Madrugada
"Corro perigo
Como toda pessoa que vive
E a única coisa que me espera
É exatamente o inesperado"
Clarice Lispector.
- Vem aqui, garota.
Eu fingia que não ouvia.
- Venha Miranda. Estou te chamando.
Continuava ignorando-a. Não há nada mais certo do que isso para mostrar que também tem suas vontades, quando se é criança.
- Não vou. - Eu disse e abaixei a cabeça, decidida a permanecer ali, sentada naquele balanço para o resto da minha vida.
Ouvi passos de minha mãe se aproximando. O barulho dos sapatos martelando no cimento duro e quente ecoavam. Fechei os olhos, bem apertado. Sabia que quando ela chegasse perto de mim o bastante, tudo estaria acabado. Era como se cada passo que eu ouvia chegando, fosse forte o bastante pra acabar pouco a pouco com a pequena coragem que tinha juntado até aquele momento.
Quando ela me alcançou, me apanhou tão forte pelos pulsos, que pude ouvir meus ossos estalando. Soltei um grito de dor, o que era o mesmo que nada aos seus ouvidos, ou até mesmo um incentivo. Era como se estivesse gritando, implorando para que continuasse com aquela tortura.
Logo em seguida, mamãe me arrastou para dentro de casa. Segurava-me com muita força, eu tinha a impressão de que arrancaria meus braços de mim a qualquer momento. Eu urrava de dor. Ela me puxou escada acima, fazendo-me tropeçar em cada maldito degrau. Chegando ao andar superior, me empurrou para dentro do meu quarto, o que me fez cair de joelhos em cima de alguns brinquedos esparramados pelo chão. Senti algo fino e cortante perfurar minha perna. Preferi não olhar. A essa hora, a dor estava tão latejante que já não me importava com mais nada.
- Enquanto não aprender a me respeitar, as coisas funcionarão assim.
Foi a última coisa que ouvi antes do estrondo que a porta fez ao se fechar bruscamente atrás de mim.
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Acordei assustada, como sempre. Suava em bicas, a cama estava encharcada. Levantei-me e conferi o relógio. 4:56 da manhã. Calcei minhas pantufas e desci as escadas tateando a parede em busca do interruptor. Ainda estava meio zonza.
Se ao menos pudesse usar a droga da minha varinha.
Acendi a luz e me direcionei à cozinha. Enquanto bebia um copo d’água, encostei na mesa e me pus a refletir o que estava acontecendo comigo ultimamente. Faziam anos que não tinha esses tipos de pesadelos,até que na semana anterior,eles voltaram com toda força,como acontecia quando era criança.
Relembrei cada detalhe do sonho desta noite. Não era algo inventado, nem algo que eu não fazia idéia do que era. Aquela cena realmente havia acontecido há um tempo atrás e me arrepiava só de lembrar disso.
Olhei para minha perna, em busca da cicatriz que adquirira neste dia, como se precisasse de uma prova para ter certeza de que não estava ficando louca. Encontrei-a. Não só essa, como várias outras. Sabia identificar cada uma.
Abaixei-me e fiquei durante bons minutos no chão frio da cozinha. Depois de um tempo, pude ouvir o escândalo matinal que meu despertador costumava fazer para me tirar da cama, lá de cima. Era segunda-feira. Daqui algumas horas, estaria embarcando no Expresso de Hogwarts, na plataforma 9 ¾ e finalmente estaria rumo ao castelo que era a minha verdadeira casa. Suspirei de alívio.
Agarrei a cadeira ao lado para me apoiar e me coloquei em pé rapidamente. Logo, uma forte onda de tontura chegou para me avisar que esquecera de tomar meus remédios na noite anterior.
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