Os Sete



Aos treze anos, Megan Despaire era uma jovem não muito alta, já não muito pálida graças à vida ao ar livre, e já não muito magricela e enfezada graças  ao treino de combate rigoroso com Hassan e Nadja. O seu cabelo continuava preto azulado, cortado à altura dos ombros de modo irregular. Os seus  olhos continuavam de um azul escuro intenso, e o seu rosto perdera a gordura infantil para assumir uma expressão de determinação e confiança.
Megan ignorava-o por completo, mas aos treze anos, ela era também a feiticeira mais poderosa de toda a França, senão de toda a Europa. Mais poderosa que Albus Dumbledore, e se este estivesse vivo para fazer a comparação, o próprio Voldemort.
Nos anos que passara com os ciganos, dera tudo por tudo para aperfeiçoar os seus poderes, ao ponto de a varinha já ser para ela quase inútil.  Guardava-a por uma mera questão sentimental, e um lembrete do que tinha a fazer. Por anos, praticara todo o tipo de maldições e pesquisara a fundo  todos os livros e recortes em busca de técnicas para aumentar as suas capacidades e alcançar mais. Tornara-se rigorosa, metódica e extremamente  exigente no que tocava a si própria. Com o tempo, essas características conferiram à sua personalidade alguns contornos de frieza. Meg preferia  chamar-lhe precisão. Ela precisava de ser precisa em tudo o que fazia se desejava atingir o seu objectivo.
Kazeila desenvolvera-se tanto quanto ela em matéria de tamanho. A cobra que começara com um metro era agora uma besta gigantesca, com o corpo  com quase duas vezes a largura do braço de Hassan e mais de dois metros de comprimento. Ellias costumava dizer-lhe, a brincar, se não teria  adoptado uma anaconda por engano. Meg rira-se, mas preocupava-se. Tornava-se difícil esconder a serpente dos visitantes ao acampamento, e mesmo  alguns dos ciganos começavam a sentir-se desconfortáveis com o seu tamanho. Embora ainda o tentasse negar, Meg sentia no ar que estava na hora de  partir.
- Nadja - Disse ela, um dia, ao mesmo tempo que efectuava o cumprimento formal romani - tenho de te dizer uma coisa.
A mulher, em vez de responder, remexeu no saiote e entregou-lhe um embrulho. Meg pestanejou e começou a remexer no cordel que o prendia, mas  Nadja impediu-a.
- São as receitas de todos os espectáculos em que participaste. - Explicou. - Nunca pediste, mas todos estes anos guardei a tua parte para ti.
Megan pestanejou outra vez. Normalmente, essa era toda a reacção que conseguiam arrancar dela. A jovem não gostava de exteriorizar o que sentia, e  as pessoas ali aceitavam isso.
- Porquê? - Perguntou. Nadja esboçou um sorriso.
- Raoul disse-me que planeavas partir. - Quando a jovem pestanejou outra vez, ela acrescentou. - Eu sei que não disseste a ninguém, mas sabes como é  Raoul. Não consegues fazer surpresas com ele por perto.
- Eu lamento. - Murmurou Meg, e realmente ela lamentava. Os ciganos eram a única família que conhecia para além da que lhe tinha sido tirada, e ela  preparava-se para a abandonar. Nadja abanou a cabeça, indicando que não ligava.
- Deixa-te de desculpas. Ambas sabemos que este não é o lugar onde tens de estar. Precisas de encontrar o teu outro língua de serpente, não é  verdade? - A cigana piscou-lhe o olho, relembrando-lhe o que Raoul lhe contara há anos atrás. Meg lembrava-se. Ela raramente esquecia as coisas.
- Eu sei. Ainda assim, dói. - A jovem suspirou. - Eu não imaginava que ainda havia algo capaz de me magoar assim.
Nadja pareceu querer dizer qualquer coisa, mas calou-se.
- Quando partes? - Perguntou. Megan mordeu o lábio.
- Hoje à noite. - Disse. Nadja sacudiu a cabeça.
- Terás de transformar isso em "amanhã de manhã", porque não te deixaremos ir sem uma festa de despedida. Desde que Raoul disse que te ias que  andamos a preparar-nos. - Meg olhou-a, incrédula, mas a cigana já se levantava sem lhe dar oportunidade de responder. - E prepara a tua malinha  mágica, porque se bem conheço alguns do grupo, eles quererão que leves uma tonelada em recordações. - E antes que Megan pudesse sequer  perguntar como é que ela soubera da mala, a cigana já se afastara.

No dia seguinte Meg materializou-se numa sala arruinada, levando com ela a mala mágica tal como Nadja dissera, carregada de recordações e outros  presentes que todos os Romani lhe tinham querido dar como ofertas de despedida. Megan recordava a festa da noite anterior como algo pertencente a  outra vida, e essa ideia abria-lhe um buraco no peito.
Pelo menos agora ela estava onde tinha de estar.
A casa dos seus pais, localizada em plena Floresta Negra, era uma ruína da recordação que ela usara para chegar até ali. Meg perguntou a si própria  que magia mantinha as paredes de pé, pois estas pareciam estar a ponto de cair.
Decidiu que deixaria o interior da casa para o fim. Percorrer as divisões trazia-lhe demasiadas memórias dolorosas, e ela esperava poder aplacá-las um  pouco se começasse a sua busca do lado de fora.
Materializou-se no jardim das traseiras, e em primeiro lugar viu um jardim selvagem e mal-ajeitado. Um exame mais rápido revelou-lhe que haviam pedras  ali, pedras dispostas de modo demasiado certo para serem pedaços de muro caídos.
Meg aproximou-se e gelou ao verificar que se tratavam de lápides. Eram cinco, dispostas em linha. Ela aproximou-se da primeira e leu:
Eliza Manuelle Gaunt. 1938/1996. Mãe, avó e amiga respeitada. Sentiremos a sua ausência.
Encontrar a campa da sua avó não chocou Meg tanto como reconhecer a caligrafia da inscrição. Passara por ela centenas de vezes nos seus livros de  estudo de magia. Aquela era a letra de Caleb Gerand.
A jovem sentiu a sua cabeça rodopiar. Sabia que os pais e a avó tinham sido assassinados no mesmo dia, a avó pelos Gerand e os pais e irmãos por  eles e algumas outras pessoas. Ela lembrava-se das palavras com clareza:
 Triste, muito triste. Quando é que esses sangues de lama irão aprender? Deveriam ser abatidos, todos eles, até ao último. Vejam o que aconteceu com  a velha Eliza Gaunt.
Na altura, ela interpretara a primeira frase como troça, e a segunda como uma confissão. Em parte por isso reagira tão friamente ao matar os Gerand.  Considerava-o vingança.
Agora, vendo as lápides, Meg estava confusa. Leu as outras inscrições com a cabeça a rodopiar.
Germaine Megan Despaire. 1962/1996. Esposa e mãe. Mulher honrada e irrepreensível. Sentiremos a sua ausência.
Edmond Damon Despaire. 1958/1996. Pai, marido e amigo. Sentiremos a sua ausência.
William Rupert Despaire. 1990/1996 Levado antes do seu tempo. Sentiremos a sua ausência.
Renard Silvien Despaire 1992/1996. Levado antes do seu tempo. Sentiremos a sua ausência.
Todos aqueles "sentiremos a sua ausência" estavam a dar dores de cabeça a Meg. Aquela era a caligrafia de Caleb, sem dúvida, mas não fazia sentido.  Ele ajudara a matar a sua família, admitira-o à sua frente.
Quando é que esses sangues de lama irão aprender?
A revelação entrou na cabeça de Megan com uma força massiva. Ela percebera tudo mal. Já na altura estranhara como podiam os Gerand chamar  "sangues de lama" aos seus pais. E se estes os julgavam sangues de lama, lixo, porque se dariam ao trabalho de os enterrar e fazer inscrições?
A única conclusão a que podia chegar era a óbvia. Os Gerand eram uma cambada de desprezíveis e cruéis, mas não eram os assassinos da sua família.  Pelo que ela via, tinham-se até dado ao trabalho de lhes garantir um funeral decente. Quando se referiam a sangues de lama, não falavam dos seus pais,  e sim dos assassinos. Não estavam a gabar-se, mas a condenar os verdadeiros culpados.
Essa revelação abalava-a um pouco. Não se arrependia de os matar, claro. Na altura, vingar os seus pais não era um pensamento tão presente como  salvar-se a si e a Nina. Ainda assim, Meg sentia-se irritada por cometer e acreditar em tamanho erro durante tanto tempo. Os sete assassinos da sua  família continuavam à solta, e ele não tinha uma pista sequer por onde começar.
Enquanto voltava a entrar em casa, pensou. Quem no mundo poderia ter motivos para assassinar a sangue frio uma família inteira de sangues puro? O  que acontecia no mundo mágico nessa altura que explicaria...
O seu primeiro pensamento foi para o lorde negro em vigor, mas essa explicação não fazia sentido, também. Lorde Voldemort era Inglês, e em 1996 ele  fora derrotado há cerca de dois anos. Talvez um dos seus seguidores, mas Meg duvidava disso também. Do que lera, ele e os seus seguidores,  Devoradores da Morte, defendiam a supremacia dos sangue puro. Não havia motivo para desatarem a matá-los, quanto mais aos seus pais, um dos  quais era até descendente, embora não em linha directa, do mesmo feiticeiro de que Voldemort se intitulava herdei...
Megan arfou quando a verdade a atingiu. Ela pensara ao contrário. O assassinato dos seus pais estava ligado a Voldemort e os seus seguidores, sim.  Mas não como imaginara. Dois anos depois, nenhum dos Devoradores da Morte devia atrever-se a colocar o nariz de fora, quanto mais cometer  assassinatos. Porque estavam com demasiado medo de serem apanhados por...
Megan recordou o que lera sobre esquadrões especializados de detecção de feiticeiros negros e apoiantes de Voldemort no estrangeiro. Mas nenhum  artigo mencionava que as técnicas utilizadas na captura envolviam matar.
Os seus pais eram parentes, embora muito afastados, do próprio feiticeiro negro em questão. Que hipóteses tinham eles de não serem classificados de  imediato como apoiantes?
E mesmo que fossem Devoradores da Morte, uma possibilidade que ela achava melhor não descartar, o que é que justificava matarem também Renard e  Will e a sua avó, uma senhora que não fazia mal a ninguém? Até Cassandra eles tinham morto. Aquilo não era justiça, mas extermínio.
Ainda a ferver por dentro, Meg subiu as escadas até onde sabia que ficava o antigo escritório do pai.

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