não iria matá-lo, pois havia jeitos demais de sobreviver a um tiro.


Todos olhavam meio horrorizados pela falta de expressão do Lorde das Trevas depois de receber um tiro que deveria ser fatal. Hermione estava horrorizada por saber que o autor do tiro estaria morto dali a poucos minutos, principalmente quando ele se virou para trás.


Ainda com a arma na mão e apontada para o alvo, paralisado pelos acontecimentos, um trouxa estava exatamente na mira do olhar do Lorde das Trevas.


- Demorou para ganhar coragem, sr Finnigan. Já estava ficando impaciente com suas dúvidas medíocres de trouxa.


As próximas palavras foram para recitar um feitiço hediondo que havia lido não fazia três dias e presenciou de muito perto seu efeito devastador sobre o pobre trouxa. Ele berrava e, para seu mais completo choque, o corpo dele se deformava e sabia o que ocorria por dentro. Ossos eram partidos e sua carne rasgava por dentro, ainda vivo e completamente lúcido.


Não soube como continuou em pé, mas precisava fazer alguma coisa, não podia ficar parada vendo um trouxa, ainda pai de um de seus amigos, Simas, sofrer a uma morte tão horrenda. Agarrou as vestes dele num reflexo.


- P-pare! – conseguiu falar, saindo quase como um sussurro e, provavelmente, o havia desconcentrado, pois o trouxa parara de berrar e caíra no chão, debilitadíssimo, mas ainda vivo.


Os olhos rubros a encararam, mas estava tão preocupada com o trouxa que não identificou exatamente o que eles transpareciam. Ouviu, então, os sussurros dele, que seguiam-se a um sorriso que seu cérebro não conseguia compreender naquele momento.


- Que intrigante, parece que despertou em mim algo que achei ter aniquilado. Um sussurro da parte mais remota do meu coração de pedra pediu-me para parar com minha atrocidade. Meu lado humano decidiu se pronunciar. Como esse ato conseguiu me comover, – Hermione sentiu uma carga considerável de ironia na palavra "comover" – deixarei que meu lado humano decida como esse trouxa condenado deve morrer. Com a misericórdia do meu lado humano ou sem ela...? – ele finalizou sua pequena história contada aos sussurros apenas para ela ouvi-lo.


Sabia que não era uma decisão tão simples quanto parecia. Não era como se ela pedisse "com misericórdia" que seria ele a fazer. Porque era ela o lado humano e era ela que tinha misericórdia, não ele. Não teve escapatória, por isso, mesmo com o coração despedaçado, fez sua decisão.


- Dê-me uma adaga. – disse simplesmente, respondendo indiretamente a pergunta."


Não queria mais lembrar daquele dia. Tinha demorado muito para conseguir esquecer aquela última parte e chegar muito próximo de lembrá-la era o mesmo que reviver algo que não queria. Mas no mesmo dia ainda se lembrava dele, com aquela voz doce e macia, provocante até a última nota, perguntando-lhe o que havia achado de ver um dos feitiços que lera ao vivo. Achava que provavelmente palavras não eram suficientes para representar o quão devastador o feitiço conseguia ser.


Estava certo, as letras não faziam nem uma leve insinuação do quão atroz era presenciar alguém sofrer daquele jeito. Olhando ainda para a capa do livro, decidiu prestar atenção na reunião e no que pudesse entender.


- A parte norte de Londres está sob o domínio total dos Trevor, mas em pouco tempo será nossa, Milorde. Nosso infiltrado já descobriu segredos suficientes, como o senhor ordenou.


- Estão mantendo a parte leste e a nordeste como se nada houvesse acontecido? – o tom relaxado ainda conseguia ser muito autoritário e amedrontador.


- Exatamente como ordenou. Todos os líderes da área estão ainda ignorando que eles todos trabalham para nós e continuam com suas guerras por território.


- E quanto às outras cidades do país? Já obtiveram êxito em alguma?


- Muitas, Milorde. Toda a área de cidades em volta de Londres já é completamente nossa, estamos providenciando o domínio total da região.


- Isso soa muito bem...


Hermione não conseguia entender muito bem do que eles falavam, tornando sua estadia ali muito tediosa se não conseguia ler o livro. Sem querer, seu olhar se levantou na intenção de procurar detalhes inúteis em que concentrar sua cabeça para não dormir em cima da mesa. Da outra vez que isso aconteceu, acordara levando uma Maldição Cruciatus, o que não fora muito agradável, fazendo-a lembrar de que não podia ficar dormindo.


Seus olhos encontraram-se com os de Bellatrix. Havia rancor, ciúmes e desprezo transparente em cada traço do rosto da sua rival e, apenas naquele momento, sentia um prazer cruel ao encará-la e mostrar um sorriso de escárnio.


De certa forma, sua rivalidade iniciou-se justamente por causa daquele maldito dia de injustiça. Se Bellatrix não tivesse feito aquilo, sua presença seria tão ignorada quanto a dos outros presentes na sala. Mas desde que ela fizera questão de tornar sua vida mais infernal quanto já era por si só, decidira, entre as brechas das ordens dele, produzir o inferno na vidinha perfeita daquela louca enciumada por nada.


Diziam que a vingança se comia fria, mas ninguém falava que era tão doce. Descobriu apenas quando pudera dar seu devido revide daquele dia...


"Estava novamente entre os escravos, olhando para cada um com desconfiança. Não era burra de cair no mesmo golpe por duas vezes seguidas, principalmente depois de descobrir que o Lorde fizera questão de ignorá-la completamente só para poder disciplina-la. Ele queria aquilo tanto quando Bellatrix, mesmo que esta não soubesse que o estava ajudando.


Aquele dia fora abençoado com sua sorte. Por algum motivo que Hermione não queria descobrir, Bellatrix adentrou a sala, procurando por algum escravo em particular. Não conseguia ver oportunidade mais perfeita para provocá-la.


- Não deveria estar com meu mestre na reunião, Bellatrix? – ela perguntou de modo displicente, recostada na parede. Falava baixo o suficiente para que ela ouvisse, mas que a porta pudesse abafar.


- Sangue-ruim insolente! Não se atreva a falar comigo desse jeito! – sua voz era carregada de rancor. Aquilo provavelmente era uma ordem, mas sua coleira não reagira. Descobrira naquele dia também que ordens alheias não necessariamente precisavam ser cumpridas.


- Sangue-ruim não... sou a mascote do Lorde das Trevas. Você deveria saber disso, que eu me lembre foi a primeira a saber... – ela comentou com ar displicente e via o rosto de Bellatrix ir se avermelhando de fúria, fazendo o sorriso que se iniciava no canto da sua boca ir aumentando. – Tenho o privilégio de servi-lo em tempo praticamente, integral. O que é uma pena para você, não é mesmo?


O brilho assassino nos olhos de Bellatrix parecia tão intenso que provavelmente eram como dois sóis de pura fúria. Ela não conseguia falar.


- Ficou até sem palavras? Pois deveria mesmo... ele gostou tanto da minha servidão que até colocou seu nome para demonstrar seu domínio sobre mim. – indicou a placa dourada da coleira e começara a passar a mão num carinho fingido – E a pobre Bellatrix acabou ficando de lado...


Foi o suficiente. Bellatrix, que tentara se controlar o melhor possível, acabou perdendo as estribeiras.


Hermione sabia que era perigoso ficar mexendo com uma louca. Bellatrix poderia matá-la, poderia torturá-la até enlouquecer. Mas, como ela descobriu pouco tempo depois, a sorte estava do seu lado e, ao invés de pegar a varinha, ela decidira fazer "justiça" com as próprias mãos.


Mas, como era bem mais jovem e seu corpo muito mais flexível, Hermione logo conseguiu se posicionar satisfatoriamente depois de driblá-la, ignorando completamente as ordens que ela gritava. De frente com a porta que dava para a sala de reuniões, viu Bellatrix vir com tudo e antes de encaixar ambas as mãos em seu pescoço, girou a maçaneta e abriu a porta.


Bellatrix caiu para dentro, direto ao chão, enquanto ela grudava-se a porta que tinha aberto naquele instante, interrompendo completamente o que quer que estivessem discutindo. Hermione não perdeu tempo de pular Bellatrix e correr até o Lorde das Trevas.


- SANGUE-RUIM MALDITA! – ela berrava numa fúria sem qualquer consciência. – SÓ EU! EU! EU!


Quando se levantou, já era tarde para utilizar a varinha. Hermione estava do lado de seu mestre, com um rosto cândido e inocente. Uma falsa cara de terror ainda fazia parte de suas expressões, enquanto escondia-se atrás dele.


Provavelmente, Bellatrix não havia notado atrás de quem ela havia tentado se esconder, pois ainda assim tentou atirar algum feitiço, que foi bloqueado instantaneamente.


Houve alguns momentos de silêncio, iniciando um ar tenso entre os presentes.


- O que pensa que está fazendo, Bella? – finalmente a voz dele soou friamente, observando a varinha dela apontada diretamente para ele ainda. Os olhos rubros estavam brilhando em fúria pela insolência dela ao tentar atingi-lo.


- M-milorde... – a voz dela saiu meio tremida, sem saber exatamente o que falar. – Não... não sei...


- Não sabe como aconteceu, Bellatrix? Ou não sabe o que eu poderia fazer com você pela insolência de me atacar? – o silêncio caiu novamente sobre o aposento como uma mortalha. Era o momento de ele fazer seu monólogo, prendendo a atenção de todos os presentes de um modo hipnotizante. – Não posso acreditar que minha serva mais considerada tenha feito um ato tão insensato contra seu próprio mestre. De tantos dos meus asseclas, você mais que ninguém sabe o quão cruel sou para aqueles que se levantam contra mim, independente da consideração que tenho por eles. É isso que deseja, Bellatrix? Incitar minha ira contra você?


- Na... – ela mal começara, fracamente, alguma resposta, quando ele a interrompeu.


- Silêncio! – ordenara rispidamente, fazendo todos estremecerem.


Todos menos Hermione, que, enquanto ele monologava, apenas encarava a situação, maquinando ainda o melhor jeito de aquilo só piorar o estado do ego de Bellatrix. Hermione não perderia a chance de produzir o máximo de humilhação que poderia infligir com as circunstâncias tão a seu favor. E tentar protege-la faria Bellatrix ficar mais irada do que nunca, por estar sendo ajudada por uma sangue-ruim imunda. Por isso, antes dele novamente falar, decidiu por interrompê-lo.


- Milorde. – chamou baixo, com um ar tão submisso que era até estranho, fazendo todos os olhos voltarem-se para ela, inclusive os do Lorde. – Não seja tão rígido com a Sra. Lestrange, por favor. Provavelmente, não acordou com o melhor dos seus habituais humores. – dizia com cuidado, ainda mantendo seu ar cândido – Tenho certeza que parte da culpa é minha, pela falta de tato ao tentar entender o que desejava. Seu alvo era apenas eu, não o senhor, milorde. – sabia que aquilo poderia reverter-se num castigo para ela, mas só o fato do ego de Belatrix ser lentamente mutilado era o suficiente para querer agüentar qualquer coisa.


- Sua... – pelo canto dos olhos, Hermione viu a fúria avassaladora de seu alvo, que soltava faísca através dos negros olhos.


- Já disse para se calar, Bellatrix. Não piore meu humor. – o Lorde cortou-a friamente sem olhá-la, calando Belatrix imediatamente. Ainda encarava os seus falsos olhos angelicais – Como pode ser tão complacente com uma pessoa que só a fez sofrer? – ele perguntou de um modo calmo e curioso.


- Como posso virar as costas para a pessoa que apenas ajudou-me a interromper um ato do qual me arrependeria pelo resto da vida? – Hermione retrucou em outra pergunta. Conseguiu suprimir o brilho maligno de seu olhar ao encarar Bellatrix, que estava perplexa, enquanto um sorriso espontâneo saia de seus lábios.


- Continua tendo um coração tão puro quanto no princípio. – ele a encarou com ar cúmplice. Ele sabia perfeitamente que de puro não tinha nada aquele ato de generosidade. – Pois bem, se Bellatrix é tão importante para desprender tanto esforço assim farei, como seja de seu desejo, apenas dessa vez. – ele olhou de soslaio para Bellatrix. – Isso não significa que você sairá simplesmente impune."


Nos próximos minutos, ele simplesmente expulsou todos os escravos da saleta ao lado e trancou a porta. A única coisa que se ouvia eram os gritos de Bellatrix, que recebia seu devido castigo, mas Hermione não se importava com eles. Já estava satisfeita, estraçalhara completamente o ego da mais velha.


Desde então, ela e Bellatrix vinham travando batalhas e mais batalhas verbais, algumas vezes chegando a ser físicas, mas sempre fora dos olhos do Lorde das Trevas, o que tornava as ocasiões um tanto raras. Quando algo começava a chegar a pontos críticos, Hermione abandonava a batalha para a segurança da presença de seu mestre, onde Bellatrix não conseguia toca-la. Alguém precisava ter juízo naquela relação de rivalidade.


Depois de mais uma ou duas horas de reunião, em que Hermione lutava para não dormir, começando a mexer com Nagini, encarar os frisos da mesa e tudo que fosse possível contar ou analisar da distância da cadeira e que não se mexesse muito, o Lorde finalmente encerrou a reunião.


O caminho de volta foi silencioso, assim como o almoço, o que só poderia significar uma coisa: sua tarde daquele dia seria um pesadelo que sonharia acordada. Precisava, naquele dia, correr para o próprio quarto e tentar se safar do que quer que ele tivesse planejado.


Voltaram para o quarto dele, ainda em silêncio. A primeira fase do programa da tarde iria começar se não fosse rápida. Normalmente, incluía alguma provocação a cerca de algo que fizera ou deixara de fazer durante o dia. E claro que daquela vez não ia ser exceção.


De certa forma, era rotineira a sua tentativa de se afugentar em seu quarto, que era logo ao lado do quarto dele – que também o utilizava como seu escritório particular. Desde o princípio ele lhe garantiu que seu quarto seria um santuário onde ele não lhe incomodaria, acordo que ele andara cumprindo desde sempre. Por isso que ele só a deixava usa-lo na hora de dormir e controlava cada segundo que ela perdia dentro dele durante a manhã. Para todo o resto – como enfermidades e ferimentos que ela precisasse repouso – ele sempre lhe ofertava, com muita generosidade, o seu próprio quarto, onde poderia infernizá-la.


Lembrava-se da repousante recuperação que teve depois de ser mutilada publicamente.


"Já estava a três dias de cama, com as costas inteiras enfaixadas. Três dias de puro inferno, sem descanso. Ele se negava a curá-la devidamente com um feitiço para livrá-la daquele suplício, pois, afinal, era só uma nascida trouxa e como tal devia ser tratada, mas ela sabia perfeitamente que aquilo era só uma desculpa muito bem elaborada para mantê-la por mais tempo fora do seu santuário, onde ele não podia incomodá-la. Onde poderia verdadeiramente repousar.


Naquele dia em especial, ele conseguiu tira-la completamente do sério. Ficou excepcionalmente irada depois de lhe informar que sabia perfeitamente o que Bellatrix pretendia desde que adentraram na sala e como tinha ficado impaciente com a demora da escrava em fazer o que tinha sido ordenado. Não conseguiu controlar a ira que aquilo produziu.


- MESTIÇO HIPÓCRITA! – ela berrou no surto de fúria.


- Crucio. – ele recitou o feitiço quase imediatamente após ela ter berrado. A varinha aparecera na mão dele como num flash, que nem mesmo conseguira ver.


Aquilo pareceu demorar uma eternidade para acabar. Já recebera uma outra vez um feitiço de tortura de Bellatrix, mas aquele era muitas vezes pior, pois tinha de adicionar as feridas que ainda não estava cicatrizadas em suas costas. Quando ele parou, quase não conseguia respirar e todo seu corpo tremia em pequenos espasmos. Lágrimas caiam em abundância sobre o leito da cama.


Sua visão estava embaçada, mas ainda conseguia sentir perfeitamente quando a cama afundou bem próxima a seu corpo ferido. Sentiu também quando ele pegou seu queixo, para obriga-la a encarar um vulto indistinto.


Num gesto delicado, mas sem qualquer demonstração de carinho, ele limpou seus olhos e, enquanto o fazia, sua voz retornou, baixa e insensível.


- Assim como lhe proibi de falar sobre como me matar, proíbo que saia dizendo sobre minhas origens e qualquer coisa relacionada ao meu passado. – ele terminou de enxugar suas lágrimas com as mãos e, ainda mantendo seu rosto virado para ele, viu surgir um sorriso e o brilho de satisfação cruel em seu olhar, enquanto completava. – Não se esqueça que sua vida pertence a mim."


Chegaram ao quarto, era o momento de sair correndo na tentativa desesperada de conseguir, finalmente, se livrar de outra tarde.


Mas, como em todas as outras vezes, sua tentativa de fuga fora interrompida antes de chegar ao objetivo, exatamente quando tocava na maçaneta.


- Não abra esta porta. – ele ordenou, fazendo-a imediatamente estancar. Gemeu mentalmente. Aquele não era o seu dia de vencer, como não havia sido nos últimos 10 anos. – Você não leu por completo o livro que lhe dei. Ao invés disso, ficou contando frisos da mesa. – ela não precisava se virar para saber que estava sentado na escrivaninha, com uma calma anormal. – Acha que vai conseguir se afugentar de lê-lo desse jeito, querida? – sentiu seu estômago congelar. Era comprovado que aquela tarde seria um pesadelo.


Claro que não sem ela lutar e, consequentemente, perder o maior tempo possível numa conversa fútil.


- Quantas vezes eu vou precisar lhe dizer que eu não vou ler os seus livros se estes tiverem figuras? – ela contra-argumentou, virando-se para encará-lo, prevendo perfeitamente que ele estaria sentado em sua escrivaninha particular, com sua calma anormal.


- Você sabe perfeitamente que dou ouvidos aos seus protestos até quando me convém. E, agora, eles não estão interessantes de serem ouvidos.


- Isso não vai mudar o fato de passar mal vendo aquelas atrocidades desenhadas com tanta perfeição naquelas páginas empoeiradas. E garanto que não vou ter cuidado nenhum de retirar do caminho o livro quando meu estômago revirar, caso você me obrigue. – ela tinha um brilho desafiador no olhar.


Ele sorriu como resposta. O sorriso que já dizia que aquilo não havia lhe intimidado.


- Por isso não vou obrigá-la. – ele simplesmente respondeu, dando uma pausa para ela assimilar o que ele havia dito. O sorriso aumentou quando continuou – Vou ensiná-la.


Hermione não conseguiu assimilar aquilo direito.


- Ensinar? – alguma coisa naquela palavra tão simples começava a deixá-la nervosa.


- Já que o aprendizado na teoria não consegue penetrar em sua mente, aprender na prática com certeza o fará. Por isso, decidi que, para cada livro que você não conseguir ler, farei questão de ensiná-la na prática.


Seus joelhos cederam, parecendo apenas manteiga derretida, e suas costas imediatamente tentaram se apoiar na porta. Escorregou por esta até o chão, ainda perplexa.


Viu-o, com os olhos arregalados, levantar-se da cadeira, carregando o livro em uma das mãos como um universitário qualquer de uma época distante o faria para ir à faculdade. Aproximou-se dela, ajoelhando-se logo a sua frente.


- Vamos passar uma agradável tarde lendo ou praticando, mascote? – ele perguntou com uma voz doce e gentil.


Hermione não soube como conseguiu responder, mas assim ele havia feito quando recebeu sua resposta. Queria passar uma "agradável" tarde lendo junto a ele.


Em poucos minutos, já se encontrava a ler o livro, sentada na cama, enquanto ele se recostava confortavelmente no travesseiro que estava apoiado na cabeceira, com o intuito de não necessitar encostar-se à madeira. Sentia as pernas dele relaxadamente posicionadas uma de cada lado de seu corpo, parecendo estar comprimindo-a e ajudando para desconcentrá-la. Nagini também estava ali, aos pés dos dois, enrolada em si mesma e adormecida depois do almoço obviamente farto que tivera.


Tinha protestado, não queria ter ficado ali, mas como resposta apenas disse com indiferença: "Apesar de considerá-la uma mascote, continua sendo minha escrava e vai fazer todos os meus caprichos, independente se quer ou não. A escolha é sua se será obrigada ou por boa vontade.". E era por isso que agora estava se sujeitando a ler um livro com figurinhas meigas, sentada entre as pernas dele, sentindo os fios de seus cabelos serem bagunçados e re-arrumados pelos dedos dele – mesmo que ela tentasse inutilmente inclinar-se o máximo possível em cima do livro no intento de fugir dele –, enquanto tentava se concentrar o melhor possível e ignorar todas as sensações de asco, nojo, mal-estar e tudo que faria bem a saúde de qualquer pessoa.


As horas se arrastaram e parecia que a cada palavra conquistada, chegava mais próxima da loucura. Seu cérebro não queria mais processar coisa alguma e começava lentamente a perder o auto-controle corporal. Suas ânsias de vômito estavam no ápice e seu corpo tremia, parecendo rejeitar a si mesma.


- Já está tarde. - ouviu a voz dele logo atrás de si.


Aquelas palavras eram como um sopro de paz, mesmo vindo da pessoa que mais odiava, e imediatamente o livro caiu sobre suas pernas pesadamente, seus braços parecendo chumbo. Não tinha conseguido ler tudo, mas foram horas de puro suplício, pois sabia que se tentasse fingir uma leitura, ele não hesitaria em achar "por bem" ensiná-la.


Sentiu-o sair do conforto do travesseiro, colocando seus cabelos para o lado e deixar seu ombro a mostra, para encaixar o queixo ali e observar o progresso de sua leitura.


- Um progresso e tanto, mascote. - ele comentou em seu ouvido, sentindo os braços envolvendo seu corpo. Completou logo depois - Para quem mal conseguia ler uma página hoje de manhã, ler trinta já é um grande progresso. Sabia que faltava só um pequeno incentivo. – podia até visualizar o sorriso sarcástico enquanto as mãos dele pegavam o livro e conjurava um marcador, para que não perdesse a página a qual chegara com tanto sacrifício. Fechou o livro a sua frente, repousando-o ao lado da cama.


Hermione virou o rosto para o lado contrário onde ele se apoiava. Queria ir logo para a paz do seu quarto e para a inconsciência do adormecimento. Ignorar todo o mal-estar que estava suportando para conseguir ler aquele livro.


- Vá para seu quarto e quero que esteja no meu quarto antes das 7 horas, arrumada. Amanhã teremos mais uma sessão de leitura. - ele finalizou, finalmente libertando-a por completo.


Antigamente, provavelmente, sairia correndo para o seu quarto, sem olhar para trás, mas já parou de fazê-lo. Apenas saiu da cama, fazendo as últimas considerações, enquanto caminhava para o quarto. Elas eram: conseguiria dormir ou não? Caso a resposta fosse não - como no caso -, precisava fazer um pedido. Sabia que teria pesadelos a noite pelas imagens recentes vistas no livro.


- Deixe-me ficar com Nagini em meu quarto, por favor. - pediu, virando-se antes de abrir a porta, a tempo de flagrá-lo na escrivaninha e lá deixar o livro marcado.


- Como quiser. - ele respondeu sem voltar os olhos rubros em sua direção, continuando a fazer o que começara.


Fez alguns silvos, acordando Nagini imediatamente. Com mais alguns silvos, Nagini logo a estava acompanhando até seu quarto.


Assim que adentrou o aposento, o animal se enrolou em sua cama, enquanto ela ia trocar-se para dormir. Quando arrumou-se, deitou-se embaixo das cobertas, observando Nagini, que a encarava. Sentiu-se reconfortada ao observá-la, pois era talvez a única criatura que não piorava a situação em que se encontrava.


A maciez do travesseiro a fez relaxar e, depois de algum tempo, finalmente adormeceu.


Alguns minutos mais tarde, a porta foi aberta lentamente. No vão de claridade, a silhueta do Lorde das Trevas aparecia, chamando a atenção de Nagini.


- Silêncio, Nagini. Não queremos acordar nossa bela adormecida, não é? - ele falou na língua que tinha em comum com Nagini, enquanto se aproximava como um gato do leito.


- Suas visitas noturnas estão ficando muito freqüentes. - Nagini comentou enquanto observava seu mestre sentar-se na beira da cama e encarar sua preciosa prisioneira. – Quero saber o que lhe incomoda nela para ficar encarando-a por horas seguidas dormindo.


- Simplesmente porque eu não a compreendo. - ele informou, os olhos rubros observando as feições pacíficas e a respiração calma. – Como alguém que poderia ser tão grande sujeita-se a se condoer por fracos e ainda luta por eles? Morreria por eles! - havia uma conotação indignada em seus silvos. Sua mão direita erguia-se e tentava tocá-la, mas parecia haver um tipo de barreira invisível.


- Sinto que não é só por isso. - sibilou o animal com os olhos estreitos e espertos.


O Lorde simplesmente desviou os olhos e suspirou, enquanto deixava sua mão cair ao lado de seu corpo, sem tocá-la. Encarava a escuridão do quarto impecavelmente arrumado.


- Ela é a minha contradição. - finalmente respondeu, voltando a encarar as feições plácidas – É um estranho espelho de mim. Tem a mesma sede por conhecimentos, a mesma garra para perseguir seus objetivos, além da insolência de, sempre que possível, fazer as regras encaixarem em seus propósitos. - ele havia parado momentaneamente.


- Mas...? - falou Nagini, para que ele continuasse.


- Todos os ideais dela são completamente... humanitários. - respondeu, os olhos inflamando-se – Ela parece a encarnação da humanidade que bani de dentro de mim. Tudo o que desprezei durante minha vida está agora, deitado, sob o meu domínio.


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