Queda num Buraco



O Ritual Musgrave começara a lhe dar sono. Não que calcular a sombra de um carvalho já derrubado juntamente com o Sherlock não fosse interessante, mas o problema não eram as perguntas incessantes que Sherlock respondia, mas sim os olhos cinzentos de Malfoy pairando em sua cabeça. A imagem vinha e voltava, dançando em frente às letras, embaralhando tudo o que ela estava começando a entender. Ela fechou o livro com um estampido muito alto que acordou bichento de um pulo.


O gato remexeu-se, arqueando as costas e bufando, mas estancou a bufada ao manter os olhos presos em alguma coisa que se mexia perto do Salgueiro Lutador. Hermione cerrou os olhos, inclinando a cabeça para trás. Segurava, contra a vontade dele, Bichento firme em seu colo. Ele era um gato esperto, mas a neve devia estar muito profunda por sobre a grama, então qualquer deslize poderia deixá-lo enterrando.


- Merlin – Ela suspirou, como quem buscava a ajuda de algo que na verdade era intangível. O gato ronronava alto, batendo com o rabo de escovinha nos braços dela com a força de um chicote.


Hermione abriu os olhos, ainda segurando o gato com os braços muito juntos. Ele estava em posição de ataque, com as pernas juntas e o rabo balançando com vontade. Seus olhos estavam presos naquele pedaço de neve que se mexia, parecendo cavar uma espécie de buraco perto da base do Salgueiro Lutador. A garota admirou-se com a serenidade da árvore, mas lhe ocorreu que talvez aquela criatura, assim como seu gato laranja, sabia a localização do nó que a fazia parar.


- O que é aquilo? – Perguntou em voz alta, levando o gato consigo ao erguer-se do chão. Bichento reclamava com mios altos e espalhafatosos. O cachecol caiu de seu pescoço quando Bichento mexeu-se com avidez, desvencilhando-se do aperto da dona. Hermione deixou que o livro caísse também, preparando-se para correr atrás do gato.


A coisa branca mexeu-se mais uma vez e, com um salto no ar, mergulhou para dentro do buraco que havia, habilmente, cavado na neve profunda. Bichento venceu com facilidade a profundidade da neve, enquanto a bruxa enterrava-se até os joelhos, tentando atingir uma velocidade aceitável, para que conseguisse atingir o buraco na base do Salgueiro, antes que o efeito do nó passasse.


- Bichento! – Ela gritou, quando o gato posicionou-se nas margens do buraco, sentando-se na grama recém descoberta pela coisa branca, olhando tristonho para o interior do buraco. Hermione admirou-se com sua habilidade de chegar ao buraco em menos de dois minutos, então se posicionou ao lado do gato, também olhando para baio. – Aquela coisa branca fez um belo trabalho.


Ela admirou a escavação, porque além de a coisa ter deixado o buraco na base da árvore totalmente descoberto, ainda havia um bom pedaço de terra sem o mínimo resquício de neve. Bichento miou alto, olhando para a dona com tristeza. Hermione abaixou-se mais perto do buraco, olhando para baixo com mais atenção, alimentando certo medo de que a coisa branca subisse pelo buraco e lhe atingisse no rosto. Um barulho abafado, que lembrava o barulho de pombos, vinha lá de baixo.


A bruxa apertou as sobrancelhas, olhando do buraco para o gato e para o buraco novamente, como quem pedia permissão para alguma coisa. Bichento não se manifestou, pois ainda mantinha ar amuado e triste, isso não foi proibição nenhuma para Hermione esticar as mãos e colocá-las uma em cada lado do buraco, arqueando o pescoço para frente, tentando ouvir alguma coisa.


- Parece que você perdeu uma caça, amigo – Ela brincou, colocando-se mais para cima no buraco, pendurando-se ainda mais nas margens de terra frágil do lugar. – É mais escuro do que eu me lembrava – Observou, arqueando ainda mais o corpo, quase encostando a cabeça nas laterais do buraco. O túnel para a casa dos gritos estava logo abaixo dela. – Caso eu caia – Ela disse para bichento, virando o rosto na direção dele – não passarei do chão.


Bichento ronronou alto e passou a língua nos bigodes. Foi a última coisa que Hermione conseguiu ver antes de perceber a terra desmoronando embaixo de suas mãos e de seu corpo ser impulsionado pela força natural da gravidade para baixo. Ela caiu de cabeça no buraco, levando as mãos até a cabeça com a intenção de protegê-la da batida que sofreria quando o chão chegasse.


Mesmo que batendo com a cabeça no chão e saindo molhada do túnel, porque a neve que escorria para dentro deveria derreter, ela tinha a certeza de que a sensação seria muito melhor do que a que estava tendo agora. O cabelo saíra do coque muito bem arrumado, então balançava com rebeldia, enquanto o vento empurrava suas roupas, deixando-as totalmente fora dos lugares. Hermione percebeu-se virar de pernas para baixo e sentiu a bainha do casaco comprido tocar seu rosto.


O vento não a deixava mudar a expressão do rosto, mas se pudesse, ela teria os olhos arregalados e os lábios plissados. Onde estava o chão, que já devia ter tocado seus pés há muito? Tentou baixar o braço para conseguir enxergar seu relógio, mas, mesmo se conseguisse baixá-lo, não teria como enxergar os ponteiros, já que naquele túnel em que caia estava muito escuro. Tentou inutilmente também agarrar qualquer coisa ao seu redor, mas não havia nada nas paredes.


Na verdade, não parecia haver paredes naquele lugar. A única coisa que ela conseguia realmente agarra era o ar gelado que agora tratara de levantar suas blusas e empurra para cima um bom pedaço da barra das calças jeans. Definitivamente, ela já não estava dentro do túnel que levava à casa dos gritos. Ao inicio pensou não lembrar exatamente da queda, pois naquela ocasião, ela e Harry haviam sido jogados para dentro pelos galhos irritados do Salgueiro Lutador. O que não lhe deixara com uma impressão muito boa de tempo e espaço.


- Ah – Ela suspirou, conseguindo alcançar o bolso do casaco, num golpe de puro pensamento desesperado. Sua varinha estava em seu bolso, então tentaria parar a queda, ou pelo menos acender uma lua para enxergar as coisas ao seu redor. – Lumus! – gritou, apontando a varinha para baixo, mas nesse momento ela sentiu a terra tocando seus pés.


A varinha rolou de sua mão, caindo muito longe de onde seu corpo desabara. Hermione batera os pés com muita força no chão, agora ela quase não os conseguia sentir, mesmo estando deitada de barriga para baixo, tendo os olhos cerrados e a mente trabalhando a mil. Com o toque brusco, ela caíra para frente numa espécie de grama fofa que cobria todo o chão do túnel onde ela estava. Pelo menos em seu pequenino campo de visão, aquela espécie de caverna com uma fonte de luz entrando apenas por uma abertura, parecia um túnel.


Permaneceu deitada por mais alguns instantes, tentando inutilmente abstrair algumas informações das memórias escuras da queda. Não havia nada que a remetesse a qualquer coisa que pudesse levar a uma explicação lógica. A grama era quente e isso a distraía. Suas pernas estavam doloridas e os olhos não queriam abrir de jeito nenhum. Conseguiu colocar-se com a barriga para cima e abriu o casaco, sentindo gotículas de suor brotarem de sua testa. Estamos no meio de dezembro, ela reclamou, afastando as golas das blusas de linha, tentando afastar o calor.


Aquela sensação era horrível. Seu corpo pedia para ser liberado e ela, assim o fez, abrindo os olhos e erguendo o tronco para retirar o casaco e as blusas. Sua sorte, ela havia pensado otimista, era que resolvera vestir uma de suas melhores blusas de manga longa. O capuz atrapalhava, mas aos poucos, ela conseguiu retirar as blusas e as dobrar, deixando as roupas excedentes a um canto. Aproveitou para amarrar no alto da cabeça o cabelo armado, puxando também a franja longa para trás.


- Eu só posso ter morrido – Ela brincou sem achar graça, quando percebeu onde estava. Aquilo parecia sim um túnel, mas diferentemente da possível escavação subterrânea, a saída daquele lugar não ficava em frente e sim, no teto. Ela ergueu a cabeça para tentar enxergar mais do lugar, mas a luz não se propagava ali dentro. Ela era apenas um feixe que descia pelo buraco disforme e batia em linha na grama quente.


A luz não batia em nenhuma parte de seu corpo, porque aquele buraco era maior do que ela imaginava. Seu corpo estava há cerca de dois metros do feixe, assim como estava de sua varinha. Mas esta estava há cerca de três metros atrás de si. Hermione fez uma rápida pressão em suas pernas, visando aquecê-las e levantou-se, segurando-se nas paredes, que aqui eram pegáveis. Sua cabeça bateu no teto e ela abaixou-se. Não havia percebido ao olhar para o feixe de luz, que a escavação era tão baixa.


Arqueou o corpo, andando passos lentos até conseguir segurar a varinha. Juntou-a do chão e a colocou no bolso traseiro das calças. Não era um bom lugar para guardá-la, mas era um bolso grande. Tinha a vantagem de conseguir escondê-la, se por acaso tivesse ido parar no mundo trouxa. Juntou, na passagem, as blusas e o casaco, jogando-os por sobre o ombro. Suas costas já haviam começado a reclamar, quando ela finalmente conseguiu chegar à origem do feixe de luz. Sua cabeça saiu, automaticamente, pelo buraco disforme. Buraco, este, que se revelou maior do que ela imaginara. Era tão grande que seria possível que Hermione passasse deitada por ele.


- Eu só posso ter batido a cabeça no túnel da casa dos gritos e morrido – ela sussurrou, olhando boquiaberta ao redor. As poucas palavras pareceram um discurso de um século. Seu corpo ainda estava dentro do buraco, mas a cabeça conseguia enxergar quase tudo ao redor. O tal buraco, assim como o que caíra em Hogwarts, se instalava na base de uma árvore. Diferentemente do Salgueiro Lutador, aquela árvore era muito calma e não tinha o mínimo sinal de um nós especial.


Hermione estava dentro de uma floresta muito verde e muito viva, já que os barulhos de animais eram constantes. Ela podia ouvir os cantos diferenciados de pássaros e o farfalhar de asas empenadas, assim como conseguir distinguir os urros de ursos e rugidos de leões dos mugidos de vacas e roer de castores. Parecia um parque zoobotânico. Seus olhos estavam arregalados.


Sua primeira impressão fora encantamento, mas aos poucos o medo começou a afastar a surpresa e ela se viu mordendo os lábios e olhando desconfiada ao redor. Onde ela estava, afinal? Hogwarts não possuía uma floresta como aquela e muito menos uma passagem subterrânea mágica para qualquer lugar que fosse aquele. Ela apurou os ouvidos, ainda encarando cada canto daquela floresta altamente iluminada por um sol muito redondo e maior do que o natural, que produzia uma luz esbranquiçada.


- Merda, Merlin – Ela xingou, cobrindo a boca ao usar o nome de Merlin juntamente ao xingamento. Também xingou-se por falar. Devia estar quieta e se possível, deveria esconder-se no buraco novamente, saindo apenas quando julgasse seguro pensar numa solução de fuga daquele lugar. Eu posso aparatar, ela pensou, sorrindo de canto.


Fechou os olhos, preparando-se para aparatar para algum lugar além dos portões de Hogwarts, quando um farfalhar de folhas secas a fez virar-se, escondendo boa parte do rosto dentro do buraco da árvore. Atrás de si, um rapaz, que devia ter pelo menos quinze centímetros a mais do que ela, estava agachado ao chão, mexendo em uma mochila de cor verde. Ele tinha cabelos compridos até a clavícula, presos para trás das orelhas, mas mesmo assim impedindo que ela visse seu rosto.


Hermione admirou-se com seu estilo de roupas, já que era difícil ver um jovem usando terno, camisa e uma gravata longa, nas cores brancas. Ele parecia ser totalmente feito naquela cor, já que os cabelos e a pele eram tão claros e pálidos que mais pareciam uma extensão de sua vestimenta. Ela assustou-se, arregalando os olhos, enquanto os passava pelas linhas de movimento e atributos físicos do rapaz. Eram incrivelmente parecidos com os de Draco.


Ele ainda não havia percebido sua presença, mas ao levantar a cabeça e encarar o horizonte por um segundo, escutou o gritinho abafado que vinha de dentro do buraco. Por mais incrível que pudesse parecer, Hermione conhecia claramente aquelas feições bem marcadas, os olhos oblíquos cinzentos e o ar de superioridade estampados no garoto.


Ele podia estar em uma situação diferente e usando roupas que não condiziam com sua personalidade, mas ela reconheceria as feições de Malfoy até mesmo debaixo d’água.


- Draco? – Ela perguntou, quase sem voz, deixando seu pescoço passar tranqüilo pelo buraco na base da árvore. O garoto tinha a expressão de confusão no rosto, aquela expressão que Hermione adorava tanto. Além disso, ele exalava uma bondade que nunca antes exalara. Seria aquela uma outra dimensão?

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