O Começo
O pacote pardo estava fechado e bem seguro na mão firme que o prendia. A Sargento Warrington já havia classificado há muito tempo as rosquinhas do Screws como essenciais em suas rondas noturnas por Los Angeles. Acabara de sair do estabelecimento e caminhava diretamente para a sua viatura policial parada no estacionamento pouco iluminado. Abriu a porta do passageiro com firmeza e entrou no carro.
Levou um pouco de tempo até os demais sentidos da policial se acostumarem ao novo ambiente. Sua visão foi se acostumando a escuridão dentro do carro, seu olfato aspirando o cheiro de couro que vinha dos bancos novos, o som displicente do The Outfield que saía do rádio chegava aos seus ouvidos enquanto ela procurava a superfície áspera do cinto de segurança. Em segundos, seu paladar sentia o doce da rosquinha derreter por sua boca. Ela curtiu a sensação enquanto o carro começava a rodar pela avenida. Só o Screws sabia fazer a melhor rosquinha da cidade.
–Mmmmm... – Ela se saboreava com a guloseima. A voz de uma risada se juntou a música nos seus ouvidos.
–Isso pode causar obesidade, sabia?
O parceiro de Warrington, Carl Black, divertia-se com o comportamento da colega enquanto dirigia pela cidade.
–Tenho que aproveitar a minha juventude! – falou ela simplesmente, ignorando as alfinetadas do colega de trabalho e amigo. Já se acostumara com o jeito de Carl, e duvidava muito que uma rosquinha de vez em quando pudesse alterar muita coisa no seu metabolismo.
Na verdade, Amélia Warrington não era nenhuma modelo. Tampouco era gorda. Amélia era uma mulher de curvas. Tinha bonitas pernas e uma cintura modelada, sua pele era branca como leite e seus cabelos negros iam até os ombros. Amélia conseguia a façanha de ficar sexy até mesmo dentro da sua roupa militar o que virava a cabeça de muitos policiais na delegacia. E, é claro, o fato de ser a única mulher de seu batalhão não ajudava muito.
Mas Amélia Warrington despreza todos os policiais de Los Angeles e suas tolas investidas com relação ela. Ironicamente, como sempre acontece, o único policial que ela queria virar a cabeça era justamente aquele que não a via como tal.
–É serio? – perguntou Carl enquanto paravam num sinal vermelho – você prefere morrer gorda e caída a ter uma aparência, digamos, enxuta?
–Procuro não pensar muito no amanhã... – falou ela simplesmente enquanto seus dedos ençucarados voltavam para dentro do saco à procura de mais rosquinhas – E você fala como se fosse manter esse seu porte atlético através da eternidade...
–Quem sabe – respondeu Carl – nessa profissão a gente nunca sabe quando podemos ir dessa pra uma melhor.
Amélia engasgou ao mesmo tempo em que sentia um frio percorrer sua espinha, virou-se para lançar uma dura crítica ao comentário do parceiro. Mas parou, quando notou um leve traço de amargura no rosto do amigo.
Carl Black era de Nova York. Teve uma infância humilde no Brooklyn. Vira muitas coisas em sua vida como, por exemplo, o assassinato do próprio pai que também era policial. Um assalto a mão armada em uma joalheria, uma farda ensangüentada no chão, e Carl Black se viu sem pai na confusa metrópole do mundo. Ele tinha oito anos.
Curiosamente, o que vira não havia traumatizado o garoto, mas sim, aumentara ainda mais o gosto pela profissão. Carl Black se entregou ao juramento do dever com afoito, para honrar a lembrança do pai.
Amélia tentou levar a conversa para águas menos tensas.
–Você precisa é arranjar uma namorada – falou rindo, tendo o cuidado de não deixar transparecer nenhuma indicação na sua voz. Já havia cansado da natureza passiva de Carl; se ele não percebia, ela que não iria dizer.
–Eu tenho uma namorada...
–Tem?! – perguntou Amélia rápido demais, sua mão paralisou no saco de rosquinha.
–Sim – Carl riu – A minha pistola calibre 380. O padre é quem vai casar a gente. – falou enquanto dava tapinhas no bolso interno da farda onde estava o distintivo.
–Uhhh... – Amélia usou o sarcasmo – Falou o matador profissional.
Carl não discutiu. Era verdade. Nunca havia matado ninguém durante todo o tempo em que servira como policial. Sempre pegara os caras vivos.
Ele não sabia muito bem como se sentia em relação a isso. Não que matar fosse uma coisa boa, mas, ele não gostava de se sentir inferior aos outros companheiros de batalhão. Todas as vezes que pensava sobre o assunto, no entanto, o que via era o assassinato do próprio pai. Ele sabia que não queria o mesmo destino para alguma outra criança.
O silêncio se colocou entre eles enquanto Amélia saboreava as suas rosquinhas e Carl flutuava em seus pensamentos enquanto dobrava a viatura na Rua North Spring.
***
A luz do poste iluminava um pequeno trecho daquele beco imundo. A água saía do vazamento de algum cano e escorria em volta da parede. De uma lata de lixo próxima ouvia-se o guincho estridente de ratos. As duas figuras que ali estavam olhavam uma para outra, o ódio se emanando em ondas de seus corpos.
O homem vestia calça e camisa sociais novinhas e um tanto folgadas, sapatos bem lustrosos, uma corrente de algo que lembrava prata era visível por cima da camisa. Sua pele era cor de jambo o que indicava sua procedência Latina, Porto Rico ou Honduras talvez. Tinha um bigode fino e sujo e na testa já apresentava algumas entradas sob o cabelo desgranhado. Nas mãos segurava um bolinho de notas de dinheiro e brincava de passar o dedo por elas enquanto olhava para moça com desprezo.
–Não está faltando nada aqui, sua vagabunda?
–Isso é tudo que eu tenho!! Eu não tenho mais nada, Zito!
A garota respondeu com ódio e coragem, embora seu coração estivesse disparado e ela estivesse quase entrando em pânico por dentro, com o rabo dos olhos olhou para os lados encurralada. De um lado, a rua passava pelo beco deserta aquela hora da madrugada. Uma cabine telefônica apedrejada do outro lado da rua sobrevivia abandonada. O outro lado do beco, ela não conseguia distinguir o que havia através da escuridão. Se tivesse sorte, poderia despistar o homem e sair correndo. Mas antes que pudesse tomar uma atitude, Zito guardou o dinheiro no bolso traseiro da calça e se aproximou dela pegando ela pelo queixo.
–Vem cá, sua vagabundinha, ta achando que eu sou palhaço??? Já faz um bom tempo que tu anda me devendo! É bom tu pagar o que deve se não eu te mato!
–O movimento está fraco, ok?! Não é sempre que eu consigo algo...
PÁÁÁ!!!! O som do tapa ecoou pelo beco. Zito olhou para ela com desprezo enquanto ela voltava o rosto para ele, os cabelos grudados no rosto.
–Mentirosa!... Vadia... Ontem mesmo vi você entrando em três carros diferentes... vai negar agora vai?
A garota olhou para ele com raiva. Seus olhos fulminavam o homem a sua frente fazendo um esforço violento para não deixar as lágrimas caírem. Seus cabelos ruivos estavam colados em sua bochecha. Estava encostada em uma parede, usava roupas excessivamente curtas planejadas justamente para atrair os seres do sexo masculino através de suas coxas e de seu decote. Odiava tanto aquela vida, mas não odiava mais do que ao homem a sua frente.
–Tudo que eu consegui eu te dei! Não sobrou mais nada!!!
Ele pegou ela por um braço gritando. A outra mão voou rápido para um bolso e quando voltou, ela sentiu um terrível frio espalhar pelo seu corpo.
Zito encostara a faca extremamente afiada em seu pescoço.
–Vem cá sua vadia mentirosa!!! É bom você me pagar o resto ou então eu corto a sua garganta de ponta a ponta, ouviu?!
Ela estava paralisada de terror. Sua respiração arquejava. Não duvidava que Zito fosse capaz de fazer aquilo que estava ameaçando. Já ouvira falar de coisas muito mais terríveis e chocantes vindo de Zito. Histórias de arrepiar pessoas com estômago forte.
Então, algo inesperado aconteceu.
–Solte ela!
E tudo se passou muito rápido.
Zito a pegou por um braço e a jogou de costas sobre ele de frente para a saída do beco. A faca pressionava sua garganta. Ela pode ver uma viatura policial a frente da cabine telefônica. Um policial estava na entrada do beco, e apontava sua pistola diretamente para eles. E Zito a usava como escudo.
–Solte-a! – repetiu o policial.
–Uuuuuh – Zito zombou – calma aí, anjo da guarda! A gente só estava tratando de uns assuntos patrão-empregado, sabe como é.
–Socorro!!! – a garota gritou – Por favor me ajude!!!
–Chhhh!!!! – chiou Zito – Cala a boca sua vagabunda! Vamos lá anjo da guarda, não vamos nos preocupar com tão pouco. Ela é só uma prostituta não é?!
Uma veia saltara na testa do policial. Seus olhos se estreitaram de raiva. Pelo jeito, o homem acabara de falar justamente o que não devia.
***
As palavras do homem foram como um detonador de granada para Carl Black. O policial sentia a raiva se apoderar dele numa onda que ele não pode controlar. O fluxo de lembranças passou voando pela sua cabeça. Seu pai morto durante o assalto. A mãe saindo todas as noites. O dia em que descobrira de onde vinha o dinheiro que o sustentava e do qual ele se alimentava.
–Solte-a!!
Mas não foi a voz de Carl Black que ecoou pelo beco e sim, outra mais feminina, vinda diretamente da outra direção.
Aquilo desnorteou o homem. Ele se virou, pego de surpresa, arrastando a garota consigo ao mesmo tempo que Amélia Warrington surgia da escuridão do beco, a pistola também apontada para eles.
Mas ao fazer isso, o homem baixou a guarda em relação a Carl. Um erro fatal.
Carl não pode controlar a onda de raiva que foi se espalhando pelos nervos de seu braço até os dedos... e puxou o gatilho!
***
As viaturas policiais enchiam a Rua North Spring, os dois carros da perícia haviam estacionado atrás da viatura de Black e Warrington. Os policiais iam e vinha pelo beco que agora estava bem iluminado pelas luzes das sirenes e dos fotógrafos da perícia que usavam flashes estonteantes. O corpo caído no chão era fotografado e analisado enquanto os policiais tentavam não pisar no sangue rubro-tinto que escorria pelo chão.
Carl Black estava encostado na sua viatura, olhando para o chão. Um pouco afastado de onde os outros homens faziam os procedimentos de praxe. Estava tão absorto em seus próprios pensamentos que nem prestara atenção quando Amélia se aproximara e se encostara ao lado dele na viatura.
–Carl... você está bem?
A voz da parceira fisgou-o do oceano negro onde estava submerso.
–O que?... Claro, Amélia... Claro que estou bem...
–Não, não está... Você acabou de matar uma pessoa hoje... pela primeira vez... é claro que não está!
Carl respirou fundo.
–Eu... eu só não pensei que seria desse jeito... só isso... eu me descontrolei... quando vi tinha puxado o gatilho...
Amélia respirou fundo, e então colocou a mão no ombro do colega e amigo.
–Deu, está tudo bem! Acabou agora...
Os dois ficaram ali por mais algum tempo. Amélia podia sentir a confusão que emanava dele. Queria poder abraça-lo... Quem sabe beija-lo.
Cedo. Muito Cedo. Carl Black se levantou, se afastando do seu toque.
–Você tem razão. O que está feito, está feito. Não dá para se lamentar agora – ele falou, desejando do fundo do coração acreditar em suas próprias palavras – vamos, vamos ver se eles precisam da gente.
Amélia seguiu atrás dele. Odiando o costume de Black de sempre se achar homem o suficiente para desdenhar os próprios sentimentos. Os dois caminharam lado a lado de volta a entrada do beco onde os policiais faziam as últimas perguntas para a garota. Ela estava encostada em uma outra viatura, e chorava profusamente.
A garota se virou quando os dois policiais se aproximaram. Reconhecendo em Carl o seu salvador.
–Obrigado!! Muito obrigado, mesmo!! Ele merecia morrer aquele cafajeste!!
Evitando olhar para o corpo de Zito caído e ensanguentado no beco, Carl se obrigou a olhar nos olhos amendoados dela. Percebeu então o que havia disparado a raiva do seu inconsciente. A garota não só lembrava a sua mãe. A garota era parecida com sua mãe quando ela era jovem.
–Como é o seu nome? – Carl perguntou.
A garota hesitou, então respondeu.
–Scarlett.
Mas Carl sabia que era mentira, dificilmente as prostitutas usavam nomes verdadeiros, era quase que uma exigência silenciosa da profissão.
–Ela precisa ser levada para a delegacia agora, para o interrogatório formal – falou um dos policiais a qual haviam se reunido – Aqui não é um bom lugar para ela ficar; Sargento Warrington leve-a daqui.
–Sim, Tenente Olliver. – e se virando para a moça – Por aqui...
Carl ficou olhando enquanto as duas mulheres se encaminhavam até a viatura policial. Ficou olhando ainda quando as luzes da sirene se apagaram ao longe. Ele se sentia péssimo, como se seu corpo pesasse mil vezes mais do que normalmente pesaria.
Foi quando ele sentiu algo no seu bolso se mexer, num gesto automático ele pegou o celular. Atendeu no mesmo momento, sem se preocupar em perceber que a ligação vinha de um número não rastreado.
–Alô?
O silêncio.
–Alô???
Uma risada.
–Alô?? Quem está falando??
–Ôooooh... Calma aí anjo da guarda!!! Conseguiu livrar aquela vagabundinha dessa vez não foi?
Um gelo se espalhou por cada partícula do seu corpo. O pavor crescente o dominou. Era impossível. Não podia ser aquela voz. Ele se virou no mesmo lugar para olhar fixamente para o corpo do homem.
–Quem está falando?!
–Ah... Anjo da Guarda... Não se faça de besta!!! Você sabe quem é!! E escute bem, anjinho... você pode ter safado aquela vadia dessa vez, mas não irá salva-la na próxima!!!!
–Tuu... Tuu... Tuu...
A chamada fora encerrada. Carl estava parado no mesmo lugar. Seu cérebro estava congelado enquanto olhava para o corpo de Zito no chão. Um buraco ensangüentado no ouvido indicando o lugar onde a bala perfurara para se alojar no cérebro. Ele estava lá, visivelmente morto.
Mesmo assim, Carl Black acabara de falar com ele pelo telefone!
CONTINUA...
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