Capítulo um





Capítulo um


 


          Já faz um bom tempo, lá por meados da década de 50, em uma cidadezinha inglesa fria e sem graça, vivia uma menina chamada Andrômeda. Era a segunda filha de um casal de ricos esnobes e preconceituosos e tinha mais duas irmãs: a mais velha chamava-se Bellatrix, e a mais nova, Narcissa.


          Por ser a irmã do meio, não gozava das mesmas atenções que Bella, cujos talentos naturais e a incrível beleza rendiam-lhe as admirações, ou que Narcissa, a delicada e doce irmã caçula, recebiam do restante da família. Porém, considerava ser a que mais se divertia.


          Vez ou outra Andrômeda escapava do olhar vigilante dos empregados (pois o senhor e a senhora Black, seus pais, não eram do tipo que parava muito em casa) e esgueirava-se para a pracinha logo em frente.


          Era uma pracinha circular, com uma pequena fonte no centro, cercada de árvores e arbustos que cresciam em círculos perfeitos “recortados” nas pedras da calçada, com banquinhos espalhados aqui e ali.


          Andrômeda gostava de sentar-se no banco mais afastado, próximo a uma macieira robusta e de costas para sua casa. Gostava de ver as pessoas ali, conversando, rindo e se divertindo. Eram tão diferentes das pessoas com quem a menina era obrigada a conviver; tão alegres tão simpáticas.


          Certa vez, em uma de suas escapadelas, Andrômeda observava um casal de idosos que atiravam pedacinhos de pão aos pombos, quando uma pancada no braço esquerdo a despertou.


          - Ei! – exclamou a menina aturdida, verificando que fora atingida em cheio por uma bola amarela.


          A bola era leve, mas fora jogada com força. Andrômeda, agora furiosa, mais pelo fato de a terem despertado de seu devaneio do que propriamente por ter sido atingida por uma bola, observou ao redor, procurando o causador do estrago.


          Não demorou muito para que um menino de rosto redondo aparecesse correndo em direção a sua escandalosa bola amarela.


          - Ei! Essa bola é minha! – disse o menino a certa distância. Andrômeda ficou ofendida com as maneiras e a expressão de desconfiança dele, e apertou a bola entre os braços.


          - Pois quem mandou você atirá-la em mim? – disse a menina enquanto o estranho marchava em sua direção.


          - Eu a acertei? – perguntou ele, quando chegou perto o suficiente. Estava um pouco corado e muito sem jeito, mas tentava disfarçar, fingindo indiferença.


          - Me desculpe, foi um acidente. Agora quer devolver a minha bola?


          - Você por acaso sabe com quem está falando? – disse Andrômeda colocando-se de pé. Eram da mesma altura, de modo que ficaram cara a cara.


          - Não me importa – respondeu ele. – Eu só quero a minha bola.


          Para muitas crianças, a ausência de um “por favor” é questão de simples esquecimento. O menino da bola amarela era uma dessas crianças. Não era, de certo, falta de educação para ele. Apenas um pequeno e tolerável descuido, algo sem muita importância. Já para Andrômeda, que fora educada para se comportar como adulta, a ausência desse mesmo “por favor” era um tremendo ultraje.


          - Pois saiba que está falando com Andrômeda Black! Black, ouviu? Uma das famílias mais importantes desse país!


          O menino a encarou impaciente, fitando-a de cima a baixo.


          - Isso só prova que além de ser uma menina mal humorada, é esquisita também.


          - ESQUISITA?! Como ousa me chamar de esquisita?


          - Não sou só eu, todo mundo no quarteirão acha a sua família esquisita. E se você é parte dela, também...


          - Nunca mais repita isso! – exclamou Andrômeda furiosamente, atirando a bola amarela no menino.


          Assustado, confuso e um tanto envergonhado pelo que dissera, o menino tentou consertar o estrago:


          - Eu só quis... Bem, não era isso que eu queria... Você está chorando?


          - Não estou não!


          Mas ela estava. Seus olhos ardiam e sua garganta doía.


          - O que foi que eu disse?


           - Você disse que eu sou igual a eles...  Esquisita, foi isso que você disse.


          - Eu só... – mas ele não achou nada melhor para dizer, então disse apenas:


          - Desculpe. – e entregou seu lenço à menina.


          Mesmo sem apreciar o gesto, Andrômeda pegou o lenço e enxugou as lágrimas.


          Ficaram em silêncio por um instante, mas como as crianças, diferentemente dos adultos, não gostam de se apegar a esses momentos embaraçosos de fraqueza, seja a sua própria ou a de outra pessoa, logo estavam rindo daquilo.


          - Como é o seu nome mesmo, o primeiro? – perguntou o menino tentando fazer amizade. Era algo muito natural para ele, algo que faria com qualquer outra pessoa. Seus avós diziam que era um “rapazinho simpático”, mas ele não gostava de ser chamado de rapazinho.


          - Me chamo Andrômeda. – respondeu ela, agora mais bem humorada.


          - Humm... – o menino teve que conter o riso o máximo que pôde, mas não foi muito bem sucedido.


          - Qual é a graça? – perguntou Andrômeda desconfiada.


          - Não é um nome muito comum, só isso. – explicou ele, contendo-se. – Você não tem um apelido, por acaso? Ia facilitar as coisas.


          Andrômeda pensou no assunto, o que a levou a pensar em como era chamada em casa. Nunca ninguém lhe dera um apelido, nem a chamara de forma carinhosa. Apenas Andrômeda ou, em ocasião de uma discussão com a mãe ou uma bronca do pai, “Andrômeda Callidora Black”, naquele famoso tom rude.


          - Não. – respondeu simplesmente.


          - Sem problema, lhe arranjamos um. – disse o menino animadamente.


          - Você e quem mais?


          - Minha nossa! Quase me esqueci! – exclamou ele, como quem lembra de algo que obviamente não deveria ter se esquecido. – Me desculpe, mas se puder me devolver minha bola, meu primo está me esperando.


          - Oh, claro. – disse Andrômeda, apanhando a bola do chão e entregando a ele.


          O menino apanhou-a e já ia dando as contas à nova amiga, quando virou-se rapidamente.


          - Não quer brincar com a gente, Andie?


          - Andie?


          - É, é seu apelido agora. Ou você prefere... Drômeda? – completou ele, rindo.


          - Não, Andie está bom. – respondeu ela sorridente.


          - Então, Andie: quer brincar com a gente? – propôs novamente o menino.


          Andrômeda estava quase aceitando, quando se lembrou de que não poderia se atrasar para o chá, ou perceberiam que não estava em casa.


          - Não posso, meus pais não deixam eu brincar.


          - Como é que é? Então você nunca brincou? Nem sozinha?


          - Nem sozinha, nem com as minhas bonecas. – lamentou Andrômeda. – Eles dizem que isso é coisa de criança.


          - Ora, mas você é uma criança!


          - Não para eles. Dizem que eu sou uma dama e tenho que me comportar como tal.


          - Que bobocas! – exclamou o menino, revoltado com a idéia de uma criança que nunca brincou na vida. – Você deveria fugir de casa!


          - Já pensei nisso. Mas para onde eu iria?


          Ele fez cara de esperto (ou pelo menos era o que pretendia) e deu um sorrisinho largo que, dali a alguns anos, faria muitas meninas se derreterem por ele. Mas antes que pudesse falar, ouviu alguém chamar por seu nome.


         Infelizmente, Andrômeda nunca soube que o nome que algum garoto do outro lado da praça chamava em voz alta, era o de seu novo amigo. E isso poderia ter mudado todo o rumo da história.


          Mas falemos daquele momento em si.


          - Preciso ir, Andie. – disse ele apressadamente.


          - Espere! – disse Andrômeda antes que ele saísse. – Seu lenço! – e quis devolver o lenço, agora meio úmido, a seu dono, que o recusou.


          - Fique com ele – disse o menino, sorrindo timidamente. – Precisa mais do que eu.


          - Eu vou te ver de novo? – perguntou Andrômeda, triste por ter de se despedir do único amigo que já fizera na vida.


          - Eu espero que sim. – disse ele, também um pouco desconfortável com a despedida, embora não soubesse, na época, que o que sentia era tristeza.


          - Que tal amanhã? Eu estou no casarão branco com a cerca amarela, no final da Rua Mayble, caso não me encontre na praça. Foi um prazer te conhecer, Andie. Agora eu preciso mesmo ir.


          Por algum tipo de impulso ou simplesmente porque tinha vontade e não via nada de mal naquilo, antes de sair correndo ao encontro de seu primo, o menino beijou a bochecha direita de Andrômeda, deixando a menina atônita.


          As meninas entendem as coisas muito antes dos meninos, é verdade, mas como Andie, ao contrário das outras meninas, nunca vira o pai dar um beijo no rosto da mãe, não entendeu nada. Só sabia que sentia um friozinho incômodo na barriga e suas bochechas queimavam de tão quentes. E que queria ver o menino de novo o mais cedo possível. O menino, por sua vez, só sabia que aquela era a única maneira que conhecia de dizer a uma garota que tinha gostado dela. E, claro, também sentiu um friozinho esquisito no estômago.


          Feliz por finalmente ter um amigo e imaginando as coisas divertidas que fariam na tarde seguinte, Andrômeda voltou para casa sorridente.


          Apenas quando Bellatrix, invejosa, lhe perguntou o motivo do riso, foi que a menina se deu conta de que não sabia o nome de seu amigo e aquilo a deixava desconfortável. Bem lá no fundo, em seu subconsciente, embora ela não soubesse que era no subconsciente que essas coisas aconteciam, uma vozinha lhe dizia que aquilo fora um grande descuido de sua parte. 




          Naquela noite, Andrômeda mal pôde dormir, tão ansiosa estava pela manhã seguinte. Se desse sorte, poderia sair ainda cedo, antes do almoço. Mas a tal sorte não colaborou com a menina naquele dia.


          Eram ainda nove horas da manhã quando Andrômeda fez sua primeira tentativa mal sucedida. Fora repreendida pela faxineira, que imaginava que a menina estava querendo apenas ficar no quintal, o que atrapalharia o jardineiro. As horas foram passando, preguiçosamente, deixando Andrômeda mal-humorada e aborrecida. Após o almoço fez uma nova tentativa, mas quase fora pega no pulo pela governanta, senhorita McCrady, o que tornou impossível sair naquela tarde, pois a mulher desconfiava das suas intenções “inadequadas”.


          Andrômeda ficou emburrada a noite inteira por causa disso, desapontada consigo mesma e revoltada com sua falta de sorte.


          Infelizmente esta não foi a última vez seus planos não deram certo. No segundo dia caiu um temporal e corriam boatos entre os empregados de que a chuva duraria todo o fim de semana. No domingo, porém, as nuvens sumiram e fez-se um belo dia de sol. Mas é claro que sair no domingo era loucura, tanto porque a família Black inteira se reunia para o chá no domingo à tarde, na casa de Andrômeda, quanto porque ninguém ficava na cidade aos domingos. Ela sabia disso porque, uma vez, vira a praça vazia em pleno domingo à tarde, da janelinha do sótão (o muro da casa dos Black era tão alto que não se podia ver nada do lado de fora, nem mesmo do terceiro andar).


          Somente na segunda-feira Andrômeda conseguiu o que tanto queria: sair de casa sem ser notada e procurar seu amigo. Estava tão animada quando deixou a imponente casa dos Black para trás, que não podia evitar sorrir.


          Caminhou radiante pela pracinha, esticando o pescoço e ficando na ponta dos pés. Procurou perto da fonte, nos banquinhos, entre as árvores, foi até o campinho, mas nem sinal do menino de rosto redondo. Lembrava-se perfeitamente de sua aparência, as roupas simples que vestia, o rosto pálido cheio de sardas, os cabelos claros e os olhinhos verdes. Nada. Havia apenas alguns casais de jovens, um grupinho de mulheres com seus bebês e homens com seus cachorros. Um ou outro menino brincando com pipas, mas nenhum deles tinha cabelos claros ou rostinho redondo.


          Já estava quase desistindo quando lembrou-se de que ele lhe dera um endereço: Rua Mayble, casarão branco, cerca amarela. Era para lá que ela iria.


          Não demorou muito para achar a Rua Mayble, era uma ruazinha sem saída, com casarões antigos dos dois lados e um parquinho com balanços no final. Quase todos os casarões eram brancos, mas as cercas, em geral, eram também brancas, ou então amareladas ou de tons pastéis como lilás e bege. Quando avistou um cercadinho amarelo lá no fundo, Andrômeda sorriu aliviada. Era a última casa do lado esquerdo, tão grande e tão antiga quanto as outras, mas, de certa forma, mais simpática. As janelas, a porta da frente e o telhado eram do mesmo tom de amarelo vivo que o cercadinho, tornando o casarão mais alegre.


          Andrômeda correu até lá. Caminhou pelo pequeno caminho de pedras que levava à varanda e bateu na porta, nem ao menos se dando tempo para apreciar o jardim, que por sinal era belíssimo. Demorou um pouco até que um senhor magro e alto, de cabelos brancos muito bem penteados, viesse atendê-la.


          - Sim. – disse ele em um tom plácido, observando a pequena visitante.


          - Com licença. – disse Andrômeda timidamente – O senhor pode me dizer se nessa casa mora um menino mais ou menos da minha idade?


          Ele pareceu surpreso com a pergunta, mas respondeu simplesmente:


          - Creio que sim, madame. A senhorita é amiga de meu patrão?


          - Bem, acho que sim. Nos conhecemos na praça, na semana passada. Ele está?


          - Infelizmente não, pequena. – respondeu o homem com um sorrisinho. – O senhor e a senhora Diggory, bem como seu único filho, acabam de sair.


          - Poxa, que pena! – lamentou-se Andrômeda. – Onde eu posso encontrá-los?


          - Por enquanto será difícil, senhorita. Os meus patrões foram acompanhar o sobrinho à estação de trem e é provável que não retornem até o anoitecer. Gostaria de deixar algum recado?


          - Bem, diga ao... – a menina parou no meio da frase. Já sabia o sobrenome de seu amigo, mas não sabia como chamá-lo. – Bem... Eu não sei o nome dele, exatamente.


          - Senhor Amos Diggory, madame. – respondeu o homem de maneira simpática.


          - Oh, sim! Diga ao Amos – o nome soava estranho para Andrômeda (principalmente porque o menino zombara do nome dela e tinha um nome ainda mais esquisito). – que se quiser o lenço dele de volta, procure uma menina vestida de verde na pracinha amanhã pela manhã.


          E com um sorriso radiante, deixou a casa dos Diggory e voltou à casa dos Black, aos pulinhos. Sentia-se poderosa sempre que usava mistérios assim, embora não da maneira que as mulheres se sentem, pois era apenas uma menina.




          As noites na casa dos Black eram sempre monótonas. Após o jantar, as meninas deveriam ir imediatamente para a cama. Nada de livros, nada de bonecas, nada de beijo de boa noite, apenas cama. Mas feliz ou infelizmente, naquela noite Cygnus e Druella (pai e mãe de Andrômeda) tiveram visitas: tio Orion, tia Walburga (irmã de Cygnus) e seus filhos Sirius e Régulus chegaram pontualmente na hora do jantar e ficaram até tarde.


          Andrômeda não gostava dos tios, pois estes eram ainda mais esnobes e mais preconceituosos que seus pais, mas gostava do primo Sirius, um garotinho que acabara de aprender a falar (Régulus era ainda um bebê). Era fácil ficar com Sirius, pois este era muito pequeno para ligar para as proibições estúpidas dos adultos. Então, como de costume, as meninas e Sirius ficaram na sala de música, enquanto os adultos conversavam na sala de estar e tia Walburga tinha pequenos ataques de ranzinzisse tentando fazer o bebê Régulus parar de chorar, no quarto de hóspedes, acompanhada da curiosa Narcissa.


          - Andômeda, Andômedaaa! – chamou Sirius, que não conseguia pronunciar o nome da prima corretamente. – Quelo fazê guma coisa! Guma coisa!


          - Que foi Sirius? – perguntou Andrômeda, despertando do devaneio em que estivera enquanto olhava para as trepadeiras do muro pela janela da sala. Pensava no menino, embora ainda não conseguisse chamá-lo pelo nome de Amos, e em como aproveitariam a tarde seguinte, brincando. A palavra a fazia sorrir.


          - Naum dome Andômeda! Quelo fazê guma coisa, vamo fazê guma coisa!


          - O que você quer fazer, Sirius?


          - Naum sei, mais é muto chato-qui. Quelo blincá!


      - Patético! – exclamou uma voz azeda, muito conhecida. Era Bellatrix, que aproveitava o tempo livre penteando os pelos de seu gato, Ébano.


       - Ele é só um menininho, Bella, deixe disso. – disse Andrômeda, voltando-se novamente para Sirius. – Do que você quer brincar, Sirius?


          O menino pensou por um tempo, olhou em volta e sussurrou ao pé do ouvido da prima, ficando na ponta dos pés:


          - Esconde-conde!


          Andrômeda deu uma espiada, através do hall, na sala de estar onde os adultos conversavam. Pareciam muito entretidos em algum assunto sério. Mesmo assim era preciso muita coragem para embarcar em uma aventura como aquela, pois, na casa dos Black, brincadeiras infantis eram punidas severamente.


          - Ouça, Sirius - sussurrou Andrômeda em resposta, ao ouvido do priminho.


          – Isto fica entre nós, combinado? Suba até o segundo andar e me espere no fim da escadaria, lá em cima (ela apontou para o lugar onde deveriam se encontrar). Não faça barulho, ouviu? Tem um lugar onde podemos brincar.


          O menino deu uma risadinha e seus grandes olhos azuis brilharam de excitação. O sentimento de simpatia entre eles era recíproco e, mais tarde, compreenderiam o porquê. Por enquanto queriam apenas aproveitar a companhia um do outro e se divertir, bem longe do nariz empinado de Bellatrix. 


          Sirius subiu as escadas na pontinha dos pés e esperou Andrômeda, enquanto esta fingia estar com sono, apenas para despistar a irmã.


          - Acho que vou me deitar, Bella. Você vem?


          - Achei que fosse cuidar do pirralho do Sirius. – respondeu Bellatrix rispidamente.


          - Não o chame de pirralho! Que coisa feia, Bellatrix! – impacientou-se Andrômeda, como de costume. – Sirius deve ter ido até a mãe dele, certamente está com sono também.


          - Pois então façam os dois muito bom proveito desta sonolência suspeita. – disse Bella indiferente. – Deixe-me em paz, sua impertinente. Mamãe disse que não devo me aborrecer.


          Mas pelo jeito pode aborrecer os outros, pensou Andrômeda.


          - Tudo bem, sua ranzinza. Não vou mais incomodá-la. – disse por fim. - Boa noite, Bella.


          Bellatrix não respondeu, nem sequer olhou para a irmã. Era uma menina mimada e prepotente, que se considerava muito acima de todos à sua volta. Mas na verdade, até aquele momento, era apenas solitária e se esquivava de todos os sentimentos bons que as pessoas lhe ofereciam por puro medo de se envolver e depender de alguém além de si mesma. Não devemos culpá-la, afinal os pais a educaram assim, como, infelizmente, muitos faziam naquela época. Em especial os de maior poder econômico. Mas deixemos Bellatrix e seu gato aborrecerem um ao outro e voltemos à pequena Andrômeda que, ao contrário da irmã, nos oferece melhor conteúdo.


          Andrômeda e Sirius se encontraram ao final da escadaria escura, como combinado. Sentiam-se em um livro de suspense, embora nenhum dos dois tivesse lido algo do gênero. Eram agora dois exploradores, fugitivos de soberanos perversos, em busca de aventuras. Contavam com uma imaginação fértil e corações puros como é de se esperar de crianças tão espertas quanto eles.


          Atravessaram o corredor escuro de mãos dadas. Andrômeda sentia-se protetora, por Sirius ser mais novo que ela. Era um sentimento que lhe fazia bem. Passaram pela porta entreaberta do quarto de hóspedes cuidadosamente, embora percebessem que tia Walburga roncava a sono solto na poltrona ao lado do berço de Régulos e Narcissa, tão pequenina quanto Sirius, pois tinham a mesma idade, pegara no sono na cama de casal. Subiram a próxima escadaria, passaram por todas as portas do terceiro andar até chegarem à última, a que levava ao sótão. Subiram mais um pouco e então estavam em completa escuridão.


          - Não precisa ficar com medo, Sirius. – disse Andrômeda ao menino, de maneira carinhosa. – Tem um lampião aqui perto, eu só preciso achá-lo...


          - Naum tô cum medu! – exclamou Sirius ofendido.


          Andrômeda encontrou e acendeu o lampião. Já estava acostumada a fazê-lo, pois visitava o sótão constantemente. É claro que aquilo era estritamente proibido, mas nos últimos dois anos a menina aprendera a não levar a palavra “proibido” tão a sério. E, no caso dela, fazia muito bem.


          Agora o sótão estava iluminado pela chama do lampião, que não era lá grande coisa, é verdade, mas era melhor que nada e podia-se saber por onde andar e no que não esbarrar.


          O sótão era o esconderijo favorito de Andrômeda. Estava cheio de móveis velhos, quinquilharias, bugigangas, caixas de papelão e teias de aranha. Não era um lugar muito convidativo a alguém que está acostumado a uma casa alegre, mas este não era o caso nem de Andrômeda, nem de Sirius. No sótão não havia proibições, brigas e caras feias. Para eles era como um refúgio, um mundo sem adultos, sem regras e sem etiqueta. Andrômeda não sentia como se seu mundo secreto estivesse sendo violado pela presença de outra criança, como poderia ter acontecido, mas pelo contrário: sentia-se muito feliz em poder dividi-lo com alguém de quem tanto gostava.


          Agora os olhos do pequeno Sirius brilhavam como nunca, o que o tornava ainda mais adorável, fazendo lembrar um bebê que acaba de descobrir para quê servem os dentes.


          - Qui legal Andômeda! Quelo blincá, quelo blincá-qui! – disse ele empolgado.


          - Então vamos...


          Mas alguma coisa interrompera a frase de Andrômeda, um barulho de batida muito abafado, que parecia vir de algum lugar na parede à esquerda.


          - Qui fui isso? – perguntou Sirius, que tentava não parecer assustado.


          - Parece que veio dali – disse Andrômeda apontando para o sofá encostado à parede. – Vamos dar uma olhada.


          A menina andou cautelosa até o velho sofá empoeirado, de ouvidos atentos enquanto Sirius a acompanhava, segurando a barra de sua saia, como uma criança que se protege atrás da mãe.


          Ouvia-se um ruído baixo, indiscernível. Poderia ser um chiado, ou ratos, ou até vozes, mas não dava para ter certeza.


          - Vou ter que empurrar o sofá. – disse Andrômeda, mais para si mesma. – É melhor se afastar Sirius.


          O menino obedeceu e Andrômeda empurrou o pesado sofá com toda a força que possuía que, embora não fosse muita, foi suficiente para separar o móvel da parede. Abaixando-se, a menina identificou de onde vinha o ruído. Era um tipo de cano, embora não soubesse dizer para que servisse, pois nada entendia de tubulações e canos.


           Agora que o som não estava abafado pela madeira do sofá, era possível entender o que se passava. Era um eco, eco de vozes. Andrômeda e Sirius ficaram ajoelhados ao lado do cano esquisito, escutando. Estavam muito excitados com o ocorrido, pois as crianças encontram aventuras maravilhosas nos acontecimentos mais simples.


          “Isto é ridículo, Druella! Elas são só crianças!” dizia uma voz grave, que Andrômeda identificou rapidamente.


           - É o papai – sussurrou Andrômeda à Sirius, que fez que ‘sim’ com a cabeça.


          Apesar de Cygnus ser um homem ocupado e severo (esnobe e preconceituoso, como você já está cansado de saber), não era uma pessoa de todo ruim. Todos têm um lado bom, mesmo que Cygnus não mostrasse muito o dele. O que Andrômeda não sabia até aquele momento, é que o pai lhe devotava um carinho muito especial. Um carinho que fora, desde sempre, o escudo da menina.


          “Bellatrix já está na idade adequada para isso” respondeu a voz estridente de Druella. “E não vejo por que devemos privar Andrômeda e Narcissa, melhor arranjarmos tudo logo, quanto mais cedo melhor!”


          “Druella está certa, Cygnus” disse uma voz ainda mais grossa e grave que a primeira. Era tio Orion. “Fazemos isto há gerações. Foi assim conosco e será assim com nossos filhos. É uma pena que Sirius não seja um ano mais velho, seria ótimo unirmos nossas famílias”.


          Andrômeda e Sirius se entreolharam confusos.


          “Não exagere Orion! Vocês dois estão equivocados! É claro que quero minhas filhas bem casadas, mas podemos planejar isto com calma, daqui a uns dois ou três anos.”


          “Não seja ridículo, Cygnus! E reduzir as opções de Bellatrix? De maneira alguma! Ora, Bella é nossa jóia mais preciosa e merece um pretendente à altura!”


          “Soube que os Lestrange têm um filho três ou quatro anos mais velho que minha querida sobrinha Bellatrix. Rodolphus é o nome do garoto. Eu o vi certa vez, parece um belíssimo candidato. É um garoto forte e a família Lestrange é uma das mais nobres de toda a Inglaterra.”


          “Esplêndido Orion! Convidaremos os Lestrange para um jantar! É perfeito! Não concorda Cygnus?”


          “Faça como quiser, Druella.”


          Andrômeda começava a entender o conteúdo da conversa e sinceramente não gostava nem um pouco. Sabia que os casamentos em sua família eram arranjados desde a infância, mas até então nunca pensara seriamente no assunto. Sentiu-se estranha.


          - Possu blincá agola Andômeda? – pediu Sirius, aborrecido, pois não compreendia nada do que estava acontecendo e era, de fato, novo demais para isso.


          - Claro, claro, Sirius – respondeu Andrômeda. – Está vendo aquele armário? Têm uma porção de coisas antigas do papai ali, pode mexer à vontade. Só tente não quebrar nada nem fazer muito barulho, ok? Eu já vou brincar com você.


          Sirius animou-se e foi explorar as bugigangas do velho armário de madeira. Acho que não preciso dizer que nessa época as crianças não tinham tanto medo de aranhas e camundongos como têm hoje em dia.


           Andrômeda continuou de joelhos ao lado do sofá, ouvindo o eco das vozes da sala de estar, tão curiosa quanto temerosa.


          “Agora temos que pensar na outra” disse Druella em um tom muito arrogante para quem fala da própria filha.


          “A outra, chama-se Andrômeda. E não venha me dizer que pretende arranjar um pretendente para ela assim tão cedo, isto é ridículo, Druella!”


          “Ora, acalme-se Cygnus. Está se irritando por nada, meu amigo. Druella está certa, quanto mais cedo melhor! E temos que admitir que não será fácil arranjar um pretendente para Andrômeda. Dentre as três, não se pode dizer que é a mais bela ou prendada, e com certeza é a mais ... difícil”.


          “Andrômeda tem personalidade, Orion, ao contrário das demais”.


          “Personalidade! Essa é boa, Cygnus! Nossas filhas são muito bem educadas, as duas, apenas Andrômeda foge à regra! É petulante, faz perguntas! Você a estragou, admita!”


          “Não comece com isso! Só porque não concordei em mandá-la para uma escola especial eu a estraguei? Era completamente absurdo e desnecessário! A menina sabe pensar por si mesma, tem fibra, tem um grande futuro pela frente...”


          “Se ela fosse um menino, Cygnus”.


          “Que quer dizer Orion?”


          “Quero dizer que pensar não é a função de uma filha, e sim de um filho. Você vê em Andrômeda o filho homem que não teve, mas deixá-la pensar por si mesma dificulta muito as coisas, é perigoso demais”.


          “Como eu digo: ele a estragou! Se me deixasse conversar com ela como conversei com Bella, a menina seria uma dama e não este projeto de moleque! Ora, fala com empregados, pergunta sobre assuntos perigosos, discute contra regras! Será praticamente impossível achar quem a queira”.


          “Preocupe-se com Bellatrix e Narcissa, de Andrômeda cuido eu. Ela terá um pretendente.”


          “Está disposto a arranjar-lhe casamento?”


          “Se vocês dois pararem de me repreender, estou. E que fique claro que eu sou o pai e sei muito bem o que é melhor para minha filha.”


           “Sendo assim, proponho que se realize um grande jantar. Nada melhor para apresentar os interesses das partes”.


           “Esplêndido Orion, simplesmente maravilhoso! Oh, vou falar com a querida Walburga e prepararemos todos os detalhes!”


          Andrômeda sentiu-se desmoronar, eram informações demais para se absorver de uma vez só. Era muito jovem para entender o significado pretensioso por trás da discussão, mas entendia sua essência. Seria obrigada a conviver com um menino, fosse quem fosse, por anos à fio, até que tivessem idade para se casar. Andrômeda nada entendia da verdade sobre o casamento, nem poderia, mas como era a favorita das faxineiras e principalmente da cozinheira, ouvia muitos contos de fadas. Ela se imaginava mais velha, uma mulher, conhecendo um homem bom e gentil, que viria em um cavalo branco tirá-la daquela casa escura e eles viveriam felizes para sempre. Era tudo que ela conhecia sobre esse assunto.


          Pensou no menino da bola amarela, que veria no dia seguinte. Quem sabe ele a ajudaria. Quem sabe ele teria uma solução, ou um plano de fuga.


          Aquela conversa a deixara assustada. Uma criança normal iria correndo procurar um colo, mas Andrômeda nunca tivera essa chance. Simplesmente pegou Sirius (que a esta altura já estava tão cansado que não se importou em ir embora) pela mão, apagou o lampião e desceram até o primeiro andar.


          Pararam em frente ao quarto de hóspedes, onde tia Walburga, Régulus e Narcissa ainda cochilavam, e Andrômeda cochichou ao ouvido do primo:


          - Chame sua mãe e diga que está com sono, o que não deixa de ser verdade. Eu preciso ir para o meu quarto.


          - ‘Cê ta bem Andômeda? – perguntou Sirius sonolento.


           A menina tremia dos pés à cabeça, sem consciência do porquê, e sua voz denunciava a tristeza presa à garganta.


          - Eu vou ficar bem. – garantiu Andrômeda dando um beijo na bochecha rosada de Sirius. – Prometo que vamos brincar da próxima vez, agora vá.




          Quando uma criança é obrigada a suportar o peso de uma tristeza de adulto, sofre em dobro. Por sofrer e por não entender direito porque sobre. Chora, chora muito, afinal é sofrimento demais para um coraçãozinho ainda tão pequeno. Mas se você já passou uma noite inteira chorando, sabe que depois vem uma sensação de grande alívio e um sono pesado e sem sonhos. Nada mais justo.  




          Na manhã seguinte, a pequena Andrômeda acordou cedo. Tomou o café da manhã sozinha depois que seus pais saíram, aprontou-se e saiu. Nem ao menos se preocupou que a vissem, porque na verdade não se importava. Com o lenço emprestado dentro do bolso da capa (era um dia muito frio e nublado) e uma enorme angústia abafada no coração, foi até a pracinha e esperou.


          Queria poder lhe dizer que o menino da bola amarela apareceu naquele dia, que ela devolveu-lhe o lenço e os dois conversaram até decidir de que jeito ela fugiria de casa e para onde iria. Mas infelizmente, aquela manhã passou-se arrastada e silenciosamente, enquanto Andrômeda esperava aflita na praça deserta, por um amigo que não viria. 


 


 



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