Capítulo Único
As folhas desse outono
Caem como lágrimas
E eu ouço em sua voz
O vento que as leva
E há tempos que o destino
Insiste em soprar contra nós
Outono - Mandala
***
Separados pelo Outono
Faltava pouco para transição verão-outono. As folhas já continham aquele amarelado tão típico e conhecido dessa estação simplória; porém bela. Então, por que ele viajava sempre antes que os dias 21 de setembro chegassem?
Ele sempre detestou aquela estação, porém conseguia tolerá-la, levando sua mísera vidinha, arrumando, limpando, se humilhando perante todos. A ironia de sua vida: nascer puro sangue e ser menos que um sangue ruim. Um empregado, um amargurado, um desprezado, apenas um aborto. Argo era como o outono: sem frutos e sem folhas. Amarelo feito um cadáver.
Embora tal semelhança existisse, ele nunca se sentiu bem com a presença dessa estação. Folhas sempre caindo e caindo, quando todas as árvores estavam desnudas, o homem respirava fundo. O dever estava cumprido. Pobre Argo Filch... Estação tão indefinida, sempre estava suscetível a chuvas e ventos e bastou um único sopro deste para que todas aquelas folhas aglomeradas voassem, flutuassem e, depois caíssem ao chão uma a uma.
Ah! Pelo menos tinha Madame Nora consigo. Majestosamente perspicaz, companheira e fiel, linda e delicada. Seus miados eram como vozes ao ouvido do miserável, ele entendia, por vezes, até obedecia com um “Sim, minha querida”.
O destino pode ser cruel, e foi. Ele escolhera a mais detestável das estações para tornar aquele ser desprovido de sorte em algo mais melancólico do que já era. O maldoso destino calou a voz da companheira de Filch. Ela se fora e justamente no dia em que o verão dá lugar ao outono.
Lá vem ela. Pata direita ora esquerda entrando em contato com aquele tapete amarelo e fofo. Toda pomposa: focinho erguido e olhos fechados deliciando-se com o cheiro de solo úmido e folhas também molhadas. O aroma aumentou conforme andava e pressionava as folhas com o peso de seu corpo. O seu dono se arrastava, tão animalesco, todo corcunda atrás de sua madame, levaria séculos até que o incapaz pudesse alcançá-la. A paisagem era sempre a mesma: uma floresta sem flor e folhas, sem vida. Um sorriso escapou da boca da gata esperta e virtuosa. Continuava a desfilar, ainda com aquele sorriso ironizando o cenário. Ah! Não tinha nada mais perfeito, lindo e adorável do que ela. O Outono era tão pequeno diante de Madame Nora. Porém, ela gostava do perfume que sentia vindo dele. Gata tão contraditória quanto os humanos.
Lembra-se daquele sorriso zombeteiro? Dissipou-se. A felina fora surpreendida...
Madame Nora tentava fincar suas garras naquela parede lisa. Coitada! Estava escorregadio e a luz diminuía conforme ela ia caindo. Nada se via. Ah! Se sua jovialidade não tivesse se ido junto com os anos, assim, talvez ela conseguisse sair daquele poço. Lugar desprezível – escuro e fétido. Deitada ao chão somente pela dor; tinha caído em pé, porém a altura era considerável e o impacto resultou nessa dor que a derrubara. Permanecia imóvel e a única parte de seu corpo que se mexia era seu rabo, ia para lá e para cá como o pêndulo de um relógio. O tempo passava... Tic-tac; mas não se sabia ao certo quanto tempo tinha se ido. Parecia uma eternidade, o sofrimento persistia. Chiava de dor baixinho, chamava e ordenava que seu dono fizesse alguma coisa. Ele? Coitado! O que poderia fazer um aborto? Um nada? A culpa não era dele... Só conhecia o castelo e não a Floresta Proibida, muito menos aquele maldito poço que era a armadilha perfeita: fechado quase por completo por só uma pequena fenda, e foi naquela mesma abertura minúscula que Madame Nora caíra. Ela perceberia e talvez escapasse se não estivesse toda cheia de si. Ó, notável armadilha! Adornada pelo outono, as folhas cobriam aquele concreto e o destino se tratou de resolver. Quantos não queriam matar aquela gata com as próprias mãos? E, fora a natureza que se encarregara... Argo não a deixou! Ali, deitado com ouvidos atentos aos miados de Madame Nora. Lágrimas caiam do rosto daquele animal humano, caiam como uma folhinha cai quando chega o outono. Angustiado, mas ainda esperançoso. A Esperança que se extinguiu com o último miado, o último dizer... O tic-tac cessou. Corpo inerte, sem vida. Madame Nora descansou.
Desde então, antes mesmo dos dias 21 de setembro, Argo Filch deixava Hogwarts fisicamente, mas também fantasiava uma viagem a lugares onde o outono não existia. Ia para a Terra da Primavera, a Terra do Verão e até mesmo a Terra do Inverno. De lugares lindos, perfeitos e utópicos! Ia onde nada caia e nada morria.
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