CAPÍTULO TREZE



CAPÍTULO TREZE


 


Ela estava de péssimo humor quando voltou para casa. Revirara a casa de Wineburg de cabeça para baixo, seguindo cada passo e refazendo tudo o que os técnicos já haviam feito. Durante três horas, ela e Hermione haviam remexido em closets, gavetas, rodaram arquivos e rastrearam cada uma das gravações do tele-link.


Encontraram duas dúzias de ternos e sapatos tão reluzentes que Gina conseguira ver neles o reflexo de sua própria cara amarrada, além de vasculharem uma coleção de discos, todos com músicas incrivelmente chatas. Embora ele tivesse uma espécie de cofre, o conteúdo não servira de muita coisa. Os dois mil dólares em dinheiro vivo, os dez mil em fichas de crédito e a extensa coleção de vídeos pornográficos poderiam dar uma idéia de como era o sujeito, mas não ajudavam em nada a descobrir quem o matara.


Ele não mantinha nenhum tipo de diário, e em sua agenda havia datas e horários marcados, mas muito pouco a respeito do propósito de cada encontro, pessoal ou profissional. Seus registros financeiros eram ordenados e precisos, como era de esperar em se tratando de alguém que fazia do dinheiro a sua ocupação. Todas as despesas e ganhos estavam cuidadosamente registrados. Vultosas quantias eram trocadas de fichas de crédito por dinheiro vivo e retiradas a cada bimestre de sua conta, durante um período de dois anos da vida cheia de ostentação de Wineburg. Embora tal movimentação servisse para dar a Gina uma noção sólida do elevado padrão de vida que Selina usufruía, as retiradas estavam todas registradas como despesas pessoais.


A coincidência de datas entre os compromissos noturnos bimestrais e as retiradas em dinheiro nos últimos dois anos também não eram suficientes para estabelecer uma conexão de Wineburg com a seita que Selina dirigia.


O nome dela não era sequer mencionado em parte alguma.


Ele era divorciado, sem filhos, e morava sozinho.


Gina batera de porta em porta, entrevistando os vizinhos. Descobriu que Wineburg não era do tipo sociável. Raramente recebia visitas, e ninguém nas redondezas fora curioso o suficiente para prestar atenção a um dos raros visitantes, a fim de oferecer uma descrição deles.


Ela saiu com as mãos abanando, uma sensação de ardência no estômago e um sentimento de frustração que aumentava a cada minuto. Sabia, sem sombra de dúvida, que Wineburg era um dos membros da seita de Selina, tinha certeza de que ele pagara regiamente a ela por esse privilégio, a princípio com dinheiro e depois com a própria vida. Só que não estava nem um pouco mais perto de conseguir provar isso, além de sentir que a sua mente não estava tão focada no caso quanto deveria.


Quando ela ia para casa, o rosto zangado de Neville e suas palavras amargas começaram a aparecer em sua cabeça como um filme, e a frustração se chocou com a dor.


Ela fizera mais do que simplesmente decepcioná-lo, e sabia disso. Ela o traíra ao seguir fielmente o treinamento que recebera dele mesmo. Cumprira as ordens, agira como uma boa policial. Fizera o seu trabalho.


Mas não fora amiga dele, pensou, com as têmporas latejando devido ao estresse. Pesara as suas lealdades e, por fim, escolhera o trabalho, em vez do coração.


Fria, ele a chamara, lembrava naquele momento, e fechou os olhos com força. Fria, era o que ela fora.


O gato veio caminhando silenciosamente na direção dela no instante em que Gina colocou o pé em casa, serpenteando por entre suas pernas assim que entrou no saguão. Ela continuou andando, xingando baixinho ao tropeçar nele. Moody surgiu de uma porta lateral, informando:


- Harry está à sua procura.


- Ah, é? Pois eu estava ocupada. - Deu um chute leve, com impaciência, em Galahad. - Ele já está em casa?


- Ainda não. A senhora poderá encontrá-lo em seu escritório.


- Vou falar com Harry quando ele chegar em casa. - Ela queria um drinque, algo forte e inebriante. Reconhecendo o perigo e a fraqueza representados pela vontade de usar a bebida como muleta, deu meia-volta antes de entrar na sala de estar e tomou a direção oposta. - Não estou em casa para mais ninguém. Compreendeu?


- Certamente. - respondeu Moody, todo empertigado. Ao vê-la sair apressada, Moody se agachou, pegou o gato e o acariciou, algo que jamais faria se houvesse alguém por perto para observá-lo. - A tenente está muito infeliz. - murmurou Moody. - Talvez devêssemos dar um telefonema.


Galahad ronronou e esticou o pescoço, demonstrando gostar dos dedos compridos e ossudos de Moody. Sua afeição mútua era um pequeno segredo entre os dois.


Ver o mordomo com o gato teria deixado Gina surpresa, mas ela não estava com a cabeça em nenhum dos dois. Subiu as escadas, passou pela área da piscina e do jardim internos e foi direto para o salão de ginástica. Esforço físico, ela sabia bem, servia para bloquear problemas emocionais.


Deixando a mente vazia, vestiu uma roupa de ginástica preta. Programou o aparelho de atividades físicas para levá-la através de uma série brutal de exercícios de resistência, rangendo os dentes enquanto a voz curta e direta, gerada por computador, a mandava agachar, levantar, esticar, manter a posição e repetir.


Já fizera um número satisfatório de séries mais pesadas no momento em que resolveu trocar de aparelho, indo para a máquina de aeróbica. A unidade composta a levou por uma corrida massacrante, ladeiras muito inclinadas, depois descidas bruscas e, por fim, uma sucessão infindável de lances de escadas. Ela programara a máquina para lhe oferecer vários terrenos, e sentiu a mudança de textura na superfície de corrida, indo do asfalto simulado, passando pela areia, grama e terra. Tudo isso foi muito interessante, mas não estava fazendo desaparecer a dor que sentia na barriga.


Você pode correr, pensou, com uma fúria sombria, mas não consegue se esconder.


Seu coração batia depressa, sua roupa estava molhada de suor, mas suas emoções continuavam frágeis como vidro. O que precisava mesmo, decidiu enquanto vestia as luvas macias e protetoras, era socar alguma coisa.


Ela jamais tentara enfrentar o andróide boxeador. Aquele era um dos mais novos brinquedinhos de Harry. A unidade tinha uma compleição de peso-médio: um metro e oitenta de altura, oitenta e cinco quilos e músculos firmes. Boa escolha, decidiu Gina, com as mãos nos quadris, enquanto o avaliava de cima a baixo.


Digitou o código no painel. Houve um leve zumbido no momento em que os circuitos foram ligados. O andróide abriu os olhos castanhos e perguntou, com um ar educado:


- Gostaria de uma luta?


- Sim, meu chapa, eu gostaria de uma luta.


- Escolha boxe, caratê em estilo coreano ou japonês, tae kwon do, kung fu, luta de rua. Programas de autodefesa também estão disponíveis. O contato com o corpo é opcional.


- Quero um mano a mano direto. - disse ela, dando um passo para trás e colocando-se em posição. - Contato total.


- Deseja rounds cronometrados?


- Claro que não! Continuamos sem parar até um dos dois cair duro, meu chapa... nocaute! - Curvou os dedos em um gesto de “pode vir”.


- Entendido. - Ouviu-se um leve ruído da unidade que se autoprogramava. - Sou aproximadamente trinta quilos mais pesado do que você. Se preferir, meu programa inclui um handicap de...


Ela levantou o punho com força e muito depressa, atingindo-o no queixo e lançando sua cabeça para trás.


- Esse é o meu handicap. Agora, vem!


- Como queira... - Ele abaixou o corpo em posição defensiva, como ela, e começou a rodeá-la. - Você não indicou se deseja utilizar interjeições vocais no programa. Provocações, insultos... - Deu um passo para trás, a fim de se equilibrar, pois o pé dela alçara vôo e o atingira bem no estômago. - Cumprimentos ou exclamações de dor adequados ao golpe também estão disponíveis.


- Ô carinha... quer vir para cima de mim, pelo amor de Deus?


Ele foi, com uma força e rapidez que a fizeram cambalear para trás, quase perdendo o equilíbrio. Era disso, decidiu enquanto girava sobre o corpo e o atingia com as costas da mão, que ela estava precisando. Agora sim!


Ele bloqueou seu golpe seguinte, trocou o peso do corpo de um pé para outro e com um movimento rápido enlaçou o pescoço dela com o braço. Gina fincou o pé no chão, deu-lhe uma cotovelada e o atirou por cima do ombro. Ele mal caiu e já se colocara novamente em pé, antes que ela tivesse a chance de pular sobre ele.


O punho enluvado do andróide fez uma sólida conexão com o plexo solar dela, forçando-a a soltar o ar dos pulmões com toda a força e provocando-lhe uma fisgada na cabeça. Dobrada para a frente, ela caiu de cabeça sobre o peito do pé do oponente.


Harry entrou no salão uns dez minutos depois, exatamente no instante em que sua mulher voava pelo ar e seguia escorregando pelo tatame. Levantando uma sobrancelha, encostou-se no portal e se acomodou para assistir à luta.


Ela nem teve tempo de se colocar novamente em pé, pois o andróide já estava em cima dela. Diante disso, ela o agarrou pelos tornozelos, girou o corpo, o levantou no ar e o arremessou. Sua mente agora era um espaço em branco, totalmente em branco. Sua respiração estava pesada e dava para sentir o gosto de metal que vinha do seu próprio sangue dentro da boca.


Ela partiu contra seu adversário como uma tempestade de granizo, fria e implacável. Cada golpe, cada soco e cada chute dado ou recebido parecia cantar por dentro de seu corpo com um ódio gélido e primitivo. Seus olhos estavam sem expressão naquele instante, devido à violência, e seus punhos impiedosos se concentravam na cabeça do andróide, fazendo-o recuar e recuar, sem conseguir se manter parado.


Franzindo o cenho, Harry se empertigou. Ela estava muito ofegante, quase soluçando, mas não parava. Quando o andróide cambaleou e caiu de joelhos, ela se agachou para o golpe final.


- Fim do programa! - ordenou Harry em voz alta, e segurou o braço rígido de sua mulher que já estava pronta para arrancar a cabeça do robô, ligeiramente torta a essa altura. - Assim você vai danificar a máquina. - disse, com a voz calma. - Ela não foi projetada para morrer.


Gina se inclinou para a frente, apoiando as mãos nos joelhos, a fim de retomar o fôlego. Sua mente estava cheia de imagens vermelhas, raivas e fúrias com a cor do sangue e que ela precisava clarear.


- Desculpe. - disse ela. - Acho que me empolguei. - Olhou para o andróide, que continuava de joelhos, com a boca um pouco frouxa e os olhos sem vida como os de um boneco. - Vou rodar um programa para fazer o diagnóstico dele.


- Não se preocupe com isso. - Tentou virá-la de frente para ele, mas ela se desvencilhou e atravessou o salão para pegar uma toalha. - Você estava a fim de uma luta?


- Acho que precisava golpear alguma coisa ou alguém.


- Será que eu sirvo? - Ele estava sorrindo de leve, até o momento em que ela abaixou a toalha. A raiva desaparecera de seu rosto, deixando apenas uma expressão de dor e tristeza nos olhos. - O que foi, Gina? O que aconteceu?


- Nada. Apenas tive um dia difícil. - Atirando a toalha para o lado, ela foi até a unidade de refrigeração em busca de uma garrafa de água mineral. - Até agora a casa de Wineburg está interditada, mas não havia nada lá para nos ajudar. Os técnicos também não acharam nada na garagem, e eu nem esperava que achassem. Acabei de aplicar uns socos em Selina Cross e em Alban, o Magnífico. - Olhou para o andróide. - Fui a uma consulta com Minerva. A filha dela é uma devota da religião Wicca... É mole ou quer mais?


Não era trabalho, avaliou ele, o que colocara aquela infelicidade dolorosa nos olhos dela.


- O que houve, Gina?


- Já não basta? Vai ser muito difícil conseguir uma avaliação objetiva de Minerva, já que a própria filha anda lançando feitiços por aí. E ainda tem a Hermione. Pegou um tremendo resfriado e sua cabeça deve estar tão cheia de catarro que eu sou obrigada a falar tudo para ela pelo menos duas vezes, senão as palavras não alcançam o seu cérebro.


Estava falando rápido demais, como ela mesma notou. As palavras estavam se atropelando para fora da boca e ela não conseguia interromper o fluxo.


- De grande ajuda ela vai ser se continuar tossindo e espirrando o dia todo do meu lado. A mídia já colocou o bloco na rua, com tudo sobre Wineburg, e o fato de que você e eu estávamos na cena do crime também já caiu em boca de Matilde. Meu tele-link está congestionado de tantos recados da porra dos repórteres, além das informações confidenciais, que continuam vazando por todo lado. Neville até já descobriu que eu estava investigando essa história pelas costas dele.


Ah, pensou Harry, chegamos ao foco do problema.


- Ele bateu muito forte?


- E por que não deveria? - Sua voz se alterou quando ela se virou e buscou na raiva uma forma de esconder a dor. - Ele confiava em mim. Menti para ele, bem na sua cara.


- E que escolha você tinha?


- Sempre há uma escolha. - Pareceu morder as palavras, arremessando na parede a garrafa de água, ainda pela metade, fazendo-a cair no chão, quicar e começar a despejar o líquido sobre o piso. - Sempre há uma escolha! - repetiu. - Eu fiz a minha. Sabia como ele estava se sentindo com relação a Frank, com relação a Alice, e mesmo assim o bloqueei, deixei-o de fora de toda a história. Segui as ordens. Caminhei direitinho sobre a linha, conforme me ordenaram.


Dava para sentir a dor aumentando como se tentasse ser vomitada, espelhando a água da garrafa, mas ela fez força para se segurar, continuando:


- Neville estava com a razão em tudo o que jogou na minha cara. Tudo! Podia ter seguido junto com ele, correndo por fora.


- E foi isso que você foi treinada a fazer? Foi isso que ele mesmo ensinou a você durante o treinamento?


- Foi ele que me fez. - disse Gina com raiva. - Eu devo isso a ele. Devia ter lhe contado tudo o que estava rolando.


- Não. - Deu um passo na direção dela, segurando-a pelos ombros. - Não, não devia nem conseguiria.


- Mas tinha que ter conseguido! - berrou. - Tinha que ter... juro por Deus que desejava ter feito isso. - Cobriu o rosto com as mãos e desmontou por completo. - Ah, meu Deus... e agora, o que vou fazer?


Harry a abraçou com carinho. Gina raramente chorava, só em último caso, e sempre que suas lágrimas finalmente conseguiam romper as barreiras, jorravam em uma abundância cruel.


- Ele precisa de algum tempo. É um policial, Gina. Uma parte dele, no fundo, já compreende a sua posição. O resto precisa apenas de tempo para a poeira assentar.


- Não. - As mãos dela o agarraram pela camisa e se mantiveram ali. - O jeito como ele olhou para mim... eu o perdi, Harry. Eu o perdi! Juro que preferia perder meu distintivo.


Ele esperou até que as lágrimas acabassem de jorrar e notou seu corpo muito trêmulo. Havia tantas emoções fortes dentro dela, pensou Harry, balançando-a para a frente e para trás enquanto suas mãos continuavam a apertar e soltar a parte de trás do seu paletó. Aquelas eram emoções que ela passara a vida reprimindo, e por isso se tornavam ainda mais potentes sempre que conseguiam se libertar.


- Droga! - Ela soltou o ar devagar, ainda tremendo. Sua cabeça estava dolorida, seus pensamentos pareciam abafados e sua garganta ardia. - Odeio fazer cenas! Isso não ajuda em nada.


- Ajuda mais do que imagina. - Passou a mão pelos seus cabelos, pegando-lhe a ponta do queixo para levantar o rosto. - Você precisa comer e desfrutar de uma boa noite de sono para poder fazer o que precisa ser feito.


- E o que eu preciso fazer?


- Encerrar o caso. Depois de fazer isso, vai conseguir deixar todo o resto para trás.


- É... - Apertou as mãos sobre as bochechas molhadas e quentes. - Encerrar o caso. Esse é o grande objetivo. - Soltou um suspiro sibilado. - Isso é a porra do meu trabalho!


- Isso é justiça. - Passou o polegar sobre a covinha de seu queixo. - Não é?


- Já nem sei mais... - Ela levantou a cabeça para olhar para ele com os olhos vermelhos e inchados, sentindo-se exausta.


 


Ela não comeu nada, e ele não a pressionou. Já passara por momentos de grande pesar na vida e sabia que comida não era a resposta. Pensou em forçar a barra para que ela tomasse um sedativo, embora soubesse que convencê-la disso ia ser uma situação difícil de encarar. Sentiu-se satisfeito ao ver que ela resolvera ir para a cama cedo. E saiu do quarto dando uma desculpa para Gina, alegando que ia participar de uma videoconferência.


Do seu escritório, observou pelo monitor a imagem dela se remexendo na cama de um lado para outro, até que finalmente ela parou e pegou no sono. O que ele precisava fazer não ia levar mais de uma ou duas horas. Ele sabia que nesse tempo ela não ia acordar nem dar pela sua falta.


Harry jamais estivera na casa de Neville. O prédio de apartamentos parecia confortável, embora antigo. Possuía um bom sistema de segurança e decoração despretensiosa. Harry achou que o lugar combinava com o morador. Como não desejava correr o risco de ter sua entrada negada, conseguiu enganar o alarme e abrir a fechadura da porta de entrada do edifício.


Isso era algo que combinava com ele.


Ao entrar na pequena portaria, sentiu o cheiro de uma recente dedetização. Embora aprovasse a intenção, não gostou do cheirinho leve, porém desagradável, que permanecia no ar, e fez questão de guardar a informação com cuidado na memória, para lidar com o problema mais tarde.


Afinal, ele era o dono do prédio.


Entrou no elevador e pediu o terceiro andar. Ao saltar, reparou que o carpete do corredor precisava ser trocado. O ambiente, no entanto, era bem iluminado e os leds que piscavam nas câmeras de segurança provavam que elas estavam funcionando com eficiência. As paredes estavam limpas e eram grossas o bastante para abafar os sons, com exceção de um ou outro ruído que denunciava movimento por trás das portas fechadas.


Uma distante batida musical, uma rápida explosão de gargalhadas, o choramingo agitado de um bebê. Vida, pensou Harry, em um estilo agradável. Tocou a campainha na porta de Neville e esperou.


Manteve os olhos com sobriedade na tela de segurança e continuou a olhar fixamente para ela, mesmo ao ouvir a voz irritada de Neville que surgiu pelo intercomunicador, perguntando:


- Que diabos você quer aqui? Anda freqüentando favelas agora?


- Não creio que este prédio possa ser qualificado como favela.


- Qualquer lugar é uma favela, comparado ao palácio em que você mora.


- Pretende discutir as diferenças de estilo entre nossas moradias aí de dentro ou vai me convidar para entrar?


- Perguntei o que você quer aqui.


- Você sabe por que estou aqui. - Levantou a sobrancelha, certificando-se de que o insulto a seguir era suficiente, antes de lançá-lo: - Você tem peito para me encarar frente a frente, não tem, Neville?


Esta pergunta teve, como Harry imaginava, um efeito imediato. A porta se escancarou. Neville estava parado sob o portal, bloqueando a entrada com a massa compacta de seu corpo, já preparado para a briga e com o rosto enrugado brilhando de fúria.


- Esse assunto não é da sua conta, Harry.


- Pelo contrário... - Ele se manteve onde estava, mantendo a voz firme e calma. - É especificamente da minha conta, mas não creio que seja da conta de seus vizinhos.


Rangendo os dentes, Neville deu um passo para trás, ordenando:


- Entre, diga o que tem a dizer e caia fora!


- Sua esposa está em casa? - perguntou Harry, quando Neville bateu a porta com força.


- Foi a um encontro com amigas. - Inclinou a cabeça para a frente, parecendo um touro, e avaliou Harry, pronto para atacar. - Se quiser quebrar a minha cara, pode tentar, vá em frente! Eu não me incomodo de socar de volta esse seu rostinho bonito.


- Meu Deus, ela é igualzinha a você! - Balançando a cabeça, Harry circulou pela sala de estar. Parecia aconchegante, decidiu. Não muito arrumada... o telão exibia um jogo de beisebol, sem som. O batedor girou o corpo e a bola voou em completo silêncio. - Quanto está a partida?


- Os Yanks estão na frente por um ponto e o jogo está no final sétima entrada. - informou ele. Quase ofereceu uma cerveja a Harry, mas conseguiu se segurar a tempo e tornou a enrijecer o corpo. - Ela lhe contou tudo, não foi? Para você ela passou todos os lances, desde o início.


- Ela não recebera ordens para não me contar, e achou que eu poderia ajudá-la.


Ele poderia ajudar, pensou Neville, sentindo um gosto amargo na boca. Seu maridinho rico e badalado poderia ajudá-la, mas seu antigo instrutor, seu velho parceiro, não... O homem que trabalhara lado a lado com ela durante dez anos, com muito orgulho e, por que não reconhecer, afeto, esse podia ser deixado de fora.


- O fato de poder ajudar não o torna menos civil. - Seus olhos cansados mostraram mágoa. - Você nem mesmo conhecia Frank.


- Não, eu não o conhecia, mas Gina sim. E gostava dele.


- Fomos parceiros de rua, eu e Frank. Éramos amigos, quase como se fôssemos da família um do outro. Ela não tinha o direito de me chutar para fora desse caso. É isso o que sinto, e foi isso que joguei na cara dela.


- Tenho certeza de que fez isso. - Harry se virou do telão e ficou de frente para Neville, encarando-o olho no olho. - O que quer que tenha dito a Gina, deixou-a arrasada.


- Ah, feri um pouco os seus sentimentos, apenas... - Neville se afastou e pegou uma garrafa de cerveja que estava pela metade. Mesmo olhando para ela por trás de uma névoa muito turva de fúria, ele notara a devastação tomar conta de seus olhos quando ele a agrediu verbalmente, e se convencera a não dar a mínima para aquilo. - Ela vai superar... - Bebeu goles longos, sabendo que o sabor da cerveja não ia cobrir o amargor que grudara em sua garganta. - Vai continuar realizando bem o seu trabalho. Só que não vai mais fazer isso com a minha ajuda.


- Eu lhe disse que ela ficou arrasada, e falei sério. Há quanto tempo a conhece, Longbottom? - A voz de Harry ficou mais dura, exigindo atenção. - Dez anos, onze?... Quantas vezes você a viu desmoronar? Imagino que consiga contar com os dedos de uma só mão as vezes em que viu isso. Pois bem, eu a vi desmoronar esta noite. - Respirou devagar. Mostrar-se exaltado não era a melhor tática naquele momento, para nenhum dos dois. - Se pretendia acabar com ela, pode estar certo de que conseguiu.


- Eu só disse a ela como é que as coisas eram, simplesmente isso... - A culpa já estava se esgueirando. Matou o resto da cerveja que havia em seu copo de um só gole, determinado a afastar aquela sensação. - Os tiras se apóiam Potter, precisam confiar uns nos outros ou não chegam a parte alguma. Ela estava investigando Frank a fundo. Devia ter vindo me procurar.


- É isso que você teria aconselhado que ela fizesse? - argumentou Harry. - Esse é o tipo de policial que você ajudou a criar? Não foi você que esteve na sala de Lupin, recebendo ordens diretas e fazendo o trabalho conforme lhe mandavam. - continuou, sem dar chance de Neville responder - E sofrendo por causa disso.


- Não. - Uma nova onda de amargor passou por dentro de Neville. - Realmente, não fui eu. - Ele se sentou, aumentando deliberadamente o som do telão e olhando para a antiga batalha que se desenrolava diante de seus olhos.


Teimoso, cabeça-dura, irlandês filho-da-mãe, pensou Harry, sentindo ao mesmo tempo fisgadas de solidariedade e impaciência com o homem à sua frente.


- Escute Neville, você me fez um favor uma vez. - lembrou Harry. - Foi logo que me envolvi com Gina e a magoei porque eu entendera mal uma situação. Você esclareceu as coisas para mim, e por isso estou disposto a lhe fazer um favor do mesmo tipo.


- Não quero nenhum favor seu.


- Mas vai tê-lo mesmo assim. - Harry se sentou em uma poltrona confortavelmente estofada e se serviu da cerveja quase vazia de Neville. - O que sabe a respeito do pai dela?


- Como?... - Confuso diante daquilo, Neville virou a cabeça e olhou para Harry. - O que isso tem a ver com qualquer outra coisa?


- Tem tudo a ver com ela. Você sabia que ele a espancava, torturava e estuprava repetidamente, até ela completar oito anos?


Um músculo se repuxou no maxilar de Neville quando ele se virou para o telão e tornou a tirar o som do aparelho. Ele sabia que Gina fora achada em um beco aos oito anos, com o braço quebrado, depois de ter sofrido abusos sexuais. Isso tudo estava em seus arquivos lacrados, e Neville jamais trabalhara com alguém sem conhecer primeiro os dados de seu passado. Mas não sabia que fora o pai dela a pessoa que fizera tudo aquilo. Chegara a suspeitar, certa vez, mas não sabia com certeza. Seu estômago se retorceu e suas mãos apertaram o braço da poltrona.


- Sinto muito em saber disso. Ela nunca tocou no assunto.


- Ela nem sequer se lembrava de tudo. Ou, o que é mais provável, se recusava inconscientemente a lembrar. Até hoje tem pesadelos e flashbacks.


- Você não devia estar me contando isso. Não é um assunto que lhe diga respeito.


- Ela diria a mesma coisa, mas eu estou lhe contando mesmo assim. Ela construiu a si mesma, se transformou no que é hoje, e você a ajudou a conseguir isso. Ela enfrentaria qualquer coisa por você, Neville... e você sabe disso.


- Tiras sempre apóiam tiras. Esse é o trabalho.


- Não estou falando de trabalho. Gina ama você, e o amor é um sentimento que não surge com muita facilidade para ela. É difícil para ela sentir afeto, e mais difícil ainda demonstrar. Uma parte dela talvez esteja sempre preparada para receber um golpe, uma traição qualquer. Você é que vem sendo o pai dela há dez anos, Neville. Ela não merecia ser destruída por dentro mais uma vez.


Harry se levantou e, sem dizer mais nada, foi embora.


Sozinho, Neville passou as mãos pelo rosto e as levou até o cabelo negro, um pouco ralo. Então simplesmente deixou que elas lhe caíssem no colo.


 


Eram seis e quinze quando Gina rolou para o lado e piscou, ofuscada pela luz que entrava e batia em seu rosto. Harry gostava de ser acordado pela luz da manhã. A não ser nas vezes em que ela saía de mansinho da cama, antes dele, acabava acordando com o sol na cara, pois não se lembrava de acionar a tela de privacidade das janelas, antes de deitar.


Sentiu-se letárgica, sem energia, e decidiu que o motivo era ter dormido demais. Lentamente, começou a se arrastar para fora da cama.


O braço de Harry balançou no ar e a segurou.


- Ainda não! - Sua voz estava rouca e seus olhos continuavam fechados quando ele a puxou de volta para junto dele.


- Já acordei mesmo. Posso aproveitar para começar a trabalhar mais cedo. - disse e se desvencilhou. - Estou na cama há mais de nove horas, não vou conseguir dormir mais.


Ele abriu um dos olhos e foi o bastante para reparar que ela realmente estava com uma aparência descansada.


- Você é detetive. - lembrou ele. - Aposto que se investigasse bem, ia acabar descobrindo a espantosa realidade de que existem outras atividades que podem ser feitas na cama, além de dormir. - Os lábios dela abriram um sorriso quando ele rolou para o lado e se colocou por cima dela, dizendo: - Deixe-me dar uma dica.


Ela não se surpreendeu ao sentir que ele já estava com o membro rígido, nem com o fato de se sentir pronta para recebê-lo com tão poucas preliminares. Ele se deixou escorregar lentamente para dentro dela, de forma suave e profunda, e observou o resto de sono desaparecer dos seus olhos, que ficaram subitamente alertas.


- Acho que já percebi a dica. - Levantou os quadris, acompanhando o seu ritmo preguiçoso e descontraído.


- Você pega as coisas muito depressa... - Abaixou os lábios, apertando-os sobre o espaço de pele que ficava abaixo do maxilar. - Adoro este ponto aqui. - murmurou ele. - E este aqui também... - Sua mão foi subindo lentamente pelas costelas dela até envolver-lhe um dos seios.


A sensação de excitação foi doce, simples e a fez suspirar.


- Não se esqueça de me avisar quando chegar a um lugar que não lhe agrade. - pediu ela, enlaçando-o com os braços e as pernas. Ele tinha um corpo firme, estava muito quente e as batidas do seu coração de encontro ao dela lhe provocaram uma sensação de conforto. O prazer foi aumentando, se sobrepondo em camadas translúcidas que flutuavam em sua mente e se amplificavam através do corpo.


- Quero que você goze agora, para eu ver... - Mordiscou-lhe os lábios, para a seguir enfiar a língua, enlaçando-a com a dela, enquanto a beliscava com os lábios e sugava. - Goze! - repetiu ele. - Devagarzinho...


- Bem... - A respiração dela já estava começando a ficar ofegante, e gemidos leves escapavam-lhe pela garganta. - Já que está pedindo com tanto jeitinho...


O clímax invadiu-a, rolando por cima dela como uma onda imensa e persistente. Ela sentiu quando ele a seguiu, pegando a mesma corrente, e apertou seu rosto contra o dele.


- Será que isso é como aquela história do biscoito?


- Hein?!...


- Você sabe... “coma um biscoitinho, você vai se sentir melhor”. - Emoldurou o rosto dele com as mãos, elevando-o enquanto ele dava uma risada. - E então... você estava tentando fazer com que eu me sentisse melhor?


- Certamente que sim! Funcionou bem, para mim. - Abaixou a cabeça para beijá-la docemente. - Estava sentindo desejo por você. Sempre estou assim...


- É engraçado o jeito como os homens conseguem acordar com a cabeça de baixo raciocinando melhor do que a de cima.


- É isso que nos faz ser o que somos. - Ainda rindo, ele a girou, colocando-a por cima dele, e deu-lhe um tapa no traseiro, convidando: - Vamos tomar uma ducha... vou lhe dar mais um biscoito.


 


Trinta minutos mais tarde, ela saiu cambaleando do chuveiro e entrou no cilindro secador de corpo. Harry era um mestre na arte de mudar a atmosfera e o astral dela, pensou ainda tonta. Ia do sexo largado para o divertido, depois para o ardente, arrebatador e entorpecedor, tudo no curto espaço de uma manhã.


Como o seu organismo ainda parecia estar meio lento, ela apoiou a mão na borda do tubo, enquanto jatos de ar quente eram soprados em torno dela. Quando ele saiu do chuveiro, ela levantou um dedo para ele em sinal de advertência, dizendo:


- Fique longe de mim. Se tornar a me agarrar, vou lhe dar um golpe para deixá-lo estatelado no chão. Estou falando sério... tenho que ir trabalhar.


- Gosto de fazer amor com você de manhã. - Cantarolou baixinho, enquanto pegava uma toalha. - Você só se liga por completo quando é acordada pela emergência ou quando eu a seduzo.


- Bem, estou ligada agora. - Saiu do tubo secador, passando os dedos pelos cabelos. Mantendo-se a uma distância segura dele, esticou o braço para pegar um roupão. - Vá lá para fora, ver as cotações das ações pelo mundo, ou algo desse tipo.


- Pretendo fazer isso. E você vai querer comer. - acrescentou ao sair do banheiro. - Vou programar alguma coisa para o nosso café da manhã.


Ela se preparou para dizer que não estava com fome, pois realmente não estava. No entanto, bem sabia que, sem combustível, não ia conseguir rodar o dia inteiro.


Ao voltar para o quarto, ele já estava vestindo uma camisa, com os olhos grudados no monitor da mesa de café, onde sempre via as manchetes do dia e dados financeiros. Passou direto por ele e foi até o closet, onde escolheu calças cinza, simples.


- Desculpe ter feito aquela cena ontem à noite.


- Você estava chateada... - levantou o olhar, vendo que ela estava de costas para ele enquanto vestia uma blusa -... e tinha todo o direito de estar.


- Mesmo assim, agradeço por você não ter feito com que eu me sentisse uma idiota.


- E como se sente agora?


- Tenho uma tarefa a cumprir. - Levantou um dos ombros, pois chegara àquela conclusão enquanto se revirava na cama, tentando pegar no sono. - O que vou fazer é simplesmente cumpri-la. Talvez... bem, talvez se eu conseguir cumpri-la de forma adequada, Neville não fique com tanto ódio de mim quando tudo for solucionado.


- Ele não odeia você, Gina. - Ao ver que ela não comentou mais nada sobre aquilo, deixou o assunto de lado. Já programara a refeição matinal no AutoChef embutido. - Acho que um pouco de presunto com ovos vai nos fazer bem para começar o dia.


Pegou o café primeiro e o levou até a mesa da pequena sala de refeições que havia em um dos cantos do quarto.


- Isso faz bem para começar qualquer dia. - Assumiu um sorriso de determinação, indo pegar ela mesma a comida. Ordenou ao telão que se ligasse no Canal 75, enquanto comia os ovos mexidos deliciosos.


Franziu o cenho ao reparar na repórter que estava no ar ao vivo. Ela estava toda maquiada e brilhante como uma boneca de porcelana, e ainda não eram nem sete e meia da manhã. Anunciava a morte de Wineburg.


- Apesar do fato de a tenente Gina Weasley, da Divisão de Homicídios do Departamento de Polícia de Nova York, estar na cena do crime, a poucos metros do local onde aconteceu o assassinato, a polícia continua sem pistas. A investigação prossegue. Esta é a segunda morte por esfaqueamento que tem conexão com a tenente Weasley em apenas dois dias. Ao ser perguntada se os dois casos estão ligados, Weasley se recusou a tecer comentários.


- Até uma criança de dez anos cega de um olho consegue ver que os crimes têm ligação um com o outro, pelo amor de Deus! - Gina estava comendo de forma automática, e, de repente, colocou o prato de lado. - Aquela piranha da Selina Cross deve estar sentadinha na filial do inferno onde mora, rindo à toa enquanto assiste a isso.


Levantando-se de um salto, começou a andar de um lado para outro. Harry viu nisso um bom sinal. Ela se mostrava muito zangada e, portanto, não estava com pena de si mesma. Recheou seu croissant com geléia de morango recém-preparada.


- Vou colocar as mãos nela, juro por Deus! Vou colocar as mãos naquela vaca, por todos eles! Preciso provar a conexão de Wineburg com ela. Se conseguir fazer isso, vou poder provocá-la mais um pouco. Talvez isso não me garanta um mandado de busca para virar a casa dela pelo avesso, mas posso deixá-la com o seu piscando!


- Bem, então... - Harry limpou as pontas dos dedos com um guardanapo de linho azul-claro e o colocou de lado -... talvez eu possa ajudá-la com relação a isso.


Ao ver que ela continuava a caminhar de um lado para outro, resmungando sozinha, ele se levantou e pegou um disco lacrado em uma gaveta.


- Tenente!... - chamou, balançando o disco.


- Que foi?... Estou pensando!


- Então não quero interromper o seu fluxo de pensamentos com uma lista banal onde estão os nomes de todos os membros da seita de Selina Cross. - Com um semi-sorriso no rosto, ficou batendo com o disco na palma da mão e esperou os olhos dela ficarem mais brilhantes e se lançarem na direção dele.


- A lista? Você conseguiu a lista com os nomes dos membros? Como?


- Você não quer mesmo saber, quer? - Ele deixou a cabeça tombar para o lado.


- Não! - respondeu ela de imediato. - Acho que não quero saber... diga-me apenas que o nome dele está aí. - E fechou os olhos por um instante. - Diga-me simplesmente que Wineburg está nessa lista.


- Certamente que está...


- Eu amo você! - O sorriso dela se abriu, brilhante e quente.


- Sei que sim... - Harry entregou-lhe o disco.


 


 


 


 

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