Segundo Capítulo
Seus olhos lacrimejavam, e por um segundo, toda a raiva e ódio deixou os olhos de Ofélia. A linha vinho deixou seus glóbulos, substituída por um chocolate, mais claro que o todo de seu olho.
Por aqueles segundos, e apenas por aqueles segundos, Luca acreditou, enfim, que estava em paz... Desejou que esse sentimento o inundasse por completo, abrangesse todas suas células, mas não lhe foi possível.
Não se dava conta do que acontecia, simplesmente se deixava levar, sentindo cócegas que o leve toque do vento lhe causava, alegrando-o...
Com praticidade, soltou sua gravata, expondo sua pele ao vento, que parecia se adensar ao redor. Suas veias estavam salientes no pescoço esguio, dando-lhe uma aparência assustadora.
A alegria tão pouco durou, que chegou a duvidar disso.
Ofélia, até então petrificada, logo tomou seu braço em mãos, grosseiramente, arrastando-o, exalando seu almíscar banhado pelos sentimentos agourentos cravados na alma e carne. Tão fortemente apertava o braço do rapazote, seus dedos chegavam a perder o sangue, recebendo uma cor levemente amarelada nas pontas, tornando suas unhas, de corte fino, grotescas. Seus dedos eram grandes e esguios, mas isso não a tornava mais feminina.
"Pare, pare" – Exclamava aos berros o garoto, que sentia as salgadas lágrimas chegando a seus lábios entreabertos, grandemente moldados, misturados a terra e vinho, causando um grande contraste com a pele, agora sem o brilho de outrora, apenas corada pelo medo. Grandes manchas molhadas eram visíveis, devido às lágrimas que escorriam loucamente, percorrendo seus sulcos, criando dois mares paralelos, em constante movimento, com suas ondas distantes, partindo de seus excretores lacrimais, e chegando a seu fim e boca ou nariz, que agora rangia alucinado.
Seus pés eram banhados pelas águas sujas do rio, congelando-os com seu toque glacial e cálido, se apoderando de onde relava. As gárgulas que adornavam as belas casas passavam como vulto... Tudo era um grande borrão aos olhos do garoto, tanto pela rapidez com que passava, quanto pelos olhos marejados.
"Não grite, pirralho!" – Sibilou a mulher, virando-se como um animal, olhando de soslaio para seu sobrinho, sem afrouxar o aperto no braço do mesmo, forçando-o a seguir em frente, por mais que oferecesse resistência. Ela, em parte, o compreendia, sabia que algo muito mal o aguardava, mas não permitiria que isso postergasse sua chegada ao Campanário.
Não houve tempo para que Luca pronunciasse uma palavra, pois tragava a maculada água aos borbotões, assustando-o. Não sabia nadar.
Era puxado fortemente pela tia, que largara seu braço, deixando-os correr livremente, em desespero pela água, para segurar sua cintura e melhor guiá-lo, pois, apesar de não ver, Ofélia sabia que algo vinha o deteriorando.
O adorno chocolate de outrora, agora era substituído por aquele brilho malévolo cor vinho, que também poderia ser visto em seus lábios, moldados como o arco do cupido. Mas, aos olhos do garoto, pareciam moldados pelas mãos do demônio, que os permitia fechar em uma linha reta, mostrando o quão cuidadosamente foram pintados outrora, por aquela cor que partia dos olhos da garota, assustadoramente sanguinária, como a cor que o sangue toma quando grandes quantidades jorram.
As gôndolas o cercavam, mas, numa tentativa frustrada de se agarrar numa delas, percebeu que nada ali era etéreo, apenas completavam um cenário... A água? Essa pouco o afetava, sentia como se pudesse respirar imerso, entretanto era estranho e o assustava ainda mais que se estivesse morrendo afogado.
Era longo o caminho. Podia perder de vista a outra orla daquele fétido rio.
Logo se permitiu imaginar o que Ofélia via, mas recordou que sua descrição fora vaga, pois nada afirmou, nada negou... Apenas um conto citou...
Horas se passaram. A mulher podia sentir o solo roçando fortemente seus pés nus, forçando-a a andar com maior diligência. Luca estava encrencado: por menor que fosse o impacto da água, sentia que se agravava... Sua força etérea se realçava com o toque cálido, lhe causando rasgos nos pés... Onde estariam seus sapatos, e quando se despedira deles?
Sua visão de sua tia estava prejudicada, seus olhos ardiam pela colisão com o líquido arenoso, que se recusava a chamar de água... Quão fétido poderia ser aquele lugar?
A garota tampouco via seu sobrinho... A poeira não lhe permitia, penetrando seus olhos com veemência, e fazendo com que tossisse como que eternamente...
Tudo ali lhes parecia eterno... O sofrimento de Ofélia, e o medo de Luca...
-Flashback
"Ofélia, minha querida, venha cá. Permita-me falar a respeito disso que tanto deseja." – Disse seu avô, com os cachos brancos correndo pelas costas, cobertas por um terno, de corte muito comum, preto como carvão. Suas palavras não demonstravam sentimento, porém, seus olhos azuis, infinitos como o mar, e claros como céu de uma manhã de verão... Sim, esses falavam por si só. Quando sorria, se fechavam quase que completamente, adornados por seus cílios loiros como mel, assim como seu cabelo fora outrora... Quanta doçura esse senhor lhe passava.
Seu dedo indicador estava em direção à caixa que há muito Ofélia vislumbrava, sentada em sua poltrona, que cheirava a mofo, mas tão macia quanto era possível.
A caixa permanecia sobre a lareira, mas ainda simples, sem ser esculpida com pequenas imagens demoníacas, que agora eram tão presentes.
Suas pupilas se dilataram somente com a menção ao objeto precioso, que tanto a encantava. Suas mãos se encresparam, fincadas em sua palma, lhe causando aquela dor deliciosa da ansiedade, gerando marcas superficiais, mas ainda assim avermelhadas, sobre sua pele morena. Com os lábios envergados, mostrando seus branquíssimos dentes, com a ausência de um, pois ainda estava trocando-os... Tão belo e sincero fora seu sorriso, chegando a enrugar seus olhos, mostrando uma solitária covinha em sua bochecha, que agora tomava um tom cor-de-rosa, parecendo roubar a belíssima cor dos botões da flor afora.
Sua bela exérquia podia ouvir... Aquele que ecoava com vigor por todo o antro, sobrepondo o relógio que tanto amava, mas que não lhe era permitido.
"Castelos, cuja orla brilha como ouro, e desgraça como o mesmo. Horror, é isso que verá! Mas a caixa toca para você, assim como o relógio não o faz. Chegará o dia em que enfim poderá conhecer esse mundo, entretanto, tenha prudência, pois para fora são lançadas criaturas que a todos caçarão, até que todos sejam mortos reinarão...”.
/-Flashback/
"Não sabia seus segredos... Nunca veio a saber do que isso se tratava" – Farfalhava a garota, contendo uma dupla de lágrimas que insistiam a lhe escorrer o rosto sempre que de seu avô lembrava."Como?" – Disse Luca, tão baixo quanto sua tia, que ainda o arrastava. Não obteve resposta. Apenas um movimento de cabeça, leve como uma pena, que pensou ser um sinal para que não tocasse mais no assunto.
Uma dor mortal partia do pé do garoto, e insistia em se alastrar. Pequenas mãos carnudas, esverdeadas e rosadas, com sulcos monstruosos, e unhas amareladas como o sol do dia, sem corte regular, seguravam seus rosados dedos do pé, puxando-o para baixo com uma surreal força. Ele podia sentir sua carne se rasgando, e o sangue o deixando a longas golfadas.
Seus olhos se fecharam, mordendo seus lábios, para que suportasse a dor. Em vão.
Ofélia não o segurava... Corria em direção a algo que o garoto não pôde perceber, devido a longos puxões, que tentavam amputar seus membros inferiores.
Tão imaculado era o coração daquele garoto, que agora lutava por sua vida, no rio de Veneza, chamado Pó.
Nunca sentira isso... Apenas desejava que lufadas, mais profundas que as suas, deixassem a garota, e que sua dor se duplicasse em todas suas células... Podia sentir seus olhos se tornando semicerrados, e os lábios mordidos ferozmente pelos dentes, se encresparam em puro desdém. Em suas mãos, grande força brotou, e com brutalidade, tomou nelas a criatura que mastigava seus dedos, implicando toda sua força quando bifurcou seu corpo.
Seus olhos não viam o monstro surreal, apenas os sulcos e veias de Ofélia se partindo em suas mãos... Um véu de maldade cobria seus olhos.
"Não!" – Gritou o garoto, buscando futricar aquilo que se apoderava de sua mente. Imagens de sua infância voltaram a correr loucamente por seus olhos, instigando sua raiva, como nunca pensou que fosse possível.
Sua tia, muito à frente, pôde ouvir o grito, e enfim ver o perceptível líquido rubro em grandes poças ao redor do garoto, molhando o chão árido onde pisava, segundo a visão de Ofélia. Ela sabia o que aconteceria, com isso seus olhos marejaram.
Nem tudo o que brilhava era ouro, mas tudo que ali era rubro, era sangue! Como aquele líquido lhe era conhecido, como aquela dor e possessão lhe eram conhecidas...
Sem pensar duas vezes, correu em direção ao garoto que afastava algo invisível ao mundo da garota, e logo deduziu que viera mergulhado num rio.
Uma camada, das várias, de seu vestido foi retirada com um leve repelão, e com ele limpou as mãos de seu prosélito, mas já lhe era inviável.
O corpo de Luca absorvia todo aquele indecoroso líquido. Sua pele morena, agora era avermelhada e mais clara, pelo sangue que fora ingerido em demasia.
Era um paradoxo: o garoto ficava tão forte quanto desejava, em contra partida se tornava travesso... Iníquo, tão quanto as belicosas Bailarinas lhe permitissem absorver o Poder.
"Perdoe-me" – Disse o garoto, aprazível, adornando seus olhos com um mel de pura maldade, misturado ao sangue, criando uma camada do líquido em seus olhos, tornando-os assustadores, pois seus capilares eram demasiadamente expostos. Por milésimos, os olhos da garota se encresparam, mas não o bastante para que percebesse que não acreditava. Sorriu, exercitando deliberadamente seus músculos faciais, mas não verdadeiro o bastante para atingir seus achocolatados e amendoados olhos, agora sem a risca rubra de ódio.
"Venha, vamos deixar Pó" – Voltou a dizer Luca, puxando com delicadeza o braço esquerdo de sua tia, que se arrepiou de medo, quando tocada inesperadamente.
Andaram até uma distância considerável das poças do líquido maligno, que logo se tornaram apenas borrões de forma irregular. O silêncio era constrangedor, mas Ofélia temia quebrá-lo.
Podia ver, logo atrás, o Campanário, com sua apolínea faca de dois gumes, que lhe mostraria Florença e lhe forneceria o genuíno e casto Poder, entretanto não ousaria explicar-lhe ao rapazote.
"Vamos ao Campanário!" – Farfalhou o temido garoto, designando e olhando o lugar que apenas era permitido ver de rabo-de-galo.
Não lhe fora possível esconder o espanto. A garota pulou para trás bruscamente, tropeçando no vestido e tornozelos, e enfim caindo de costas no árido chão. Suas mãos sangraram levemente, devido o impacto com os pedregulhos.
Luca olhou de forma prepotente, de cima, e disse com veemência: "Rápido!" – Seguindo, sem aguardá-la.
Sua gravata fora novamente apertada ao pescoço, tornando suas vestimentas, novamente, formais. Engraçado, devido à ausência dos sapatos, mostrando os longos cortes irregulares de seus pés, coagulados, mas ainda assim monstruosos por sua risca de vermelho contra sua pele esbranquiçada dos pés. Suas mãos estavam com leves arranhões, sendo possível ver o sangue monstruoso se apoderar de seus leucócitos e hemácias imaculados, como se travassem uma luta.
"Cretino" – Murmurou a garota, fazendo-o esboçar um sorriso, já muito à frente. Seus lábios também estavam rasgados, devido ao forte atrito com os dentes, tornando o sorriso doloroso aos olhos de Ofélia.
Sentia a raiva brotando, e lhe atingindo... Banhando-a alucinadamente. Afinal: Ela era sua tia, ou sua vassala?
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