Godric's Hollow



 Tudo passava muito rápido.


Harry parecia cair. Sentia que estava montado em uma vassoura, que ia cada vez mais rápido em direção ao chão. Aos poucos ia identificando os telhados das casas.


Não estava entendendo muita coisa, exceto a dor lancinante no braço esquerdo quando bateu no telhado de uma delas, rolou por cima deste e despencou três metros na grama.


Sentia o gosto da terra em sua boca, e podia ouvir alguma movimentação de dentro da casa. Passos se aproximaram e mãos pousaram levemente em suas costas, virando-o com cautela. Os cabelos dela cheiravam avelã, mas foi quando aqueles olhos tão verdes encontraram os seus que ele realmente soube que havia dado certo.


- Tiago, venha rápido aqui!


 


CAPÍTULO 3 – GODRIC’S HOLLOW


 


Sua visão havia ficado repentinamente turva, mas pôde observar quando seu pai se aproximou e olhou para ele no chão.


- O que faremos? – Lílian perguntou um pouco aflita.


Harry sentiu que o pai procurava alguma coisa em seus bolsos – sua roupa havia mudado – no casaco de aviador que vestia. As mãos dele eram muito mais pesadas que as de Lílian, e foi com um pouco de violência que ele retirou uma carteira do bolso interno de Harry.


- Aqui diz que o nome dele é Murilo – ele mostrou a documentação para a esposa – trabalha no Quartel General dos Aurores. Acho que está na lista de desaparecidos.


- Estava, não é mesmo? – ela suspirou, parecia uma leve brisa.


- Vou mandar uma coruja para a família – Tiago se adiantou.


- Acho melhor cuidarmos dele primeiro – argumentou ela – a família pode ficar preocupada.


- É verdade, mesmo o mundo estando como está, nós não podemos abrir mão da solidariedade – concordou – além disso, se ele conseguiu passar pelo Feitiço Fidelius não deve ser mau-intencionado.


Tiago então deu alguns passos no gramado e recolheu a vassoura de Harry, que havia se partido ao meio.


- Uma pena, era uma ótima vassoura...


- Quem são vocês? – Harry já havia recobrado os sentidos, mas fora hipnotizado pela presença dos pais. Não havia esquecido que para todos os efeitos, ele não os conhecia.


- Eu sou Tiago e esta é minha mulher Lílian – a voz dele era extremamente parecida com a de Harry.


- Nós vamos cuidar de você, não se preocupe – ambos erguiam Harry da grama e levavam-no para dentro da casa – parece que você quebrou o braço – realmente Harry sentia um peso muito maior do lado esquerdo do corpo – por sorte, eu tenho um pouco de Esquelese.


- Eu gosto de jogar Quadribol, que mal tem isso? – reclamou Tiago.


- Eu agradeço muito a vocês – de repente ocorreu a Harry que não poderia chamá-los de “pai” e “mãe”.


Entraram na casa, que em muitos aspectos lembrava o chalé das conchas – exceto pela luminosidade e pelo som das ondas – Os cômodos eram geminados naquele patamar, as paredes eram claras para contrastar com os móveis escuros, fazendo a divisão entre as áreas da casa.


A porta dava diretamente para um corredor aberto, que atravessava a residência ao meio: do lado esquerdo ficavam as salas de jantar, estar, e de visitas; do direito, a cozinha e uma área de serviço – ambas pareciam se abrir para o jardim nos fundos. O corredor tinha o piso de madeira, no mesmo tom dos móveis, mas as salas tinham um confortável tapete verde oliva, e ficavam alguns centímetros acima, como se estivessem num tablado. Harry suspeitou que aqui devesse ao frio, já que nevava muito naquela região, a julgar pela grande inclinação do telhado das casas vizinhas.


Por um momento ele imaginou a si mesmo correndo por ali, rolando naquele tapete, ao invés de permanecer o verão trancado num armário ou no segundo quarto do Duda. Ter seus livros e outros pertences guardados na estante e não debaixo do assoalho.


- Vamos colocar você no quarto de visitas, está bem? – Lílian não obteve resposta. Harry estava olhando para o relógio: eram oito horas. Os quartos ficavam no segundo patamar, e eram simples e aconchegantes. Bem maior que o seu na Rua dos Alfeneiros, tinha uma cama de casal, mas sem cortinas em volta.


Harry sentou-se na cama enquanto Tiago trazia uma muda de roupas limpas, e Lílian arrumava os travesseiros. Ele não estava acreditando naquilo, uma espécie de torpor havia se apoderado dele. “DEU CERTO!” ele pensava, e queria gritar, mas não poderia fazer nenhuma coisa suspeita.


Lílian então retirou-se do quarto para dar-lhe um pouco de privacidade. Ele estava com um braço quebrado, mas ainda assim conseguia se vestir sozinho. Foi com um assomo que ele verificou os bolsos da roupa antiga, não encontrando a chave em lugar algum.


Ele participou de um momento de pânico, até constatar que ela estava presa no seu pescoço por uma corrente.


- Posso entrar? – a voz suave dela passou pela porta.


- Pode, pode sim.


Harry estava deitado na cama, e viu que ela trazia uma bandeja com chá, pãezinhos, algumas ataduras e uma garrafa com o líquido conhecido de aspecto amarelado.


- Tiago diz que é sempre bom comer alguma coisa depois da Esquelese – ela pousou a bandeja no criado-mudo – parece ter um gosto horrível – ela fez uma careta – eu mesma nunca precisei tomar.


- Sorte sua – Harry riu, servindo a contragosto um copo da poção.


- Não, não! – Lílian se adiantou, e Harry teve a súbita visão dele com três anos tentando montar na vassoura do pai – é preciso colocá-lo no lugar antes!


- Colocá-lo no lugar? – Harry estranhou – você quer dizer...


- Ora, não vai doer nada! – ela dobrou as mangas da blusa lilás que usava – Onde já se viu um Auror com medo de um osso!


- Tudo bem – Harry estendeu o braço, com um pouco de receio, embora já conhecesse a dor.


- Tudo bem – ela examinou o braço dele, que estava muito menos inchado do que parecia – não deslocou muito – ela posicionou as mãos extremamente leves – eu não vou te machucar. Quando eu contar três! Um! Dois! Trê...


Antes que pudesse completar a contagem, Harry retirou o braço.


- Eu disse que não ia te machucar! – o tom de voz dela beirava a indignação.


- Tudo bem! – Tiago voltou – ela faz isso comigo desde o...


- Terceiro ano? – Lílian completou.


- Acho que sim – ele riu, balançando displicentemente os cabelos para trás – você pode fechar os olhos se quiser.


- Não há necessidade – disse Lílian – eu já terminei – de fato, ela estava enrolando uma atadura no braço, mantendo-o no lugar.


- Pode beber – Tiago lhe estendeu um copo de Esquelese.


Harry prendeu a respiração e engoliu todo o líquido o mais rápido que pôde.


- É bom que você durma, vai levar mais ou menos uma hora para reconstituir o osso – Tiago foi fechando a porta enquanto Lílian apagava a luz com um aceno de varinha.


- Boa noite – ela disse.


- Boa noite – mãe, ele completou em pensamento, desejando não cair no sono. Foi inevitável.


 


Quando ele acordou, foi com o cheiro de comida. Devia ser quase uma hora da tarde.


Levantou com um pouco de dificuldade. O braço já estava melhor, mas ainda doía. Saiu do quarto e aproveitou para estudar aquele pavimento da casa. Havia três quartos, e uma sala de leitura. Um quarto era de visitas, o outro era a suíte do casal, e o último seria onde dali algumas horas...


Harry não quis pensar naquilo.


Desceu até a cozinha.


- Olá, vejo que já está melhor! – a sua mãe abriu um largo sorriso.


- Estou sim, obrigado! – ele retribuiu.


- Pode servir-se – ele não reparou que Tiago estava bem ao seu lado. Isso talvez contribuísse para que ele não conseguisse discernir nem o tipo, muito menos o sabor da comida que se limitava a engolir. Só o fato de sentar-se ao lado do seu pai em uma refeição lhe dava energia. Não teria que agüentar os insultos do seu tio, dividir grapefruit com seu primo nem ter a correspondência confiscada de suas mãos.


Uma pena não poder se concentrar na comida de sua mãe, apenas pôde confirmar as hipóteses de que ela era muito melhor que a da sua irmã, mas ainda assim menos saborosa que a da Sra. Weasley.


Após alguns instantes em que só ouvia-se o tilintar de talheres e copos com o som da mastigação, Harry puxou assunto.


- Percebi que há um berço lá em cima, vocês têm um filho?


Lílian olhou para o marido, como se estivesse lhe perguntando se era seguro contar o que estava prestes a dizer.


- Sim – ela disse – é um menino muito lindo, mas ele passa a maior parte do tempo dormindo. Ele não gosta de sair do quarto.


Harry sabia que aquela era uma fala ensaiada. Óbvio que eles deixavam o filho longe de olhares estranhos para protegê-lo, ele também faria isso se seu único filho fosse ameaçado pelo mais perigoso bruxo da época.


- Não gosta é? – Harry achou graça.


- Mas eu tenho certeza de que ele vai ser um apanhador em Hogwarts quase tão famoso quanto eu! – a voz de Tiago encheu-se de orgulho.


- Tiago! – protestou a esposa – Eu disse que Harry não iria montar numa vassoura antes dos dezessete! Você concordou.


- É... – ele alisou os cabelos para trás – mas você não disse que seria uma vassoura voadora...


Os dois caíram na gargalhada enquanto Lílian fazia um muxoxo de contrariedade.


- Vai ser um sabe-tudo como você então? – ele desafiou.


- Pois eu ficaria muito honrada!


- Tenho certeza de que ele vai ser um grande bruxo! – interrompeu Harry, que no fundo estava adorando ver os pais discutirem.


- Semana passada Dumbledore disse que eu sempre tive um saudável desprezo pelas regras! – continuou Tiago – além disso, ele já tem os seus olhos!


- Ok, você venceu! – ela ergueu os braços pedindo trégua – eu tenho que ir lá em cima agora – quer ir comigo? – ela perguntou para Harry.


- Q-quero sim – ele foi pego de surpresa.


Ela então pôs um pouco de suco numa mamadeira e indicou as escadas.


- Ele tem pouco mais de um ano agora – ela abriu a porta do quarto, que era grande e bastante claro, com a mobília clássica de um quarto de bebê nos tons de creme.


A princípio Harry não viu a si mesmo no berço, devido à proteção acolchoada que cobria as laterais. Precisou se aproximar bastante para isso.


Era verdade, ele gostava muito de dormir, pois Harry surpreendeu o bebê no exato momento de um bocejo. Ele estava de olhos fechados, e quando abriu-os podia ver duas pequenas esferas muito pequenas e verdes.


Exatamente iguais aos de Lílian. Sempre haviam lhe dito aquilo, mas agora que podia comparar a semelhança era mesmo impressionante.


- Ele tem os seus olhos .


- É o que todo mundo diz – ela tirou o bebê do berço, que não protestou, ao contrário, recostou a cabeça em seu ombro – só espero que não fiquem enchendo muito ele quando for mais velho.


- Eu duvido muito – Harry riu, e com aquele sinal o bebê percebeu que havia alguém. Abriu os olhos e encarou Harry por um largo momento, como se já o conhecesse.


Lílian mostrou a mamadeira e ele deu uma pequena gargalhada, sem tirar os olhos de Harry.


- Parece que ele gostou de você! – ela ofereceu o suco ao bebê – Ele não fica assim tão agitado na hora de comer, e muito menos quando recebe visitas!


- Acho que as crianças gostam de mim.


- É sério, ele é muito anti-social! Principalmente se tratando de Pedro Petigrew.


- Ele se parece com Tiago – Harry sorriu, e o bebê passou a retribuir, espalhando suco pelo macaquinho.


- Ah sim! – ela suspirou – queira Merlin que ele não se meta em tantas confusões como o pai.


- Se for se meter não será a toa – Harry argumentou – e acredito que saberá se virar muito bem!


- Nós estamos nos esforçando tanto para que ele cresça seguro! – ela estava quase chorando, Harry não queria vê-la chorar.


- Tenho certeza que ele não se esquecerá disso quando for mais velho – ele buscou consolá-la.


- Claro que sim – ela sorriu, e uma pequena lágrima escorreu pelo seu rosto – sabe, eu e Tiago queremos que ele tenha uma irmã, ter com quem brincar. Eu detestaria vê-lo trancado num quarto o verão todo!


Harry sentiu como se estivesse engolindo uma enorme e fumegante almôndega. Ele deveria ter uma família, uma irmã. Perdeu-se imaginando como ela seria, imaginou-se cuidando dela, protegendo-a dos outros, tendo ciúmes dos seus namorados...


Não pôde impedir que uma pequena pontada de orgulho o preenchesse. Era triste pensar que tudo aquilo jamais aconteceria, mas ali ele tinha a certeza que alguém o havia amado, havia pensado nele com extremo carinho, feito planos para seu futuro, garantindo sua felicidade.


E ele podia retribuir.


- Você quer segurá-lo? – ele nem percebeu quando Lílian o trouxe de volta á realidade.


Nem respondeu, mas Harry já estava em seus braços, os olhares dos dois idênticos, admirando-se mutuamente. Ele se perguntou se ele sabia quem era aquela pessoa, se sabia o que iria acontecer com ele dali algumas horas. Harry deteu-se na testa, ainda sem cicatriz – por sorte a sua estava coberta pelo cabelo.


Aquela cicatriz havia lhe tomado quase tudo o que ele mais prezava, por outro lado, ele não conseguia se imaginar sem ela. Seria maravilhoso ter uma família, mas para isso ele sabia que teria que abrir mão toda a sua vida.


E acabaria morto nos jardins de Hogwarts, algo que sua mãe jamais permitiria.


No fim, aquilo que estava feito não podia ser desfeito. Passou quase vinte anos maturando aquela idéia, mas só agora compreendia a essência. Ele tinha pessoas que o amavam e que o amaram – essa certeza bastava.


E como se estivesse acompanhando seu raciocínio, o bebê em seu colo bocejou, pronto para voltar a dormir. Harry o entregou a Lílian, e ambos recolocaram-no no berço.


- Você tem muita sorte – sussurrou Harry enquanto Lílian arrumava o bebê, e Harry jurou que conseguiu ver, naquelas últimas piscadas algum sinal de concordância.


Os dois ficaram em silêncio até ele adormecer por completo, e só então Harry lembrou que aquela era a lembrança que o permitira produzir um patrono pela primeira vez.


Não de seus pais olhando para ele, diferente disso.


Era dele próprio, com uma família.

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