Quarto Capítulo
O rosto de Ofélia chegava a parecer-lhe angelical. Estava calmo; com todas as feições outrora cruéis, descansadas.
Conforme os sonhos a abrangiam em seus longos braços maternos, seus lábios trocavam de cor mais uma vez: Uma espécie salmão, compilada com alguma outra cor. Luca não sabia pôr em palavras o que se formava em sua mente, limpando-a temporariamente de todos os véus da maldade que criavam um breu em tudo o que acreditava.
"Compilado com tudo o que há de bom... Bondade..." - Luca sibilou para si próprio, tentando explicar o que via em sua tia; com suas pupilas levemente dilatadas, dando ao seu olhar um brilho especial.
O campo a sua volta serpenteava num verde, agora tomado pela escuridão da noite.
Um vento cálido vinha se adensando à sua volta, tornando impossível notar qualquer presença. Também tornando impossível discernir o certo do errado, impossibilitando-o de dormir, como Ofélia o fazia. Seus braços estavam retesados enquanto se aproximava da moça, que dormia com a respiração compassada.
Tinha em suas mãos uma espécie de travesseiro que fizera com a pele do coelho que se alimentara, preenchendo-o com grama.
Vinha pisando em ovos, com olhos marejados de adrenalina. Suas mãos percorriam toda a extensão do pequeno travesseiro em mãos, procurando por qualquer falha, não a encontrando.
Ofélia sorria, dormindo sobre a grama. Mas isso não fez com que Luca desistisse.
Ligeiro, sobre as feições delicadas de quem dormia, pressionou com toda sua força o travesseiro.
A garota rapidamente despertou de toda sua felicidade, se debatendo contra o garoto; mas logo se calou... Morta?
O rapazote não se deu ao trabalho de conferir, correndo alucinado pelos campos verdes, tropeçando em alguns pontos, mas nunca deixando de correr em direção ao que via.
Estava tão cego pelo alívio que só notou quando estava diante de seus olhos: A pele clara, compilada aos olhos negros como a noite; Seus cabelos caíam em grandes mechas uniformes de um castanho-escuro. Roupas de um preto infinito cobriam o corpo da garota, que lhe olhava assustada, com seus grandes glóbulos da noite analisando-o.
Por algum motivo, Luca levantou sua mão levemente, apontando para um vestígio do Campanário, que ainda conseguia vislumbrar. Também tentava pronunciar o que quer que fosse, mas apenas um chiado mudo deixou sua garganta.
"Não... Por favor, não..." - Farfalhou a moça, deixando em evidência sua voz forte, mas embargada. Seus lábios estremeciam com a tristeza, pressionados, tornando-os de um bege doentio.
Antes que Luca compreendesse o que foi dito e requeresse uma explicação, foi arrastado pela moça.
Seus passos eram rápidos e precisos, postergados pelo garoto que ainda não se situara do que acontecia.
Sobressaindo todo o ar abafado que dominava o lugar, via-se uma herdade mas, aos olhos de Luca, parecia mais como uma ofidiária, tamanha fora a repulsa que pulsara em seu peito ao vislumbrá-la.
O garoto estava tão lunático que não notou quando a pequena porta fora pressionada, abrindo-se. Uma vez empurrado para dentro, notou que o antro não possuía qualquer móvel, com suas paredes cobertas num papel de parede desbotado.
Havia diversas pessoas sentadas em torno de uma lareira. Seus cabelos caíam em grandes cachos de castanho-escuro; compilados com seus olhos amendoados, também escuros, com uma pinta presente próxima ao olho direito. Parecia-se com uma perfeita família onde os traços eram preservados há gerações. Suas bocas eram avantajadas, prevalecendo no mesmo tom e formato em todos os rostos, tanto femininos quanto masculinos.
Todos eram exatamente iguais, mas exatamente diferentes. Apesar de todos olhos serem amendoados e escuros como o anoitecer, cada um representava um sentimento. Alguns tão cruéis quanto imaginava-se ser possível; outros tão bondosos, que chegavam a ser tolos em sua gentileza.
Quando o toque dos pés descalços do rapazote ecoou, todos se levantaram num piscar de olhos. Alguns assustados e amedrontados; outros de olhar sábio e bondoso; e ainda havia aqueles, com seu olhar prepotente e cruel, enrustido num sorriso calorosamente falso.
Com uma simples troca de olhares entre a família, uma senhora foi trazia, posta de frente para Luca. Suas feições eram como as de toda a família, mas compiladas aos sulcos da velhice. Seus olhos transmitiam sabedoria compilada com toda a humildade e bondade que jamais foi vista.
"Meu filho, escute o que tenho a lhe dizer com clareza." - A voz da mulher era imponente. Todos pararam para ouvi-la; inclusive o garoto, deixando de lado sua repulsa ao lugar.
"O Campanário... Não deve alcançá-lo" - Farfalhou.
"Você sabe o que é o Campanário?" - Perguntou, apontando para o garoto, que se perdia em seus olhos.
"Uma faca de dois gumes." - Disse, com prepotência evidente.
"Sim... Agora, deixe-me contar-lhe o que acontecerá se tocá-lo...
"Uma faca de dois gumes... Sim, cuja maldição alucinava aqueles que dela tomavam poder; e àqueles que a tocavam, simplesmente matava.
"É impossível resistir. Desde os mais sábios aos mais tolos... Todos que ela vislumbravam se curvavam àquela antiga e poderosa magia, tão velha quanto o mundo...
"Maldita é aquela faca, que a todos governa sob uma ditadura jamais vista...
"Homens e mulheres que neste condado nasceram sonham em um dia poder tocá-la e governar ao seu lado...
"Mas aqueles que sem o sangue amaldiçoado tocam-na..." - A senhora parou por alguns segundos. Seus olhos representavam enjoo compilado com repulsa e medo. Mas forte como era, continuou:
"Dizia-se que aqueles cuja lealdade, coragem e crueldade reinavam poderiam tocá-la. Mas era malogrante!" - Gritou, deixando que lágrimas corressem de seus olhos, banhando seus sulcos, até seus lábios entreabertos, que soluçavam.
"Aqueles cujo sangue não era puro; e sem lealdade, coragem e crueldade dominando-a... A morte batia à sua porta, bifurcando seu crânio, banhando a faca em seu sangue, pagando pela afronta de tocá-la.
"Pedimos que não a toque... Apenas a cada mil anos o terror volta a se alastrar. Pois o sangue regente, aquele sangue cuja faca clama... Apenas a cada mil anos ele volta..."
Luca se preparava para proferir uma pergunta impertinente, quando um grito estridente partiu de um quarto à sua direita, seguindo de uma gargalhada horripilante.
"Venha conhecer o último casal que tentou dominá-la. Venha ver no que está se metendo, pois vejo que não crê no que eu lhe disse agora pouco... Venha" - A senhora fazia sinais leves para que fosse, seguido de diversas pessoas dali.
A porta era de uma madeira podre, sem adornos; Simplesmente mal cortada e ali posta, para separar os cômodos.
Havia apenas duas camas, uma ao lado da outra. À direita, havia um homem deitado, quieto, doentio. Suas feições eram como as de um morto. Seus olhos tomavam para si a cor dos campos que Luca vira, adornados por graves olheiras amareladas, sobre sua pele diamante; Seus lábios eram como rubi, quebrados com diversos pontos sangrentos, misturando o líquido rubro aos seus dentes que estavam à mostra, num fluxo incessante.
À esquerda, havia uma mulher; ela se contorcia e gritava, clamando por algo; o som de sua risada compilada ao grito de horror assustava Luca. Seus olhos lápis-lazúli representavam luxúria e horror, fundidos num só. Toda sua pele clara estava com graves ferimentos, alguns cobertos, outros abertos às moscas. Tentava dizer algo, mas apenas ruídos raivosos e envenenados chegavam à fora.
Algumas garotas tentavam segura-la, quieta na cama, mas nada iria aquietá-la Se desvencilhava dos braços e mãos que a seguravam como se orientada por alguém.
"Quem o acompanha?" - A senhora sibilou em seu ouvido, com uma voz ríspida mas calorosa; tirando sua atenção da garota, que agora se debatia, deixando claro o lençol sujo de um sangue seco.
"Estou sozinho" - Disse, olhando para seus próprios pés, incapaz de dirigir o olhar à senhora. O arrependimento batia na porta de seu coração, criando um nó em sua garganta, impossibilitando sua respiração e trazendo lágrimas aos seus olhos.
"Não... Não se vem para cá só... Tentou matá-la? Bom, digo para que tome cuidado quando sair... Ninguém jamais morre aqui..."
"O quê?" - Sibilou Luca. Mas antes de obter qualquer resposta, grandes braços ternos o cobriram, apagando sua mente, levando-o ao sono que há tanto não tinha.
-Veneza
Seus olhos azuis e translúcidos transmitiam serenidade; encobertando sua mente calculista, analisando todos os mínimos atos de pessoas próximas.
Com passos lentos, Adelina caminhava entre todos no bar, sem que ninguém notasse sua presença ardilosa.
Seus olhos, bem alimentados, deixavam clara uma teia de capilares, dando-lhe uma aparência desumana. Todo seu corpo representava o horror cálido do sangue pulsante de um inocente, banhando-a numa humanidade horrendamente bela.
Seu desespero era evidente. O tempo corria, podia-se ver a vivacidade deixando seu corpo, dando espaço à pela macilenta; assim como, no solstício de inverno, o dia cede lugar à noite mais cedo do que deseja.
Algumas pessoas viraram para vê-la passar, mas nenhuma realmente a via. O legado era de poucos; amaldiçoados esses, que agora gritavam alucinados num hospital, em busca de paz. Adelina podia ouvir suas preces, claras como se iluminadas pelo sol, enobrecendo sua maldade. As mesas ao seu redor eram de um redondo imperfeito, mas perfeitamente cobertas por toalhas de mesa amarelas antiguíssimas, desbotadas. Muitos conversavam, espalhados pelas mesas e alguns jantavam com fervor uma sopa consistente, tão nojenta e laranja quando lhe era possível, distraindo-se apenas quando algum bêbado caía aos seus pés. As roupas da garota estavam sujas de sangue já seco do garoto que matara, mas ela não se recordava de seu nome mais.
Se equivocava por já estar tão sedenta, sentindo seus lábios e boca secos... Arenosos. A sede era tamanha que se permitia roçar as mãos sobre o pano manchado e levar qualquer resquício de sangue à sua boca. Como num estalo, percebeu o quão mais denso o ar ao seu redor estava, em comparação com os demais locais; Cálido, envolvendo-a em seus braços, tocando-a com seus longos dedos maculados de maldade.
Ela sabia do que se tratava; Alguém, cujo sangue descendente corre nas veias estava tentando retornar à sua forma humana; e, para isso, afetava-a. Por isso já estava tão sedenta.
Agora, teria de ser ligeira para achar o símbolo do Campanário no mundo real, pois o espírito tentaria lhe impedir com todas suas forças... Já tentava...
/-Veneza/
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